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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

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COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

sábado, 27 de outubro de 2018

PIRUÁ NA PONTE

Por: Antônio Carlos Affonso dos Santos – ACAS
São Paulo (Brasil)
(colaborador do Memórias...e outras coisas)




ESTE CONTO, CRIADO EM 1975, FOI VENCEDOR DA FASE REGIONAL DO MAPA CULTURAL PAULISTA DE 1999, NA MODALIDADE CONTO, REALIZADA EM TABOÃO DA SERRA- SP-BRASIL. TAMBÉM FEZ PARTE DO TERCEIRO LIVRO DESTE AUTOR. ELE ESTÁ À PÁGINA 61 DO LIVRO “FRAGMENTOS”, PUBLICADO PELA EXTINTA EDITORA NATIVA, DE SÃO PAULO, BRASIL, EM 2004.

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Ela era a “primeira dama” da cidade de Matozinhos quando tudo aconteceu. E casada com o candidato a prefeito e único cirurgião dentista da cidade: doutor Barromeu. A campanha do Dr. Barromeu foi uma campanha pobre. Como membro do PARTIDO, ele se orgulhava em ter tirado uma foto ao lado do Dr. André Monteiro, ilustre político, cujo maior orgulho era ter aprovado na década de 50, uma lei intitulada “salário não é renda”. O Dr. Monteiro era uma espécie de ídolo do dentista- prefeito, a ponto do mesmo ter em seu consultório, em quadro emoldurado, uma foto com “o grande líder político nacional”; além de uma curiosa cópia Xerox de uma chapa de raios-X da boca do Dr. Monteiro, também emoldurada. Como estava dizendo, a campanha do Dr. Barromeu foi feita sem gastar um centavo do próprio bolso. Com a colaboração de US $ 600, que o partido lhe enviou para a campanha, comprou material para dentaduras e pediu para um compadre espalhar a notícia que quem votasse nele ganharia uma dentadura ”novinha em folha”. Dito e feito: três meses antes das eleições, ele despachava defronte ao seu consultório, onde havia uma fila enorme de peões das fazendas acompanhados de suas famílias, pedindo próteses e etc. O movimento foi tão grande que proporcionou o primeiro engarrafamento de tráfego da história de Matozinhos: a rua do consultório ficou repleta de charretes, cavalos arreados, tratores mal estacionados, carroças e etc., o que não permitia que nenhum outro veículo passasse pelo local. Há uma semana das eleições, o Dr. Barromeu já liderava as pesquisas populares com tal fulgor, que foi agraciado com a notícia que o Dr. Orestes, braço direito do Dr. Monteiro e seu herdeiro político, iria visitá-lo em suas “bases eleitorais”, como prêmio à campanha fantástica que estava fazendo. O Dr. Barromeu providenciou banda de música e mandou preparar um almoço de gala, em homenagem à primeira visita de um “político de projeção mundial” à cidade. Na hora marcada, quase toda a população de Matozinhos já estava junto ao acesso da Rodovia Anhanguera, distante 50 km. Lá estavam: o juiz de paz; o Beloso, farmacêutico; o Dito Preto, primeiro jogador profissional de futebol famoso  de Matozinhos (que fez um gol na final do campeonato da segunda divisão de 1970); o padre Alex, um irlandês gordo que comia tudo que via pela frente; o delegado, o coveiro da cidade, que não enterrava ninguém há dois anos; as beatas da igreja e todos os seus afilhados de batismo, crisma e casamento; além de uma dúzia e meia de curiosos.

Quando a comitiva oficial do PARTIDO chegou, com atraso de três horas, não havia mais nenhuma animação: cinco membros da banda tiveram que ir embora para “tratar dos porcos”; o padre Alex foi vítima de uma diarréia fortíssima, (consta-se que havia comido escondido todo o bolo recheado com doce de leite que foi levado pela “primeira dama” para o memorável encontro); dois de seus afilhados haviam se embrenhado no mato atrás de tatus que passaram por ali, ao acaso. Debaixo do foguetório, um dos cavalos das charretes assustou-se com as explosões e saiu em desabalada carreira, levando de roldão, pessoas, cachorros, e outras charretes. Sem ninguém para dominá-los, os cavalos com suas charretes derrubaram no mínimo umas quinze pessoas, inclusive o Dr. Orestes, que, por isso mesmo, enraivecido ao ver-se diante daqueles pobres amarfanhados e desgrenhados, decidiu que já era tarde e que não entraria mais na cidade; e foi embora debaixo de vaias. No instante em que o Dr. Orestes ia saindo, a primeira dama tentou, num gesto de desespero, servir-lhe o bolo, retirando a delicada toalha bordada: - na bandeja não havia nada além de farelos, ao que uma beata lhe falou que foi o padre Alex quem comera o bolo. Nossa heroína disse um impropério tão grande, que o sacristão deu-lhe um murro na boca, quebrando-lhe dois dentes, bem os da frente. Desacorçoados, voltaram todos para casa. Nossa heroína não quis conversa com ninguém, nem mesmo com o marido.

