quarta-feira, 14 de novembro de 2018

​Da Venezuela para Portugal. Da crise para o paraíso

A vida coube-lhe em duas malas. Viajaram para Bragança, para serem acolhidos pelo serviço diocesano das migrações, praticamente sem nada. “Passávamos fome e, se ficasse lá com o meu bebé, não ia ter nem leite nem medicina.”

Foto: Olímpia Mairos/RR

Angel Mayz, de 34 anos, e Luiseiny Mays, de 23 anos, chegaram a Bragança sem nada. Vieram de Carúpano, na Venezuela, à procura de uma vida nova. Venderam tudo o que possuíam: carro, televisão, eletrodomésticos, computador, móveis… para comprarem o bilhete de avião e virem para Portugal de forma legal.
A Venezuela, onde nasceram e cresceram, mudou muito e para pior. E o casal decidiu partir, com apenas duas malas, em busca de melhores condições, sobretudo de um futuro melhor para o filho que esperavam e que, entretanto, já nasceu em Bragança, a terra onde, graças ao serviço diocesano das migrações, foram recebidos.

Licenciado em educação e técnico superior de marketing, Angel foi gerente de vendas numa empresa com 110 trabalhadores. A seu cargo teve uma estrutura de 62 pessoas com administradores de vendas, supervisores, chefes de marketing e vendedores.

Tinha uma vida estável, um bom ordenado, ganhava um salário que correspondia a seis vezes o salário mínimo, uma família e projetos, mas tudo se desmoronou com a chegada da crise. Uma crise que trouxe atrás de si insegurança, fome, degradação social.

“O que mais me impressionou foi a velocidade com que se estragou a economia, a falta de uma boa administração, a velocidade com que se degradou a sociedade e as pessoas. Gente que tinha estudos universitários, que trabalhava e tinha bons cargos e empregos e o ordenado não chegava para comprar comida suficiente ou medicamentos”, conta à Renascença.

“Só podíamos comer uma vez por dia e outros dias nem comíamos”

Luiseiny abandonou o mestrado em contabilidade a três meses de o concluir. Não se arrepende, porque a vida na Venezuela era muito complicada. Em casa, onde viviam pais, avós, irmãos, apenas o progenitor trabalhava, o que se tornou insustentável.

“Passávamos fome. Às vezes, só podíamos comer uma vez por dia e outros dias nem comíamos. Também não havia condições de saúde. O meu papá é diabético e não havia medicamentos. Já não aguentava a situação”, relata com a voz embargada.

Luiseiny confessa que tem muitas saudades da família, que deseja trazer para Bragança, mas sente que tomou a decisão certa, porque, diz, “se ficasse lá com o meu bebé, não ia ter nem leite nem medicina”.

“Quero trazer os meus papás para cá, mas, primeiro, tenho que trabalhar para ter dinheiro e, além, disso está a ser difícil conseguir os passaportes, o governo não está a facilitar, não quer deixar sair os cidadãos”, diz.

“A situação atual na Venezuela é muito complicada. A delinquência começou a aumentar e as ruas não são seguras, não há alimentos nos supermercados, nem medicamentos nas farmácias. Há gente a morrer, doentes de cancro e de sida que não conseguem os seus medicamentos e, simplesmente, morrem. Doentes com alguma infeção que morrem nos hospitais, por falta de antibióticos”, acrescenta Angel.

Foto: Olímpia Mairos/RR

“A governação deve seguir as regras de um jogo de beisebol”

O técnico de marketing dá voltas à cabeça para tentar encontrar algo de positivo, atualmente, na Venezuela, e não encontra.

“Eu estou a ser objetivo, porque vivi lá. A Venezuela vive uma das crises mais terríveis da sua história, uma crise que retirou às pessoas a capacidade de reagir, pela pobreza, destruição da sua saúde e pela violação dos seus direitos fundamentais”, sublinha.

O venezuelano, que escolheu Bragança para viver, considera que “só a mediação da Comunidade Internacional pode ajudar a sair da crise que abrange todas as áreas, desde a economia, passando pela segurança até à ética e a encontrar soluções”.

“Penso que seria importante uma intervenção internacional para ajudar a mudar este país, governado pela extrema esquerda”, defende, explicando que “um Governo não pode ter 20 anos”.

“Tem que haver alternância de poder e tem que haver oportunidades para todos os partidos políticos e não permanecer no poder 30, 40, 50 anos, como se fosse uma ditadura cubana”, considera Angel, elucidando que a governação deve seguir as regras de um jogo de beisebol em que quando uma equipa apanha as três bolas toca à outra fazer o mesmo”.

Para Angel a democracia na Venezuela é questionável. “Existe uma democracia, mas nós não sabemos se os resultados não são manipulados. As votações são com máquinas, mas as máquinas são vulneráveis e podem ser manipuladas de diferentes modos”, observa Angel.

A felicidade em Trás-os-Montes

Angel e Luiseiny Mays escolheram Bragança por intermédio de um casal transmontano amigo que viveu na Venezuela e que, devido à crise, regressou à terra onde investiu no ramo da panificação. Foi aí que Angel começou a trabalhar como padeiro, mas, atualmente, já está numa empresa do ramo da eletricidade.

“O trabalho é porreiro. Estou a sentir-me mesmo bem com a equipa de trabalho e a minha meta, o meu objetivo é melhorar como trabalhador e poder dar de mim o melhor, também como cidadão, e fazer vida, uma boa vida aqui em Bragança”, explica Angel.

