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O céu estava azul como num dia de Verão, mas a temperatura matinal já era de Outono. A estrada estreita e quase deserta serpenteava entre uma paisagem a querer tingir-se, ainda timidamente, dos vermelhos e amarelos da época, e os castanheiros acompanharam grande parte do caminho assim que deixamos a auto-estrada, carregados de ouriços verdes, que o fruto, este ano, está atrasado, dizem-nos. O meu colega disse algo como “o nosso trabalho até nem é mau” ou “a nossa vida até não é má”, o que, em tantas ocasiões e horas e dias vai, de resto, dar ao mesmo.
É verdade. Por cada 20 dias que passamos presos na redacção, agarrados ao telefone ou a aturar serviços chatos, temos um dia assim, para fazer esquecer os outros. Um dia em que andamos na rua, vamos a uma aldeia, temos castanheiros por companhia e boas refeições. Não luxuosas ou cheias da sofisticação de um qualquer chef (que também as há, às vezes), mas daquelas que são oferecidas com tanta sinceridade e simpatia que não podiam saber melhor.
Neste dia de céu azul, em que o trabalho nos levou a uma aldeia de Vinhais, acabamos a comer em casa de uma das entrevistadas — nós e outra das pessoas com quem íamos falar, e que foi intimada a sentar-se também à mesa. No fogão, uma panela grande recebia, desde o final da manhã, marmelos uns a seguir aos outros, que eram cozidos com casca, para serem transformados, mais tarde, em marmelada. À mesa, havia um pão grande, daqueles a que se arrancam fatias saborosas, segurando a faca bem afiada com uma mão. Num prato, pequenas rodelas de chouriço e pedacinhos de presunto pediam para ser pousados no pão. Uma caneca de vidro estava cheia de vinho tinto, feito a partir das uvas da dona da casa, de 84 anos. A sopa de cuscos abriu-nos o apetite e os milhos que se seguiram, acompanhados de uma omeleta de cogumelos, eram verdadeiramente deliciosos. O tacho grande, pousado no centro da mesa, foi-se esvaziando à medida que os pratos se enchiam de novo. Para quem ainda tinha estômago (e já ninguém tinha), havia queijo com marmelada caseira, ainda do ano passado, mas tão saborosa como se tivesse acabado de sair do tacho (já a provara de manhã, quando uma mais do que generosa fatia aterrou num pedaço de pão e me foi passada para as mãos, sem direito a reclamar que aquilo era demasiado), castanhas pequeninas, as primeiras do ano, peras e maçãs dos campos da dona da casa.
Dessem-me a escolher e, naquele dia, não quereria qualquer outro almoço. O nosso trabalho até não é mau, de facto. Sobretudo em dias assim, em que além da formalidade de uma entrevista ou uma conversa para um serviço, podemos esticar o convívio um pouco mais com alguém que, há poucas horas, nunca tínhamos visto. Sorrir perante a fotografia dos bisnetos que nos mostra ou deixar-nos levar pela mão que, sem o esperarmos, se agarra à nossa, para nos mostrar o terreno que lhe pertence. Ou as hortaliças a crescer, o diospireiro carregado de frutos ainda verdes ou as pêras que, sem ninguém que as consiga comer todas, vão caindo ao chão, morrendo por ali.
São momentos raros e preciosos, que, por isso mesmo, se tornam inesquecíveis. Este aconteceu agora, mas não é único. No ano passado, perto da aldeia de Regoufe, em Arouca, também não nos deixaram partir sem almoçar na casa do homem que, pouco antes, nos mostrara o pinhal que perdera para o incêndio que ali passara em 2016. A hora do almoço já se extinguira há muito, quando, também aqui, o pão farto, um salpicão e vinho nos saciaram a fome, permitindo prolongar a conversa um pouco mais.
Mas, talvez, a mais comovente destas refeições tenha acontecido no Caramulo, no dia em que um dos incêndios que ali deflagraram matou uma bombeira, em 2013. Andávamos desde manhã a percorrer aldeias, a atravessar estradas ainda ladeadas por chamas, quando recebemos a informação de que haveria uma vítima mortal em Muna. Fomos para lá, recolhemos a informação. A tarde já ia a meio, ainda não tínhamos comido e parámos junto a uma mercearia à face da estrada. Perguntámos se se arranjava uma sandes, qualquer coisa para comer. A mulher disse logo que sim. Cortou fatias de queijo e presunto. Apresentou-nos pão bem recheado, escolhemos fruta e pedimos uma garrafa de água. Comemos ali mesmo, antes de seguir viagem.
No final, a dona da mercearia não queria aceitar o dinheiro. Insistimos, mas ela dizia que não. Não dissemos quem éramos nem o que andávamos a fazer, mas ela ouvira-nos certamente conversar enquanto comíamos, e percebera. Quis, assim, contribuir com alguma solidariedade para quem andava a trabalhar e a contar a desgraça que lhe caíra à porta e à dos vizinhos. No final, depois de muito insistirmos, aceitou que lhe pagássemos apenas a garrafa de água. Não há mesa farta que substitua isto.
Patrícia Carvalho (Jornalista)
Nasci no Porto, fiz a licenciatura em Ciências da Comunicação na Universidade Nova de Lisboa, entre 1993 e 1997, e estagiei no Jornal do Letras. Apesar da insistência de chefes e colegas para ficar pela capital, preferi voltar a casa e estive com a equipa que abriu o 24horas no Porto. Saí ao fim de um ano, para O Comércio do Porto, onde fiquei até ao seu encerramento, em 2005. Antes de ingressar no PÚBLICO, em 2008, colaborei com várias publicações, incluindo a Grande Reportagem, Visão, Notícias de Sábado e Sábado. No PÚBLICO, integro, desde a minha chegada, a equipa do Local Porto, mas fui sempre participando em outras áreas do jornal, com trabalhos para o P2 ou a Pública (que, entretanto, terminaram), a Fugas ou, mais recentemente, a revista 2.
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