domingo, 3 de julho de 2022

PÁSSAROS 4. Os escritores e os pássaros

Mesmo sem lances assim dramáticos e movimentados, as aves oferecem-nos muitos momentos de enlevo e pretextos de meditação. Haja-se em vista a história do frade de trezentos anos, tão bem contada pelo bom padre Bernardes e a que também me refiro com mais demora noutro lugar deste livro.
 Em finais de tarde de Verão, em férias, minha Mulher e eu gostamos por vezes de subir a um outeirinho sobranceiro a Grijó para disfrutar melhor as cores do poente. E decerto que são belas e sempre imprevistas essas cores, consoante as nuvens que há no céu. Mas tudo tem muito mais sainete quando alguma cotovia, por essa hora, sobe altíssimo e de lá das alturas solta um canto ao mesmo tempo jubiloso e melancólico, parecendo despedir-se do dia que passou e pedir ao sol que não se demore muito por lá e volte amanhã bem cedinho para ela poder continuar a sua faina de catar a bicharada com que tape a boca à prole que tem no ninho.
 Assim como gosto de aves, gosto de escrever sobre elas. Contam-se talvez por dezenas os poemas que lhes tenho dedicado — quer à classe em geral, quer a diversas espécies em particular. 
 E gosto também de ler sobre elas. Creio que este gosto me vem do livro de leitura da instrução primária, em que nesse tempo se lia um ingénuo e amável poema de Afonso Lopes Vieira, que começava assim:

Os passarinhos 
Tão engraçados,
Fazem os ninhos 
Com mil cuidados.

e perto do final recomendava:

 Nunca se faça 
 Mal a um ninho,
 À linda graça 
 Dum passarinho.

