Número total de visualizações do Blogue

Pesquisar neste blogue

Aderir a este Blogue

Sobre o Blogue

SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

quinta-feira, 27 de outubro de 2022

As Histórias do Tio Jacinto - parte I

Por: Paula Freire
(colaboradora do Memórias...e outras coisas...)

Recordava-se, muitas vezes, com satisfação e saudade daqueles dias do calor de verão com sabor a pão quentinho das terras alentejanas. Ou do aroma agradavelmente perfumado dos coentros da horta do tio Jacinto. Era ali, nas férias todos os anos ansiosamente esperadas, debaixo de um sol dourado a convidar sestas preguiçosas, que ele sonhava com as antigas histórias que o tio lhe contava, sempre com aquele mesmo entusiasmo de uma primeira vez.

Logo no primeiro dia em que ele chegava, pela tardinha, o tio Jacinto sentava-se debaixo de um belo chaparro - senhor dos tempos e de longas esperas - próximo de casa. Chamava-o para o acompanhar e convidava-o a sentar-se ao seu lado, sobre as ervas secas. E então, com uma voz grossa e bem audível, como convém a um bom contador de velhas histórias, começava a ler o livro de capa preta. Atrás deles, andava sempre o seu companheiro de brincadeiras desses dias, o cão Tobias. Esperto como só um cão sabe ser, deitava-se junto de ambos e olhava fixamente para o tio Jacinto, com as orelhas arrebitadas como a adivinhar-lhe as palavras. Por norma, acompanhava-os depois nas largas sestas e era sempre o primeiro a adormecer, alheio à voz do dono e das cigarras cantadeiras.
Ler, julgava ele que o tio estava a ler… pois que ainda não aprendera as primeiras letras! Mais tarde viria a descobrir que, afinal, podiam ser histórias verdadeiras, aquelas do tio Jacinto. Histórias que, por alguma razão, não quisesse confessar como suas, mas que lhe estavam na memória. E delas fazia uso para encantar o sobrinho antes da sesta almejada, ali mesmo debaixo do chaparro.
Ficava-se a olhar para as mãos do tio, a folhear lentamente as páginas do livro, à medida que a história avançava. Recordava-se de pensar que nunca tinha visto mãos tão grandes em ninguém e ficar a cismar, silencioso, se no inverno o tio encontraria luvas que lhe servissem para o aliviar do frio. Agora entendia que, muito provavelmente, o tio Jacinto seria homem habituado às agruras do tempo num Alentejo de portas abertas às visitas de verão, mas onde a pobreza brotava em solos secos e nas vidas difíceis de quem habitava aquela casa o ano inteiro. Certamente, nunca sentira precisão de luvas.
De todas as histórias que ouviu do tio quando era criança, uma lhe pediu muitas vezes para repetir. Porque era uma história muito antiga. E, principalmente, porque dava uma curiosa história de amor. Daqueles amores de outros tempos, com personagens e dizeres que ele achava já não existirem. Sempre gostara de histórias de amor! Como a do tio Jacinto, por exemplo. O tio Jacinto também tinha uma longa história de amor com a tia La Salete. Mas isso, já são outras histórias que, talvez um dia, ainda nos apresente.
Por agora, fiquemo-nos apenas pela famosa história que lhe permaneceu escrita na memória, tantas vezes a ouviu sentado com o tio Jacinto debaixo do velho chaparro, antes da sesta que ambos tão bem acolhiam.
Uma história passada num Alentejo bem distante no tempo! Como o Manel das Ovelhas, moçoilo bem apessoado, ganadeiro de ofício, deu provas da sua valentia e assim conheceu e se apaixonou pela Chica do Brejo. Ora, então, vamos lá…
“Tinham o Ti Chumiço e a D. Benigna, razões de sobra para se lhes enevoarem os dias. Os quatro filhos que lhes couberam em destino, não deviam muito ao Senhor pelas boas qualidades.
A Mia Zé Ladravona, já mulher feita, uma pingalhona, mandonga e grande arengueira.
Lala Tola, moça alvoraçada, espalaiada, de bico torcido e rabo alcarado. Toda ela era ‘espevitice’, com o seu ar inchado, sempre de beiços pintados, a mangar com as vaidades pobres da irmã.
Nasceu-lhes depois Nelinha, Lembrisca de alcunha, com a mania da esperteza, mas rala de inteligência. Criança aselha e desditosa por natureza. Já mocinha, passava a vida a cirandar naquele gosto de mandriar, a fazer do cu três bicos para mexer as pernas e o corpo todo que lhe pareciam presos ao chão. Com esta, era sempre tudo feito à faca e por cima da burra.
Ora, tinha a Mia Zé grande malícia à irmã do meio pois que, sabendo-se ela rapariga sem talho nem maravalho, julgava a outra armada em pessoa fina, certa de que lhe morava um rei na barriga. E com isso não podia. Sempre de má mente e intricante, Mia Zé não perdia oportunidade de atalicar a irmã. Punha-se, então, a Lala Tola numa gritaria: “acuda-me nha mãe, que a nha mana tem sarrêra comigo!”
