A vida de barqueiro não era então das piores; e o José da Anastácia com o seu bom gênio constante e o sorriso obsequiador, em que mostrava os dentes amarelados pelo tabaco, quase da cor do rosto requeimado pelas soalheiras do Tejo, conquistara as simpatias de muitos, que preferiam o bote dele e a viva conversa do algarvio, a velocidade pacata dos churriões da companhia.
Era vê-lo quando, por exemplo, tinha de transportar até ao Terreiro do Paço a família do conselheiro, azafamado, logo desde manhã, lavando o bote, arranjando o toldo, remendando a bandeirinha portuguesa, dádiva das meninas, e que flutuava lá no alto, no ângulo de vela, com mais donaire e, com o ser pequena, mais orgulho que a bandeira branca de cruz vermelha duma nau da Índia.
O conselheiro, muito amigo dele, nunca lhe chamava senão o Ventura. Tinha-lhe ficado a alcunha. E bem a merecia, quando, sentado ao leme, com a mão junto aos sobrolhos e os olhos piscos por causa do sol, todo cheio de si e do seu barco, sorria satisfeito, vendo a bandeirinha a flutuar lá em cima, e a proa do bote, um pouco tombado, riscar o espelho azul, em que as ondas só lá muito longe se encarneiravam, nas Bailadeiras, . junto ao Pontal de Cacilhas.
E os véus azuis das filhas do conselheiro esvoaçavam alto, erguidos pelo vento.
A volta, como não havia pressa, preferiam vir a remos. O José, para entreter, contava histórias e fazia reflexões, que as meninas aprovavam, meneando lenta- mente a cabeça, sentadas uma de cada lado do barco, fitando os olhos nas margens do Tejo que deslizavam lentamente. E ele, fincados os pés no banco dianteiro, de mangas arregaçadas, deixando ver os músculos possantes dos braços cabeludos, duros como seixos e palpitando com o esforço, sorria numa felicidade santa e levantava compassadamente os remos, donde caíam enfiadas de pérolas, que os últimos raios de sol cravejavam de pontos luminosos.
A Anastácia, uma velhinha, que morava numa água- furtada, quase ao cimo da Calçada da Ajuda, benzia-se reconhecida cada vez que o José entrava em casa, atirando para cima da mesa os ganhos do dia; e, pegando na cabeça do filho com ambas as mãos, enterrando os dedos rugosos na basta grenha emaranhada, beijava com ânsia, mil vezes, sobre os cabelos secos e duros, o amparo querido da sua viuvez.
Ele, um homenzarrão com vinte e tantos anos, adormecia, logo depois da ceia, com a cabeça reclinada no colo da mãe, cansado, mas feliz, contente naquele ninho.
— José, vamos, acorda — dizia ela, dobrando o serão, quando na torre da Boa Hora batiam vagarosamente as dez.
O José levantava a cabeça e passava a mão pela nuca, cheio de sono.
— Que é isso homem? Põe-te em pé, pedaço de mandrião!
Com os olhos meio cerrados, encadeado, dirigia-se então para o quarto, murmurando:
— Sua bênção, minha mãe.
E não pediam a Deus senão um futuro de dias assim.
Pelos fins de outubro, uma tarde, o José lembrou-se de deitar por ali afora, até Monsanto.
Ia passeando devagarinho.
O vento soprava do noroeste. Ao meio-dia tinha dado aquela volta, e o José achava-lhe jeitos de querer saltar para a barra. Quando chegou ao cimo da serra, viu o Bugio rodeado de espuma e as ondas caindo alto, lá por detrás, ao pé da Costa.
Diabo do inverno! Começava cedo.
O sol descia. O José parou um bocado a vê-lo mergulhar na espuma.
Começou soprando mais rijo o vento e, quando o sol desapareceu, fechava o horizonte uma listra negra, franjada de ouro, que ameaçava engrossar.
Pois paciência! Felizmente lã estavam na gaveta as economias do verão. Todos os anos havia inverno e na casa dele nunca houvera fome, graças a Deus.
E o José levou a mão ao barrete.
Sentia-se feliz, não tinha cuidados, o dinheiro entrava- lhe pela porta dentro; teria até demais, se fosse a comparar, porque a ele nada lhe faltava e a muitos faltava tudo.
Lembraram-lhe então certas histórias.
Aquela mulher a quem uma vez alugara o bote, porque a encontrara a chorar no largo. Tinha deixado os filhos sozinhos em Caparica e estava ali com um vintém na algibeira; e ele alugara-lhe o bote pelo vintém, que aceitara, porque não queria envergonhá-la. E outra vez que ele se escondeu para o conselheiro o não ver e alugar o bote ao tio Mateus, que havia dois dias não trabalhava e tinha a filha doente em casa, a tossir, a tossir, e ele sem dinheiro para lhe comprar o cáustico?
