quinta-feira, 9 de setembro de 2021

Pela Ladeira do Arrebentão III

(continuação do número anterior - final do «Conto»)

A mêo da tarde do dia seguinte regressamos a Valdasmós para virar o feno. E passados mais dois dias voltámos lá para trazer a carrada.
Puseram-se ao carro as varas compridas ou grade, com duas estadulhetas à frente e duas atrás, para carregar mais feno que até batia no cachaço dos beis. Até as velhas engarelas deram lugar a umas novas e de estadulhos mais altos.
Com o feno já junto em pequenos montes preparados para a forcada e mandar para o carro, o meu Pai e o meu irmão avaliaram, em pormenor e desenharam mentalmente, como deviam sair do lameiro encosta sobessa acima, rumo à Ladeira do Arrebentão.
A Ladeira do Arrebentão era o «Cabo das Tormentas» da minha aldeia. Só os lavradores mais destemidos se aventuravam com um carro carregado Arrebentão acima.
O feno engoliu engarelas, estadulhos, mesmo os dois estadulhos de volta. Dos bois apenas se viam os pescoços, as molidas e os focinhos.
O meu pai calcou munto bem o feno, segurou-o com as trabincas e foi bem atrabincado com uns laços mais grossos e novos. Depois de carregado o último montão de feno apertou-se o carro com a grande corda carral. Foi puxada e apertada até mais não poder, começando por baixo dos estadulhos de volta, correndo da frente para trás os barbiões traseiros e daí, feitas as lançadas retesadas, as cordas voaram em cruz para os barbiões da frente. A corda ia retesando e a lançada selava o aperto perfeito, corda a corda, aos quatro tornos dos barbiões e todos a puxarmos, à voz profunda da alma do meu pai: - Óh… Oupa!.. Óh… Oupa!... Óh… Oupa!... Já está bem! Não vais mais! 
O carro de feno mais parecia uma tela viva saída dum mágico artista do naturalismo. Apertada a última corda, o meu Pai lembrou o dito popular: «o carro bem apertado ajuda o velho cansado». E mandou o Manuel tocar os beis até ao portal a poente. Era um carreto de respeito. A saída de assobessa deixou o Lila em desvantagem do lado debaixo e o meu Pai picou-o na ilharga, em simultâneo com três ou quatro pancadas secas nas baras do carro: - Uah! Utah! Ei valente! Às vozes de afouto que vararam o silêncio do calmo entardecer deixaram o Lila em pânico e urrou. O urro, cavernoso, cortou o Vale. Fiquei arrepiado e a viver uma das minhas maiores odisseias do campo. O Castanho já estava experimentado e apenas deitava a enorme língua de fora. Um pouco mais à frente, em terreno mais chão, mandou parar os beis: - Óh! Calços nas rodas e o Lila batia o fole como nunca com a língua de fora a assar. Foilhe afagado o focinho e acarinhado com palavras mansas e amigas. Recompostos venceram a Estrada de Vale das Mós e arrouçaram à direita, deixando atrás a Estrada da Formigosa e iniciaram a dura e temida Ladeira do Arrebentão. Descansaram umas três ou quatro vezes até chegarem à subida mais a pique. A Ladeira do Arrebentão tinha de ser vencida como se lavrador e todos os que estivessem por perto fossem um só, ao lado dois bois ou de ombro a puxar até mais não poder. Se os beis se negassem na subida podia ser uma tragédia! O carro podia chimpar-se e apanhar alguns de nós debaixo, ou os beis aleijarem-se e até algum morrer.
No Alto da Portela, aparece o Arnaldo Falcão, lavrador do casal do Capitão Ilídio Esteves, com a junta de beis, como dois castelos, a descer para nós. Era a junta para acamboar.
Depois de presos ao carro por uma segunda corda carral o meu Pai dá a ordem: - À minha voz os dois arrancam e param e os calços ou pedras para travar as rodas têm de ser postas nesse instante. O meu Pai lançou das entranhas da alma um cortante e cavernoso grito: Uah!... E foi secundado pelo Manel e pelo Falcão com vozes menos cortantes, mas de incitamento sem reserva aos animais.
O Lila lançou um urro preocupante. Ào «óh!» do meu Pai estacaram as duas juntas e o carro foi calçado em dois segundos, com duas pedras nas rodas, para não ir encosta abaixo arrastando juntas e lavradores.
A carrada, Arrebentão acima, revoltou as entranhas do Lila que ficou todo borrado de bosta e o Castanho um pouco menos. Foram afagados e amimados para que a coragem e a força não quebrassem.
No segundo lanço vencia-se o troço mais perigoso.
Ao: - Uah!... Utah, valente!... O carro começa a subir com dificuldade e todos metemos ombros ao carro, puxando quanto podíamos. O Lila urrou e ajoelhou, mas com uma picada à ilharga do meu pai e um afoutar de alma, seguido de fortes batidelas com a aguilhada nas baras e cambas do rodeiro ergueu-se. Com dois ou três urros mais lúgubres foram vencidos os quinze metros mais difíceis.
O Arnaldo no seu estilo teatral e estridente quebrou o silêncio:
- Óh Ti Eugenho o Lila é melhor do que parecia. Faz-se um bei bô! A carrada é balente ninguém nas redondezas se astrebia nesta subida! Temos que ser uns prós outros.
- Vamos ter cuidado no último lanço, num bá algum bei negar-se e arranjarmos das boas – sentenciou o meu Pai.
O Falcão sabia que não se podia facilitar com o meu Pai. Ele media a força das juntas, o peso do carro e a dificuldade do terreno. Eu nunca lhe vi os bois negarem-se e ter que se desfazer a carrada. Desfazer a carrada era uma humilhação porque alguns da aldêa atiravam, com piadas e mangações pelo mêo.
No último lanço o Lila urrou mas eram urros mais confiantes e tinha vencido a prova de fogo, com ajuda de todos. Já podia fazer a acarreja tranquila porque ganhou a confiança e coragem para os grandes desafios das fainas agrícolas. Solta a junta do Falcão de acamboar no croeiro do Alto da Portela, preferiu vir atrás do carro e dar dous dedos de conversa com o mou Pai. O resto do caminho foi mais aliviado.
As cantadeiras e o eixe executavam um chiar triunfal e os homes do pobo já noute foram-se chigando para o terreiro do tanque para ver que carro era aquele com um canto triunfante.
Chegados ao Largo do Curral da Dona Elisa (do Casal de Vassal) o mou Pai disse que se descarregava o feno na madrugada seguinte porque não era bô andar com lampiões no meio do feno e uma desgraça pode calhar quando menos se espera. No dia seguinte não quis perder a ocasião para escachouçar e calcar o palheiro do feno, tendo uma sensação de liberdade.
Mesmo criança trabalhava e divertia-me, feliz da vida como nunca. Hoje, o trabalho faz parte da minha vida, dando-me prazer.

Mirandela, 21 de Junho de 2017
Jorge Lage
in:atelier.arteazul.net
PARTE I
PARTE II

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