E assim andavam sempre as duas, a rastenhar como pardalas, com a raiva escondida, como quem olha os mares-de-leva.
À Nelinha, não lhe passavam despercebidas as querelas das irmãs e, sempre inteirada dos seus desacatos, escondia-se entre portas, a ver se as duas se pegavam. É que a páginas tantas, era mesmo um papelote vê-las naquela tourada desmedida. Logo saía da cozinha, onde a caçoula com a sopa fumegava no lume, a D. Benigna, aos berros:
-‘Alcará Maria’! Parece que têm o diabo no corpo! Raios m’a mim partam que nã sei que ganas me dão que daquém nada, alcanço um ramo de craquêja e chego-vos a roupa ô pelo! Prantem-se quétas, suas pespenêgas!
O Ti Chumiço intervinha de quando em vez, para acalmar a situação. É que isto de ter tanto mulherio à volta de um homem, não é tarefa com que seja fácil lidar.
- Ó diacho, mulher! Deixa lá as maganas e vai mas é arrepartir a ceia. Elas são estrafanáiras, mas são boas mocinhas!
- Lá tás tu sempre a detari água na fervura, filho! – Gritava a D. Benigna, ainda mais empestada. - Nã vês qu’elas são de má raça? Sempre c’as laimas em cima uma da outra?!
Pobre homem, o Ti Chumiço. Se dum lado lhe chovia, doutro lhe fazia vento. Valia-lhe o seu Manel, moço bem falante, de boa catadura e boa cabeça. Mas também de poucas sortes. Andava agora arredio por conta da ciumeira com a Laida, por quem tinha grande querença. Mas bem via que a rapariga não lhe deitava os olhos. Diziam à boca cheia pelos montes e vilarejos, que era amigada com o Sr. Justino Alves, doutor e de boas heranças, mas casado. O que, está bem de se ver, era escolha mal pensada da Adelaide, que se punha ainda mais nas bocas do povo. É que o passado também já não lhe era muito a favor, como a ver vamos…
Todos os dias, a caminho da lavoura, o Ti Chumiço ia primeiro à da sua comadre Gertrudes e lá com ela desabafava os seus rosários.
- Ai o mê Manele, Ti Estrudes, anda sempre ca crista tã pendida, pobre moço! Se nã anda mal achado, isto deve de ser por causa daquela esgróviada da filha do Ti Lúcio, que lh’ anda enfernizando a vida…. Atão na m’aparece agora em casa a modes que assergalhado, todos os serões? E noite adentro, eu e a nha Benigna, lá o ouvimos a gritar pelo gregório…
- Temos que lh’arranjar combalacho, é o que lhe digo, Ti Chumiço. – Respondia a comadre Gertrudes, a tomar as dores do afilhado.
O certo é que o caso estava bichoso e não dava esperança de melhoras.
A D. Benigna, que pouco jus fazia a nome tão cheio de delicadezas, era mulher de muito génio que não ia em corridas de ganso.
- Essa pindura da Laida nã tem sobernação nenhuma! Foi enganada por um figurão e teve um filho que foi fêto p’lamor Deus, fora a mãe dela qu’ era uma mulher séira. E o mocinho, coitado, sendo criado ôs pontapéje duns e doutros? Agora anda outra vez nessas lides! Essa é moça com um’aduela a menos, que apanhou o nosso Manele com’um lapardão!
E D. Benigna chegava-se à frente, pois tinha que dizer das suas razões: que punha as mãos no lume que aquilo eram coisas feitas pelas artes do mafarrico e que tinha que ir bailar as encruzilhadas. Ainda haveria de encontrar para o filho, mulher rijinha que fosse capaz de estragar meias-solas. A ela, ninguém lhe fazia o ninho atrás da orelha.
Ao Ti Chumiço, aquelas palavras assentavam-lhe mal e arreganhavam-se-lhe os dentes:
- E tu a dar-lhe e a burra a fugir! Cala-te pr’aí mulher, nã me faças azoinar com essa escagalhoada! Ainda arranjas lenha p’ra te quêmar.
- Fia-te lá na virja e nã corras. - Afiançava a D. Benigna, certa dos seus desvelos de mãe - Falar com o nosso Manele, aquilo agora é como quem lava a cabeça a um burro e o manda p’rô espojêro. Olha qu’é preciso orêlo, home! Ele há munta manêra de matar pulgas e essa Laida sabe munto bem em que mato faz a lenha! O nosso Manele é um moço bem cuidado, mas nengueim as veste que nã as borre. Se nã fores tu, hê-de eu tirar-lhe as ganfanas. Cuida do que te tou dizendo.
O Ti Chumiço mancou, por fim, a preocupação da mulher e conhecedor, em primeira mão, dos seus maus fígados, lá se lhe meteu na cabeça que haveria de arranjar solução para o caso.”

Continua …


Paula Freire
- Psicologia de formação, fotografia e arte de coração. Com o pensamento no papel, segue as palavras de Alberto Caeiro, 'a espantosa realidade das coisas é a minha descoberta de todos os dias'.

Sem comentários:

Enviar um comentário