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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

terça-feira, 3 de maio de 2022

“ALMA TUA”

 
O senso comum leva-me a questionar o Norberto se aquele seria o melhor local para estacionar. Está certo que garagem de portas fechadas ou guarda ou não permite entrar, mas mesmo assim, o carro na entrada, o Sol a calcorrear os cumes dos pinheiros mansos, as sombras fugidias sobre as oliveiras, não me deixavam na calmaria de ostentar local à porta de alguém.

O Tua ia-se afogando pelas margens sem escape além do que vislumbravam nas fragas do lado de lá da corrente. Sem carris, o ocre soçobrava no cascalho cuja função era, agora, sem mais nem menos, preparar-se leito de uma barrigada de água parada, onde apenas o orvalho vinha beber restos de reflexos que o céu gravou.

Os últimos passos em liberdade, sei-o agora, foram dados naquela tarde, a bicharada a grasnar e crocitar uma melodia fúnebre, a sombra de um sobreiro que mirava, sozinho, a curva do Douro penteado pelo vinhedo arquitectonicamente esculpido ao olhar marejado de quem o viu, como Torga, solto como um tufo de cabelo agreste de um qualquer vindimador a olhar, de soslaio, a fralda alva do avental de um amor.

Lanchámos algo que os tupperwares guardaram. Para últimos dias de liberdade é irónico não sabermos a que sabiam os conteúdos, mas o silêncio permitiu ser a sobremesa com que, ainda hoje, saboreio as imagens de ti, meu afluente agreste, onde a tarde tórrida, entre odores a travessas oleadas e carris abandonados, permitiu que me banhasse nas tuas águas ágeis. À porta da garagem, alçado o devaneio, pergunto a quem aflora ao portão verde se poderíamos estacionar ali o carro, íamos apenas tirar umas fotografias para um livro. Mentira, havia apenas um sonho que não permita as folhas alvas soluçarem nas levadas, e uma amizade que as laçava em redor de um palpável miradouro sobre a ilusão. 

O Tua tem margens que se transpõem e banham o olhar de quem se crê ser Ser. À guisa de um convite para beber de um garrafão ornado de vime, escondidos os cuidados a ter pela senhora do serviço de apoio domiciliário, lá nos ofereceu, a mim e ao Norberto, um copo e algo para bucha, ao que declinamos. O nosso alimento era o último passo a vau sobre um rio que já sabíamos não saber nadar e uma linha centenária cujos passageiros, vultos, se despediam de uma realidade inexistente. Abriu-nos a porta e fomos à varanda da casa por terminar, como se soubesse o nosso anfitrião que o lar é bem longe onde habitamos. Segundo ele, era a ali a mais bela paisagem sobre o Tua, com a água salobra a retornar à nascente e a musgar muros erigidos a sangue, quase, quase a marear no cascalho amarelecido. As pedras da estação saíram, numeradas, para reconstruir o passado vassalado nos quintais de alguém engravatado, e ainda que as fotografias do Norberto falem a verdade no que veio tornar-se o livro Alma Tua, receio que as minhas palavras jamais prestem justiça ao braço no ombro de quem me disse, já com a vida nos lados de lá do rio, “A barragem é lá ao fundo, mas já me chega à garganta”.

Miguel Gomes- Escritor

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