Número total de visualizações do Blogue

Pesquisar neste blogue

Aderir a este Blogue

Sobre o Blogue

SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

D. João da Câmara: "Requiem Aeternam..."

 Todas as tardes, quando o azul no alto do céu começava a desmaiar, ou já a enlutar-se nas pregas, pouco a pouco, serenamente acumuladas pela neblina da noite, recolhia à casa, aos solavancos sobre as pedras da calçada, a carruagem das velhinhas.

Espantosa, de grandes rodas espessas, ferragens desconjuntas, teto esburacado, tinha bexigosa, puxavam-na dois cavalos brancos, magros, muito magros de joelhos grossos, orelhas caídas, chutando sem brio, coxeando dolorosamente, com um ar de filósofo sem ração a caminho da morte.

Atrás saltava a carruagem com um tinir de ferragens, soturno como um ranger de ossos em dança macabra. E eu encostava aos vidros da janela a testa ardendo com febre, para ver a passagem daquelas duas velhinhas simpáticas, irmãs decerto, gêmeas talvez, tão iguais. com os cabelinhos brancos alisados sobre as testas enrugadas, as bocas reentrantes, os olhinhos apagados, trêmulas, encolhidas como passarinhos com frio, com os mesmos fatos de luto, o mesmo ar tranquilo, o mesmo sorriso de bondade. Macróbias à espera que a morte viesse num beijo perfumado cerrar-vos para sempre os olhos, como devíeis sofrer, cabeceando, sacudidas, empurradas brutalmente uma contra a outra pelas molas duras, aos safanões das sob-rodas da calçada! Boas velhinhas, minha paixão única, minha esperança dum dia inteiro, quando eu vivia isolado com a minha melancolia, naquela casa onde o vento soprava tristezas, onde o sol nunca entrou e onde as corujas riam de noite

O cocheiro, um velho muito velho, corcovado, segurando tremulamente as rédeas, com as mãos pousadas sobre os joelhos, conservava um certo ar de casa nobre, apesar da. nódoa esverdinhada, que se alastrava nas costas da sobrecasaca, e do chapéu de furta-cores, pequeno, de abas largas, arrombado, sem pelo, com um velho galão todo oxidado, velho, muito velho, de outros tempos muito melhores.

Que volta misteriosa dava todos os dias aquela carruagem, que às tardes ali passava trepando pela calçada? Donde vinham, para onde iam, em que palácio ou castelo arruinado moravam as boas velhas? Quem eram? Nunca o soube.

E era talvez por isso que as amava tanto. Arquitetava histórias fantásticas a respeito delas, da carruagem, do cocheiro, dos cavalos e, quando por fim ouvia o rodar pesado e o tinir das ferragens, sentia o coração pulsando rápido, a respiração difícil, um calor nas faces, como se em vez da decrepitude a caminho do cemitério, fosse uma primavera cheia de flores e de mocidade, que ali passasse em grande auréola de luz, em nuvem sutil de perfumes.

Creio que as velhinhas, numa doce, apagada recordação de galanteios havia muito passados, adivinharam o meu amor, e olhavam para mim, risonhas, fazendo renascer faíscas nos olhos cor de cinza, que um sorriso bordava com ondas de preguinhas por cima das rugas! E eu, com a testa encostada às vidraças, via desaparecer a carruagem fantástica, enquanto a noite descia lentamente e, muito desafinados, piavam lá no alto, em doidas correrias, os negros andorinhões.

Boas, santas velhinhas, benza-vos Deus!

A calçada subia em linha reta, tendo por fundo o céu ainda vermelho, àquelas horas. A carruagem levava uns cinco minutos até chegar ao alto, e lá em cima, esfumada pela distância, com as grandes rodas salientes, tombadas para fora, semelhava uma grande borboleta negra, que a descida precipitava na rutilante fogueira do pôr do sol.

***

Pouco depois acendiam-se no céu muito pálido as primeiras estrelas. Então um doido, que morava no rés-do-chão, começava a uivar sinistramente e pela casa espalhava-se um cheiro intenso, um fumo sufocante de ervas, que a irmã queimava por conselho duma bruxa, entre rezas plangentes, arrastadas, de arrelia.

Pessimista bilioso, mal com a vida, fugira de parentes e de amigos, e ali vivia isolado, merencório, cheio de azedumes, naquela rua onde os casebres em ruínas se alinhavam tristemente, com vidros esverdeados, telhados cheios de corcovas, paredes desaprumadas, com ervas crescendo junto aos muros em que as osgas aqueciam ao sol os dorsos escamosos.

E dava-me bem naquela paisagem cuja música harmonizava com as minhas queixas, naquele cenário que havia procurado e enfim descobrira, onde arrastava as minhas preocupações, os meus desvarios, na prisão voluntária que escolhera e me era cara à força de melancólica, que eu amava por que me era hostil.

