sexta-feira, 17 de julho de 2020

A CAMICASE DA AVENIDA POLITÉCNICA

Por: Antônio Carlos Affonso dos Santos – ACAS
São Paulo (Brasil)
(colaborador do Memórias...e outras coisas)


Estava acostumada ao medo dos homens que passavam àquela hora por aquela avenida e por aquele semáforo.  Não a viam como ser humano, e nem sabiam ser humanos. Estavam todos meio perdidos, meio apavorados. Vingava-se quando saía com a cabeça rebentando ao sol e o vento lambendo as vistas. Os dias se faziam tão bonitos, agora que as ruas estavam vazias, era uma coisa linda, linda; mas eles eram privilegiados que não podiam ver. Vez ou outra, ela se aproximava de um carro de luxo, último tipo e importado. Sentia vergonha de que os ocupantes se apressassem em fechar os vidros, antes que ela se aproximasse para pendurar as balas no retrovisor. Alguns até recolhíamos retrovisores, para que ela não tivesse onde pendurar a embalagem das balas; já que os vidros estavam sempre fechados.
As caras dos ocupantes, ela jamais poderia descrever, pois, invariavelmente elas estavam de máscaras. Todos tinham medo que ela lhes tocasse, ou espirrasse ou cuspisse na direção dos seus carros. Aprendeu, por osmose, que haveria de ter sempre uma garrafa ”pet” de dois litros com água, para lavar as mãos à vista dos motoristas que parassem no semáforo. As balas, em pequenas embalagens em que, num texto desesperado, resumia sua necessidade de vender as balas para prosseguir vivo, além dos familiares que dependiam do dinheiro que ali ele pudesse angariar. Ela já havia sido vítima de buyling, de assédio sexual, como naquele dia em que chovia e que após mais de três horas no semáforo da avenida com pouquíssimo trânsito, devido ao isolamento social do C-19, ela olhou nos olhos do motorista do carro, em que, silenciosamente, pedia encarecidamente que ele comprasse as balas. O motorista lhe perguntou quanto ela ganhava por dia, fazendo aquele trabalho. Ela disse que antes da pandemia, chegava a tirar cinquenta reais por dia; mas que agora tirava, no máximo, vinte reais! E ele lhe fez uma proposta: 
- Se você for comigo a um motel, eu lhe dou cinquenta reais!
Naquele dia ela, em desespero, saiu correndo do semáforo chorando profusamente. E deixou de aparecer no semáforo, seu ponto de venda das balas, por cerca de uma semana! Em verdade, ela não queria mais vender as balas, mas a falta de alimentos em casa, o choro dos irmãos menores famintos e os lamentos da mãe doente e viúva, não lhe deram alternativa: teria que voltar a vender as balas, com máscara, garrafa pet cheia de água e etc.; recomeçar era necessário e imperativo! Ela já sabia de muita coisa que acontecia ao seu derredor, em que pese seus quatorze anos de idade. Convivia com traficantes, trabalhadores, ladrões, concubinas, putas, homossexuais, aviões do tráfico e etc.. Amigas e amigos que já eram pais ou mães aos doze, treze anos de idade, fato que tornava a vida dos avós ainda mais difícil; às vezes, numa casa de cinco pessoas, só um tinha renda, aposentadoria. Os outros faziam inconstantes biscates, nem sempre, nem tanto honestos. Ela ainda era virgem; coisa rara para meninas da sua idade na comunidade onde vivia, mas já havia beijado muitas vezes. Tinha medo do Covid-19; porém se perguntava: 
- O que há para proteger em um mundo em que não é possível beijar?
Ela achou aquilo tudo muito poético e anotou no caderninho onde escrevia seus pensamentos para a posteridade, ciente de que também seria abatida a qualquer momento pelo vírus; a febre faria escorrer sua existência pelo mesmo esgoto de onde tinha surgido. Deixou o caderninho ao lado da garrafa com água. Quem sabe a nova civilização normal que aparecer, quando descobrirem a vacina e a cura, me encontre, pensava. Ela gostaria de ser atriz da TV, ou cantora, ou manequim.
Quem sabe ela conseguisse se revelar para essas pessoas do futuro, como a dizer: eu existi. Eu estive aqui! Ela apenas queria viver a vida dela. Então imaginava se alguém pudesse pedir-lhe para contar como era desbravar as ruas todos os dias, como se não existisse um inimigo invisível na espreita. Ficava respeitosamente silenciosa, enquanto pensava em uma ida até a Praia Grande, ao Ibirapuera ou ao Parque da Cidade tomado pelo mato; com suas pontes tombadas pela última enchente de há dois anos; lá, aonde os passarinhos vinham buscar comida em sua mão, apenas porque era tão raro aparecer alguém! Vez ou outra se via uma pessoa, caminhando dentro de macacões emborrachados feito invasores de uma cidade radioativa. 
Ela sentia muita tristeza e cansaço, porque eram tempos de tristeza e cansaço! Reconheceu que tinha medo também; estava do lado de fora do isolamento afinal; serviços essenciais eram permitidos e, para ela, conseguir meios para sobreviver era muito mais que essencial! E se espantou o sentimento incômodo com um sorriso amarelo. Sou uma camicase; pensou!
O sol, escondido sobre o nevoeiro invernal de São Paulo, não compareceu naquele dia. Ela perguntou as horas para uma velha senhora que dirigia um carro caindo aos pedaços: 
- São três da tarde; respondeu.
A camicase se lembrou de que, naquele dia não havia comido nada. As três bananas que havia em casa, ela deixou para a mãe e os dois irmãozinhos.Também se lembrou de que o córrego com o esgoto que passava em meio da avenida, sempre fedorento, havia deixado de deixava de cheirar mal nos últimos dia! A cabeça rodopiava, doía; faziam-na tonta. Sentiu um suor frio, um mal estar dos infernos, sentiu falta de ar, dor nas costas e coriza no nariz e nos olhos.olhou para o céu e pediu proteção aos céus. O semáforo estava fechado.ela se encaminhou para os primeiros carros com a embalagem de balas na mão, uma vertigem, um barulho, a escuridão, carros freando, tumulto, vozes, sirenes!
- O C-19, levou mais uma sobrevivente camicase para o céu!


Antônio Carlos Affonso dos Santos – ACAS. É natural de Cravinhos-SP. É Físico, poeta e contista. Tem textos publicados em 8 livros, sendo 4 “solos e entre eles, o Pequeno Dicionário de Caipirês e o livro infantil “A Sementinha” além de quatro outros publicados em antologias junto a outros escritores.

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