O céu chorou! O frio rasgou as carnes! O vento assobiava e entrava pelas frinchas do estábulo onde se recolhiam os animais.
A viagem fora longa, muito longa para quem queria chegar ao lugar para trazer a paz, a vida e o nascimento do amor.
A mulher carregava no seu ventre o Mundo para transformar e criar um outro mundo novo porque aquele estava velho, cego, coxo, podre, paralítico, anímico, sem esperança, desnudado e inflorido.
Seria uma tarefa árdua, um sacrifício superior à vida, uma dor atroz, um morrer por nós e montanhas e templos cairiam sobre os seus corpos humanos.
O anjo tinha-lhes anunciado. Não o dissera em palavras, mas a mãe, antes ainda de O conceber, havia-o adivinhado no seu coração. As mães sempre adivinham as almas a quem sopraram vida! E, tudo aquela Divina MÂE guardava em silêncio.
Naquela noite coberta de estrelas acendidas no céu a tremer de luz, não havia lugar para eles na cidade!
A hora do parto, a mais divina e santa hora das Mulheres, anunciava-se.
As dores martirizantes rangiam rasgando as carnes. Os pés cansados já não tinham chão onde pousar e os olhos abriam-se em clarões de amor.
Foi então que olhando ao fim do beco, uma porta carcomida lhes anunciava um lugar.
Cheirava a feno, a rosmaninho e alecrim. A urze e o restolho do monte entremeado de guiços, atapetavam o recinto aconchegado na média luz da noite.
Entraram. Estava escuro mas logo os seus olhos se adaptaram à escuridão.
Não tinham cama, nem ceia, nem lareira, nem berço, nem parteira, nem candeia acesa! Apenas cá fora brilhavam estrelas!
Uma delas espreitou, desceu e entrou pelo orifício aberto no telhado sem reboco e, aconchegou-os.
Comeram do pouco que levavam, e era tão pouco para tão divina noite!
Por aquecedor apenas o bafo dos animais que pareciam sorrir porque alguém lhes veio quebrar a solidão daquela longa e fria noite de dezembro.
As dores apertaram. Agora mais contínuas!
O pai aconchegou a mãe na manjedoura que tinha mesmo a forma do seu corpo e a igual à da mortalha que haveria de trinta e três anos depois aconchegar também o sono do seu divino filho.
E tudo foi luz, naquele lugar! Tão sós naquele natal! Sem família, sem amigos, sem o ninho da sua casa, hoje distante.
Vieram os pastores! Trouxeram leite e queijo e cobertores de lã para os aquecer e, o brilho da luz do seu olhar. Aqueles pais divinos já não estavam sós. Que desconforto a solidão!
Bastava-lhes a saudade da sua casa, o cansaço da caminhada de dias aos solavancos da burrita, as horas da procura de estalagem para se acoitarem, quanto mais a solidão!
Agradeceram-lhes terem vindo. A gratidão agrada ao Senhor. “Curou os feridos da berma da estrada e só um voltou atrás para Lhe agradecer, ia pensando o menino”.
Mais tarde viriam também os homens da ciência, os doutores da lei, do poder e da diversidade, na figura de três reis. Seguravam nas mãos presentes: o ouro, o incenso e a mirra, para louvarem a grande hora do nascimento de um rei maior que vinha ser o salvador do mundo.
Eles queriam ser os primeiros a testemunhar aquele natal, antes que a luz da estrela que os guiava se apagasse.
A louvar, a engrandecer o momento, a transmitir a boa nova pelos povos de todos os continentes e oceanos.
Ajoelharam, adoraram, beijaram, abraçaram e abalaram por outro caminho.
Agora no presépio de novo, sós!
A estrela que viera, abalara com eles, saindo pelo mesmo buraco do teto esburacado da noite!
Os pastores foram apascentar os gados e tratar das suas famílias, das suas vidas.
Os amigos não vieram porque desconheciam aquele lugar e estavam muito ocupados com os mil e um afazeres; os parentes confiaram na força de alma que aquela família carregava e pensavam serem desnecessários.
Todos faltaram na hora da dor, da solidão, do escuro da noite!
Como aqueles pais divinos, tantas histórias comuns na vida dos homens.
Quantos sem lugar algum que os possa acolher, quantos os que não são profetas na sua própria terra, quantos os que mordem solidão a cada hora sem que os seus irmãos os venham confortar!
E há ainda muitos outros sem um lugar ao sol que os possa acolher!
São os filhos da guerra e do desamor, são os que nascem escravos sem tempo para serem meninos, são os sem pão, sem palavra, sem lar, vagueiam à procura da luz, sem ninguém que lhes estenda o farol do seu olhar!
São os milhares perdidos nos escombros de vidas inúteis e desencontradas!
Os que amealhando uma vida, tudo perderam num incendio, numa catástrofe natural.
Para estes e os outros, jamais haverá natal ou sequer uma migalha para a ceia, enquanto outros se banquetearem sem remorsos de tanta desigualdade humana.
Nem natal, nem presépio, nem afeto, nem luzes catrapiscando, nem afago ou comunhão seque à mesa do senhor porque os homens da cidade não têm lugar para eles no coração.
Há ainda outros que lutaram, suaram, caminharam, fizeram estrada, amaram, plantaram árvores, tiveram filhos, escreveram livros e, contudo, raramente têm um lugar para eles um lugar ao sol sonhado com amor.
Porque…
Enquanto não houver um lugar, no coração dos homens onde caiba inteiro o AMOR, jamais será natal.
Donzília Martins
(Texto inédito, 22 de novembro de 2017)
in:altm-academiadeletrasdetrasosmontes.blogspot.pt
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