Havia tanta pobreza!
Ele, nada lhe faltava e até na algibeira trazia quase sempre uns cobres, para o que desse e viesse.
E como levava sede, entrou numa taberna e pediu dois decilitros.
O taberneiro tinha saído. Foi a filha quem veio servir.
O José ficou um pouco enleado a olhar para a rapariga, quando esta lhe trouxe o copo transbordando, deixando cair no pires de barro grosso, branco, riscado de azul, um pouco de vinho em que ela molhava a unha do polegar.
Para o gosto dele nunca vira mulher assim!
Levou a mão ao barrete, e disse com a sua educação costumada:
— Muito obrigado.
E ficou-se a olhar para ela, um pouco apatetado, querendo falar e não lhe ocorrendo nada, sentindo como que um nó na garganta e um véu no entendimento, que o apoquentavam.
Era uma rapariga alta, magra, de cabelos castanhos muito finos, muito compridos, separados no alto por uma risca estreita, mostrando o casco branquíssimo; a orelha pequenina; o nariz perfeito apesar duma pequena quebra; a boca um quase nada grande, com o beiço inferior saliente, e uns olhos azuis-escuros, que entonteceram o José, quando neles demorou os seus.
Do outro lado do balcão, de mangas arregaçadas, um pouco enleada também pela ingênua admiração que percebia causar àquele homem, lavava os copos num alguidar de zinco posto em cima dum mocho, colocava-os depois na prateleira de pinho pintada de azul, virando para o ar os fundos, onde, como auréolas, se alastravam grandes nódoas roxas rebeldes à limpeza.
A noite vinha-se aproximando. A taberneira raspou um fósforo na prateleira e, desviando a cara dos fumos do enxofre, acendeu o candeeiro de petróleo.
Muito boa noite — disse.
— Boa noite — respondeu o José, erguendo-se um pouco.
E nunca música para ele valera aquela voz.
O vento fora soprava rijo e o ramo de loiro à porta raspava na parede.
O José levantou-se e abriu o saquinho de algodão. Com voz sumida pediu por favor dois charutos cortados e pagou, levando a mão ao barrete, sem se atrever a mais palavra.
Por toda a estrada veio pensando na rapariga. Trazia-a indelevelmente fixada na memória,- e até nas mais pequenas particularidades, uns sinaizinhos espalhados pelo nariz e um outro sobre a pálpebra um pouco mais acentuado.
E repetia mentalmente, muito enlevado, as únicas palavras que lhe ouvira: — “Muito boa noite. Muito boa noite”.
A mãe estranhou-o. Em vez de adormecer para ali, depois da ceia, como costumava, pregou os olhos no teto, e ficou-se a mascar um bocado de charuto, a mascar, ora sério, ora sorrindo a alguma imagem que entrevisse, como quem faz castelos no ar, que os vê cair de repente e logo erguerem-se mais alto. Nem sequer reparou nos olhares perscrutadores que a mãe, de vez em quando, lhe lançava por cima dos óculos.
Mas de repente a pobre Anastácia deu-lhe o coração um baque. E ela que nunca se lembrara daquilo! pois não era certo que tarde ou cedo havia de acontecer?
E com um fundo suspiro de saudade pelo bom tempo que passara, murmurou com os olhos embaciados:
— Queira Deus que seja para bem.
O José encarou-a, despertado por aquela voz.
Ergueu-se e aproximou-se da janela, que abriu.
O vento soprava do sudoeste. Ao longe a barra roncava medonhamente. Grossas cordas d’água entraram no quarto.
— O inverno! — disse ele, fechando a janela.
A velha encolheu os ombros.
E depois, com certo ar malicioso, já conformada:
— Ainda agora para ti começa a primavera!
Pouco tempo durou.
Uma noite, o José sentou-se tristemente à proa do bote e remou devagar para o largo. Chegado a meio do rio, deixou os remos e, trançando a perna, fincando a barba no punho cerrado, deixou ir o barco na corrente. Pôs-se a olhar, sem as ver, para as mil luzes, que no quadro sobre as nódoas escuras dos navios brilhavam como lentejoulas no pano negro dos caixões. Estava triste o José naquela noite.
E quando reparou, à popa do barco, na alcunha dele — Ventura — pintada em grossas letras brancas sobre uma variegada rosa dos ventos, sorriu amargamente e murmurou com ironia: — Ventura!