O casal não pensa em regressar à Venezuela, “que tardará a recuperar”, porque se sente bem em Bragança, onde tem encontrado ajuda e apoio. “Queremos ficar aqui, porque gostamos muito da cidade. É muito bonita, dá segurança, temos tudo o que nós precisamos, o ambiente das quatro estações e das pessoas”, diz Angel.

Luiseiny acrescenta que “aqui a vida é tranquila, temos tido muita ajuda e o pequenino vai poder crescer com condições de saúde, educação, segurança, alimentação”.

E depois do Angel e da Luiseiny já chegou a Bragança María Gabriela, de 39 anos, licenciada em educação com especialização em música. É irmã de Angel e deixou Valencia, onde “tinha um trabalho que amava, que adorava”.

“Era professora de música infantil e tinha momentos belíssimos com as minhas crianças. São como meus filhos. Amo-os muito. É sobretudo isto que custa deixar. Já o que está a acontecer no nosso país, não nos identifica. Isso não dói deixar. Depois, deixar a terra e o que representa a terra, a tua gente. Obviamente, os teus costumes, levas contigo, onde quer que fores”, conta Gabriela à Renascença.

E o que mais a fez sofrer na Venezuela? Perguntamos. “A crise afetou todos os setores da sociedade, tornando-se cada vez mais difícil aceder a certas coisas, por exemplo, medicamentos que antes era normal, comer dignamente. O dinheiro já não dava”, afirma.


E prossegue: “Podias ganhar um bom salário que já não chegava. Eu ganhava quatro vezes mais o salário mínimo e já não me chegava, porque a hiperinflação, que lamentavelmente começamos a viver, levou tudo, arrasou com tudo. A segurança, também foi um fator determinante. Lamentavelmente temos esse problema ali”.

María Gabriela: "Bragança parece-me o paraíso". Foto: Olímpia Mairos/RR

Para começar uma vida nova

“Esta cidade, este país é tão belo, oferece tantas coisas bonitas, qualidade de vida, que é o que procuramos, viver tranquilos, viver dignamente, que ganhes o teu salário com o teu esforço e que vejas o resultado disso. Que com o teu salário possas ter uma vida digna, bonita, e ir conseguindo todas as coisas lindas que sonhaste”, conta Gabriela.

Gabriela vive com o irmão, a cunhada e o pequeno sobrinho e está à procura de trabalho.

“Se, por acaso, se apresentarem oportunidades, são muito bem-vindas. Estou à procura de oportunidades, quem dera, na área musical. Adoro trabalhar com crianças. E seria lindíssimo continuar esse trabalho. Na Venezuela tive o trabalho de resgatar a música tradicional do meu país e ensiná-la às crianças para fomentar nelas o sentido de pertença ao país e foi muito bonito”, refere a venezuelana.

E sem que o esperássemos, Gabriela pega no seu cuarto (um instrumento da família da guitarra) e começa por dizer “obrigada por esta oportunidade, por este acolhimento, tão bonitos que nos estão a oferecer. Bragança parece-me um paraíso, não apenas pela sua beleza, mas pela qualidade humana que encontramos verdadeiramente. Quero manifestar isto, porque estou como que alucinada com tanta coisa bonita”.

E de seguida, “em gratidão”, canta uma canção tradicional da Venezuela, uma “malagueña”, que relata o amor de um marinheiro que, “quando está no mar, canta o mar com todas as suas alegrias e as suas tristezas” e, ao ver passar uma jovem, que pertencia a uma classe superior à sua por quem se apaixona, lhe canta o seu amor.

Igreja atenta e solidária

A família Mays está a ser acompanhada e apoiada Serviço Diocesano das Migrações e Minorias Étnicas. A diretora, Fátima Castanheira, conheceu o casal no curso de português para estrangeiros, por si lecionado no agrupamento de escolas Emídio Garcia, em Bragança, e a partir dali não mais os largou.

“Numa fase inicial, eles vinham sem nada, devido aos problemas que sabemos que estão a acontecer na Venezuela e conseguimos encontrar uma casinha muito pequenina, muito modesta, mas essa casa não tinha nada. Foi preciso mobilar, limpar, pintar, arranjar os equipamentos necessários, desde as panelas aos pratos, ao fogão e conseguimos, com a ajuda de muitos voluntários”, conta Fátima Castanheira.

A diretora do Serviço Diocesano das Migrações e Minorias Étnicas destaca que “Bragança é uma cidade muito solidária” e que, por isso, “foi fácil “rapidamente equipar uma casinha muito modesta, onde estão a viver e, entretanto, já chegou o pequenino Diego e as coisas estão a correr bem, estão a melhorar de dia para dia”.

O serviço da Igreja está agora a “tentar orientar a família, a traduzir currículos e a procurar emprego para todos, para que esta família, com formação superior, tenha todas as condições para estarem connosco e ter sucesso em Bragança”.

E, segundo a responsável, aguardam-se, na cidade de Bragança, mais venezuelanos nos próximos tempos e todos serão bem acolhidos.


“Sabemos, por contactos que temos tido, que vão vir mais emigrantes venezuelanos, que são bem-vindos a Bragança. Eles próprios reconhecem que Bragança é uma cidade acolhedora que os está a saber receber e vamos aguardar que sim, que tudo corra pelo melhor, e que seja a cidade de eleição deles e que consigam fazer futuro aqui”, conclui Fátima Castanheira.

Olímpia Mairos
Rádio Renascença

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