Ao meu ódio pela gente e pelas coisas, uma só coisa escapara — aquela carruagem a desconjuntar-se, pirilampo nas trevas da minha noite, nota suavíssima no concerto da minh’alma.

Tão igual era sempre a dor que me atormentava, tão parecidos rodavam meus dias, que o verão passou, sem que, olhando para trás, eu pudesse ver na estrada, que andei triste, o marco duma alegria, dum aspecto novo, duma miragem na vida.

Aquele amor, aquela quase paixão, que ao princípio as velhinhas me haviam inspirado, esse mesmo sentimento puríssimo afligia-me agora, à medida que o sentia crescer.

O tempo fora passando, e os cavalos cada vez choutavam menos, coxeavam mais, mais brancos, mais tísicos, mais dolorosamente meditabundos; o cocheiro mais corcovado, um pouco descaído na almofada, deixava pender o chicote; a carruagem tinha na frente umas tiras de papel sobre um vidro rachado; cordas, a que todos os dias se juntava um nó, ligavam os arreios; as velhinhas tinham menos palhetas douradas no olhar, quando me sorriam. E já me sorriam como a pessoa conhecida, que ocupasse na vida delas o lugar em que moravam na minha, o que  aumentava a minha tristeza.

Agora, cada vez que lá no alto da calçada se afundava a carruagem, ficava cismando se teriam desaparecido de uma vez todos os meus sonhos, tudo — que era somente aquilo — quanto à vida me prendia.

O verão, muito lentamente, assim foi rodando, até que vieram as primeiras chuvas.

Que tarde turbida e melancólica! Se não viessem...! E de tanto pensar nelas, vi qual era sua pousada na minh’alma. Se não viessem...! Dia imenso em que, cheio de inquietações passeei pelo quarto até entontecer, aproximando-me da janela a cada instante, vendo apenas na solidão da calçada a chuva a cair, a cair, rio enorme, que se despenhava até lá abaixo, rolando barrento, cheio de espuma, quebrando-se, saltando sobre as pedras arrancadas, bipartindo-se lá no fundo, desaparecendo na curva e galgando as escadinhas, onde se precipitava em cascata, com uma bulha monótona...

O doido, a quem a meia escuridão daquele dia exacerbara a fúria, torcia-se, berrava como um possesso; e logo de manhã espalhou-se pela casa o tal cheiro que eu detestava, de alfazema queimada, de alecrim e doutras ervas com que o demônio embirra.

Dia imenso, que me parecia não dever acabar!

Na minha imaginação exaltada via, como de então para cá vi sempre, um ente único naquela carruagem, com as donas, os cavalos, o cocheiro, como se uma só alma os animasse a todos, não podendo desligá-los, abstrair duns para só pensar nos outros.

O dia vinha descendo e, ansioso, sentindo pelo ser fantástico que me fazia pulsar o coração aquele fervoroso amor que os encarcerados dedicam às vezes a uma formiga, a uma aranha, a uma plantazinha qualquer, com as unhas cravadas na carne do peito, tive uma das mais doidas alegrias da vida, quando senti sobre a lama que se alastrava de lado a lado, o rodar lento, abafado, porque suspirava semidoido.

Os cavalos gemiam, suavam, lançando pelas ventas baforadas densas. As sob-rodas, ocultas pela lama que o cocheiro não evitava, cego pela chuva que o zurzia, faziam cambalear o trem como um ébrio. E lá dentro mal pude avistar, através dos vidros embaciados, as velhinhas que sorriam.

Abri a janela para as ver desaparecer. Julguei que nunca chegassem ao alto. O cocheiro com um gesto aflito brandia o chicote; os cavalos pegavam-se, ajoelhavam na lama; as molas estalavam

Chegaram finalmente. Disse-lhes um adeus magoado. E enquanto a noite descia, sentado junto da janela, parecia-me ver, como num sonho, a carruagem fugindo, fugindo, por uma estrada que não acabava nunca, levando no tejadilho, de pé, como os anjos dos coches de enterro, a figura da morte. E a chuva caía, e a noite embrulhava-se num véu muito negro, cheia de frio.

***

Nunca mais as vi.

Passaram-se meses. Na terça-feira de entrudo uns mascarados bêbados, que desciam pela calçada, traziam adiante aos pontapés, em grande troça,, um chapéu de furta-cores, pequeno, de abas largas, arrombado, sem pelo, com um velho galão todo oxidado, velho, muito velho...

Boas e santas velhinhas!

Requiem aeternam dona eis, Domine, et lux perpetua luceat eis.

Nota:
Texto-fonte: D. João da Câmara. Contos, 1900

Sem comentários:

Enviar um comentário