O bote arrastado pela vazante passou para além da torre, e o José perdeu de vista os pontos luminosos do quadro. Apenas, ao longe, avistava um candeio balouçando-se sobre a facha projetada, tremeluzente.
Que tristeza aquela!
O bote corria para a barra e começava saltando na crista das ondas. Fazia frio, e o Ventura, encharcado, tremia.
De repente, o candeio desapareceu. Então o José ergueu-se, pegou novamente nos remos, virou o bote, começou a remar com força para o lado de Lisboa, arquejando, como a fugir dum perigo. Mas de novo deixou cair os braços, em grande prostração, e a cabeça inclinou-se- lhe sobre o peito. O bote virou devagarinho e continuou em seu caminho fatal.
O farol do Bugio circulava lentamente, e a luz fixa da torre de S. Julião parecia examiná-la com uma grande curiosidade idiota, nunca satisfeita, O bote passou entre os dois faróis.
As ondas marulhavam de encontro às bordas do barco, e a música delas era triste como o coração do Ventura.
E fora o conselheiro, o seu melhor amigo, quem lhe enterrara o primeiro espinho!
Ao princípio correra tudo menos mal. Muitos tinham medo do vapor, e mais que todos o conselheiro.
— Nada! — dizia ele ao Ventura, batendo-lhe com a mão no ombro. — Estes progressos são muito bons, mas cá para mim não servem. Um belo dia...
— Zaz!... Pum!... — concluía José, rindo muito e imitando com os braços um grande fogo de vistas, que era a caldeira a rebentar e, dez dias depois, o José cumprimentava-o com o seu melhor sorriso, e o conselheiro passava cheio de pressa, afogueado, levando as filhas a reboque, muito coxas com as botas curtas, fazendo todos sinais desesperados com os chapéus de chuva para o vapor que apitava, pronto a largar.
Bem lhe tinha dito o pai da Maria Eduarda:
— Muda de vida, José, ou prego-te a peça.
E, como o José não mudava de vida nem a caldeira rebentava, tinham pregado a peça ao Ventura.
Foi num dia em que o carteiro, pelo maior dos acasos, tinha ganhos dois tostões. E, em vez de os entregar à mãe, foi à loja da esquina comprar um colar de contas para levar à namorada.
— Está cá, menina Maria? — perguntou da porta com o coração a bater.
— Saiu — respondeu lá de dentro a voz do pai. — Queres-lhe alguma coisa?
— Nada — respondeu.
E ficou encostado à porta, esperando a noiva.
Lá dentro o taberneiro virava na frigideira as sardinhas que aloiravam, bailando e cantando uma cantiga festiva no azeite a ferver.
E o Ventura à porta apertava na mão a caixinha das contas, e tinha fome.
— Olá, seu Manuel Joaquim — disse entrando alegremente na taberna um cocheiro de grandes melenas oleosas, repuxadas para diante das orelhas, cara escanhoada, chapéu de capa de oleado deitado para trás. — Já vieram as senhoras?
— Ainda não, mas não podem tardar. A pequena disse à mãe que haviam de voltar cedo por você cá vir... Seu maroto!...
Ó seu Manuel Joaquim!... Eu cá dou-lhe a minha palavra...
— Mau! Mau!
E, largando as sardinhas, chegou-se ao pé do cocheiro e disse-lhe ao ouvido:
— Olhe que a ceia está pronta e tenho ali uma pinga...!
O Ventura à porta, envergonhado, sem se lembrar de os matar a ambos, escondia o pé descalço atrás da perna nua e torcia nas mãos o barrete de lã esburacado.
E logo voltando, num desespero, atirou ao chão a caixa do colar. E as contas de vidro foram adiante dele saltando por longo tempo, fazendo uma bulha alegre de gargalhadinhas trocistas.
E a mãe àquela hora tinha fome...! E fora talvez a fome que a matara!
Lá estava enterrada na vala dos pobres, lã muito longe, por detrás daqueles montes, que a lua a nascer, espargindo uma baça claridade, azulava docemente.
...
No dia seguinte, ao amanhecer, foi encontrado, meio desfeito, para além de S. Julião, um um bote abandonado, que tinha à popa escrito numa variegada rosa dos ventos o nome do Ventura.
E quando soube da triste nova, enquanto aos olhos das filhas subiam saudosas e sentidas lágrimas, o conselheiro, gravemente, lembrando-se do pouco tempo que durara a primavera do José, citou as rosas de Malherbe.
Texto-fonte: D. João da Câmara. Contos, 1900
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