As eleições transcorreram sem nenhuma novidade: o Dr. Barromeu teve uma espetacular votação, vencendo já no primeiro turno. Um dia após a promulgação do resultado, o Dr. Barromeu cumprindo a promessa, começou a entregar a segunda parte das dentaduras, mas o movimento foi tão grande que o material protético acabou-se. Só então lembrou que a posse seria no dia seguinte, no palco do Cine-Teatro Éden, e que havia prometido resolver o problema dos dentes da primeira dama. Esta lhe exigiu categoricamente que, ou ele lhe consertava os dentes ou não iria à posse. O Dr. Barromeu raciocinou rápido; não seria possível ser empossado sem a sua querida esposa. Levou-a, mesmo de madrugada ao consultório, e foi raspando aqui e acolá os restos dos materiais, até conseguir  refazer os dois dentes para a sua amada. Na verdade, os dentes ficaram um pouco mais escuros do que deveriam, e um pouco menores. Na hora de colocar os dentes, a constatação devastadora: não tinha sequer um grão de cimento protético. Ante a reação irada da esposa, resolveu colar a “ponte” com cera de abelha. Fez então recomendação à esposa que por nada deste mundo comesse algo sólido ou líquido quente até o final da cerimônia, e que após a posse ele iria resolver o problema definitivamente.

E como foi difícil passar o dia, para a primeira dama: - jejuou até a noite. A única coisa que tinha no estômago eram três copos de leite frio. Durante os discursos que antecederam a posse, seu estômago roncava de fome: ela disfarçava, ele roncava de novo e ela novamente disfarçava. Começou então a sentir náuseas, suor frio, mãos molhadas, e ainda assim disfarçava. Quando a chamaram ao palco, junto ao seu Barromeu, procurou parecer orgulhosa, e estava - só que com muita fome. Para sua surpresa, ao anunciarem o nome do novo prefeito, em meio a murmúrios, aplausos, vivas e etc., viu o seu Barromeu retirar dos bolsos, várias e várias folhas, datilografadas, com o discurso de agradecimento. E a barriga roncava. Uma hora depois, o discurso ainda continuava, e ainda com muitas folhas para serem lidas; nossa heroína quase não resistia à fome e ao mal estar: sentia que ia ter uma vertigem. Nesse exato momento, um seu afilhado aproximou-se com um grande pacote de pipocas, amanteigadas, apetitosas, suculentas, quentinhas: nossa heroína pensou rápido, e viu que não era possível manter-se em abstinência e tomou o pacote de pipocas do afilhado e começou a comer vorazmente, acintosamente, desmesuradamente. Que delícia, que sensação gostosa, que quentinho bom na barriga. Mas, de repente: CRÁU..., e lá se foi a “ ponte dentária”. O pior que podia acontecer, aconteceu: a ponte caiu no piso do palco, onde todos os cabos eleitorais e oportunistas de plantão começavam a aplaudir freneticamente o novo prefeito. Nossa heroína pensou rápido e viu que não era possível aparecer, justo agora, sem os dentes. Quando o novo prefeito a viu de cócoras remexendo os papéis do chão do palanque, desconfiou: “a ponte caiu”, pensou. Imediatamente, o novo prefeito se abaixou e pôs-se também a procurar, em meio aos asseclas estupefatos e à chicletes molhados. E ordenou: encontrem a “ponte”! Mesmo sem saber à que ponte o prefeito se referia, puseram-se todos a procurar.

Posso garantir aos leitores, que a ponte que caiu jamais foi encontrada. A festa não teve um final, pois os espectadores que estavam assistindo aquela profusão de pessoas acocoradas no palco não entenderam nada e depois de uma hora de espera, desinteressaram-se e foram embora para as suas casas.

Posso afirmar também que, ninguém na cidade entendeu uma notinha que saiu na primeira página da “GAZETA DE MATOZINHOS”, uma semana depois da posse: estampava uma foto da primeira dama, toda desgrenhada, descabelada e amarfanhada, com um grande sorriso “sem jeito”, exibindo uma falha de dentes, uma verdadeira janela, com uma manchete em letras garrafais:

NA POSSE DO DR. BARROMEU, NOSSA PRIMEIRA DAMA DISSE COM EXCLUSIVIDADE PARA “A GAZETA”: TINHA UM PIRUÁ NA PONTE.


Antônio Carlos Affonso dos Santos – ACAS. É natural de Cravinhos-SP. É Físico, poeta e contista. Tem textos publicados em 8 livros, sendo 4 “solos e entre eles, o Pequeno Dicionário de Caipirês e o livro infantil “A Sementinha” além de quatro outros publicados em antologias junto a outros escritores.



GLOSSÁRIO

PIRUÁ= O GRÃO DO MILHO PIPOCA QUE “NÃO ESTOURA”. PALAVRA DE ORIGEM TUPI, CUJO SIGNIFICADO É ALGO COMO “BOLHA”, OU “EMPOLA”, EXATAMENTE A FORMA FINAL DA PIPOCA NÃO FINALIZADA. .

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