Modos de vida e de ser que se perpetuaram nos séculos e que frequentemente ainda chegaram até aos meus anos de menino e moço nado e criado nas serranias que aconchegam as versas numa poética infância mesmo que sem versos.
Tenho a perfeita noção hoje em dia neste meu e seu quotidiano feito de modernidade e com coisas de muito espanto, de que privilegiadamente ainda tive um pé num mundo que se foi. Consegui e consigo ver coisas que há duzentos anos ou mais se viviam e sentiam. Foi uma sorte.
Ainda sou do tempo em que se não passava nos cruzamentos dos caminhos pela meia noite, em que se acreditava em lobisomens e em bruxas disfarçadas sob a forma de caldeiros velhos nas bermas dos caminhos, e em que se penava porque se não acreditava em dias melhores.
Consigo por isso perceber que o calcorrear de um caminho se fazia com ele a entrar por uma pessoa adentro numa envolvência que dava afagos com as particularidades de cada metro, de cada parede, e de cada paisagem em momentos irrepetíveis porque tudo mudava a cada hora apesar de parecer tudo estar na mesma.
No pequeno cosmos que era cada aldeia, entre todos os animais domésticos, os bois eram de primeira importância. Impunham-se pelo tamanho e pelo préstimo. Cabia-lhes a função de acrescentar força a quem pela força da vida ensopava o suor do rosto com titânicos esforços quantas vezes a troco de uma simples sopa na mesa.
A importância de uma casa de lavoura começava por medir-se pelo facto de ser ou não detentora de uma junta de bois, e a riqueza de uma terra aquilatava-se pela quantidade delas em posse dentro dos seus limites e por entre as suas gentes.
Ser-se possuidor de um carro de bois dava estatuto e posição, pois era sinal de que se possuíam muitos bens ao luar e que se tinham de rogar muitos homens e mulheres para trabalhar. Animais de carga e seres humanos contribuíam para o desenrolar da vida lento e harmonioso, ainda que muito pouco justo.
O moço dos bois, que não tinha necessariamente que ser rapaz e nem sequer era tido como importante entre os pares e os patrões, tinha um papel de primeira apanha nas dinâmicas do granjeio e das inúmeras labutas em redor dos cereais e das vides e em lameiros mais cuidados que as próprias vidas.
Aparelhava e pensava os animais, condicionava e conduzia os carros de bois por entre ruas e carreiros. Com o aguilhão dava-lhes ordens de marcha e com a voz dava-lhes ordens de avanço e de paragens. Com o assobia, indicava-lhes o momento de beber a água vertida da fonte para o tanque.
Com os carros de bois, transportava-se tudo. Lenha para o lume, trigo para se malhar na eira, batatas arrancadas do campo para a loja, uvas para serem pisadas no lagar, e pipas de vinho para serem entregues por vezes bem longe aos compradores do costume em viagens de horas infindas.
Mas o que valia mesmo a pena para quem fosse rapaz ainda isento das preocupações da vida, eram as viagens nas chedas. Estas eram dois prolongamentos pontiagudos na parte traseira dos carros de bois com a função essencial de nelas se passarem as cordas que davam sustentação à carga transportada.
Muitas vezes os rapazes nelas encavalitados faziam parte dela por mero deleite como era o meu caso. O moço dos bois de quem eu mais gostei, foi um que era mouco. Não ouvia e só via em frente. Quase nunca se apercebia ao suplemento de carrego sob a forma de esporádicos e fugidios passageiros.
Não ouvia ele, mas ouvia eu. Ainda hoje ouço o chiar daquele carro de bois guiado por aquele moço, que sem saber, abriu uma rilheira na minha cabeça por onde ainda escorrem estas lembranças. Que Deus o haja.
Manuel Igreja
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