 Claro que essa cândida abordagem do mundo das aves já não me diz muito. Mas continuo a gostar de ler coisas a respeito delas. E tenho a sorte de alguns dos meus autores favoritos lhes terem dedicado belas páginas. 
 Miguel Torga, por exemplo, escreveu um conto magnífico, “Farrusco” [um melro], nos "Bichos." Não me demorarei aqui a comentá-lo, justamente porque o faço noutra crónica deste volume. No mesmo livro de contos, aparecem ainda “Ladino”, que trata das manhas de um pardal… ladino; “Tenório”, a história de vida de um galo galador; e “Vicente”, que tem um corvo rebelde por personagem em despique com o próprio Criador. Quatro obras-primas, ainda que em registos diferentes.
 Pina de Morais, o contista soberbo de Sangue plebeu, hoje quase esquecido, dedica um dos contos desse volume a um rouxinol, que lhe dá pretexto para falar com enlevo de toda a fauna volátil que povoou a sua infância passada para as bandas de Lamego. É um espraiar de considerandos e de descrições de hábitos, comportamentos e vozes de toda uma arca-de-noé alada — pardal, pintassilgo, melro, cotovia, calhandra, carriça, escrevedeira, pintarroxo, estorninho, andorinha e rouxinol —, verdadeira mini-enciclopédia da passarada miúda. Seja-me permitida a transcrição de algumas linhas respeitantes ao canto do rouxinol, em homenagem à ternura de Pina de Morais pelas avezinhas, que do fundo do coração compartilho:
 »O rouxinol cantava. Um na laranjeira que de velha se finou há muito e outro na romãzeira, a cinquenta metros, que mais forte ainda lá está. Era um desafio. Os rouxinóis escutam-se e só cantam um de cada vez. As aves cantam para conquistarem e apaixonarem as fêmeas. Mas o rouxinol e o melro não; cantam porque são cantores e porque misteriosamente sentem um louco desejo de arte e expansão de beleza. Cantam perdidamente, nobremente, até ao paroxismo, embriagando-se os rouxinóis no próprio canto, até tombarem mortos.
 Como a ave se não vê, é como se do coração das coisas se erguesse aquela voz. Primeiro, meia dúzia de trilos para afinar. Afinada a garganta, começa dolente, manso de água, a voz de arminho, em notas amplas e doces, larga volta, oitavas soltas. Mudança de clave. Harmonia cheia com transposição de sons, heróica e sumptuosa, voltada ao céu religiosa e grande. Um grito, outro grito seguido de um trilar de notas delirante, louco, apaixonado, subindo num crescendo doloroso de invocação misteriosa. Suspensão. A seguir um gorjear seguidinho, fervoroso, ungido e implorador, até amortecer em gemido indefinido. Como se fora a acabar, lança uma nota alta e vibrante, nota que fica um momento fora da garganta, suspensa no luar. O coração bate ferido e o canto torna-se humilde e saudoso, ondulando suave em notas extensas de renúncia e cansa-se e cala-se. E o som morto bóia à tona do luar imenso e do silêncio infinito das coisas como um corpo que amou e morreu.
 O rouxinol canta para o escutarem, porque basta o menor ruído para instantaneamente se calar, embora o ruído venha de longe, como por exemplo as horas no torreão da minha aldeia.
 O rouxinol da romãzeira logo lhe responde, com o mesmo intervalo, que as mudanças de clave determinavam no primeiro e como se o canto fosse todo um. São novas estrofes, sempre variadas, ora ardentes e amorosas, ora de enternecida renúncia ou de louco desespero. Não acreditava que tanta arte fosse da garganta de um passarinho. Era um mestre cantor, menestrel condenado ou bardo misterioso, que vinha ali de capa escura, escondido na sombra, cantar o seu amor sem fim.»
 Página admirável, que, além de ser literatura de primeira água, ressuma simpatia e fraternidade à boa maneira de São Francisco — e nostalgia de um paraíso para sempre perdido.
 Aquilino Ribeiro é também santo muito da minha devoção. Por ser beirão, irmão de sangue dos trasmontanos, e por ter um vocabulário castiço, riquíssimo e saboroso como ninguém mais no nosso quintal literário. 
 Creio que foi ele, de todos os escritores portugueses, o que mais páginas dedicou às aves. 
 Um dos meus filhos ofereceu-me, no Natal passado, conhecendo este meu duplo engodo pela obra de Mestre Aquilino e pelas aves, um livro curioso intitulado "Guia das Aves de Aquilino Ribeiro". Já pelo título se faz ideia de como as aves estão presentes na sua obra. E, com efeito, o livro fornece-nos dezenas de excertos de nada menos de treze livros de Aquilino que entendem com pássaros. São no geral trechos de antologia. Mas, se me perguntam qual o meu trecho favorito, direi que esse está ausente. Escapou, talvez, aos organizadores da colectânea. Mas a mim não me escapou logo da primeira vez que o li — e algumas vezes o tenho relido por puro prazer. 
 Vem logo na segunda página da "Casa Grande de Romarigães," e narra um desaguisado entre dois gaios. É-me impossível não associar esse texto a um célebre conto de Mark Twain, intitulado “Baker’s bluejay yarn”, que li nos meus tempos académicos de Coimbra: o mesmo humor, a mesma bonomia, a mesma agudeza de observação.
 Leia e saboreie o Leitor esse texto, a ver se minto:
 «Também ali perto, por uma tarde fosca de Outubro, chegou um gaio, voejando de chaparro em chaparro, a grasnar mal-humorado como é próprio da raça. No saiote desbotado, as duas pinceladas de azul, azul retinto, fulguravam para que se soubesse que um gaio também é gente dos ares. Trazia no bico uma bolota, um pouco menor que o bolo que o corvo costumava levar à cova de Daniel, mas para ele mais importante. Dispunha-se a comer a merenda bem amargada, quando deu com os olhos no mariola do vizinho com quem bulhara uma Primavera inteira por causa da gaia, depois sua mulher. Já esse tal, rancoroso e mau, dava jeitos de querer investir, penas riças, garras desembainhadas, a asa possuída de frenesim. Que remédio senão preparar-se para o receber condignamente! E deixou cair a glande. Esta foi bater na face zenital dum velho toro, saltou de ricochete para o lado, e aninhou-se muito aninhada num monte de folhas secas e argalhos. Ninguém a via, nem ela via a mais pequena nesga do mundo. Os dois gaios, depois de trocarem muitos gritos de cólera e darem a sua bicada, mas sem que corresse sangue, despediram. O mais rela e pundonoroso pulou ao chão a procurar a sua rica bolota. Procurou, tornou a procurar pincharolando dum lado para o outro e introduzindo por toda a parte, taladas e covinhas, o olho finório e matuto, mas nada descobriu. Soltou duas ou três vezes a sua voz ralhada a conjurar os deuses daquele desaforo, perdeu a paciência. E saraivando, batendo a asa, ainda meio atrido da rixa, lá foi para outro carvalhal onde havia que pilhar.» 
 Outro dos autores mais chegados ao meu coração, julgo que o saberá quem me conhece bem, é Camilo Castelo Branco. Esse, infelizmente (do ponto de vista que agora me interessa, claro), não costuma prestar grande atenção ao mundo natural. As pessoas e as paixões que há dentro das pessoas é que são a pedra-mármore em que talha o melhor da sua obra. Já li algures, não me recordo onde nem dito por quem, que não há uma árvore na obra de Camilo. Pássaros, contudo, há alguns, mas nem sempre a sua descrição condiz com a realidade. Claudica às vezes na ornitologia quem com tanto acerto discorreu nas mais desvairadas áreas do saber. 
 O caso mais gritante será o do estorninho, que, no" Eusébio Macário", tem este retrato desastrado:
«[…] o estorninho, de pernas escarlates, bico de ferro, plumagem verde, azul e cobreada, com o dom de articular vozes como a pega, e grandes instintos para se domesticar e comer ovos de pomba […].»
 Plumagem verde, azul e cobreada, hã? Logo o Sturnus unicolor e mesmo o Sturnus vulgaris, que competem com o melro em termos de pretidão… 
 De resto, nessa mesma página, Camilo cita, com algum acerto, quinze outras aves, que em concerto saudavam frei Justino do Rosário, quando este numa manhã de Julho regressava à sua freguesia, depois de Joaquim António de Aguiar, por alcunha o Mata-Frades, ter extinguido em 1834 as ordens religiosas. 
 Dessas quinze aves, selecciono a descrição do gaio, para o Leitor confrontar com o texto supra de Aquilino Ribeiro:
«[…] o gaio, a ave linda dos pinhais, elegantíssima, com o seu martinete de penas alvíssimas e negras, peito cor de canela, asas iriadas de branco e azul, e o seu grasnido alegre, com muitas sensualidades petulantes, enforcando-se nos esgalhos das árvores quando se irrita, e cegando na congestão da cólera […].»
 ‘Martinete’ deve ser aqui equivalente de tufo de penas. Só que o gaio não tem tal martinete. Continua neste detalhe a dormitar o escritor — por sinal o que menos dormiu em toda a literatura portuguesa.

(Continua.)
Foto: internet - Rouxinol

A M Pires Cabral

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