Ti Adérito, mirandês dos quatro costados, tinha por hábito descer à capital, duas ou três vezes por ano. Apanhava um autocarro em Miranda do Douro e lá seguia caminho.
Quem o via, olhava-o com caridade. Vestia-se com roupas para lá de velhas; tinha trejeitos de mendigo; carteira ou porta-moedas nunca se lhe vira; maneiras rudes e parolas; e não se coibia de falar em mirandês, língua em que era fluente.
Chegado a Lisboa, instalava-se na casa de uma irmã para a viagem lhe sair mais económica. Nunca levava uma lembrança aos sobrinhos que tanto adoravam a bola doce mirandesa, ou uma alheira caseira, ou até uma couve do quintal! Nada de nada. Depois de assentar poiso, dava umas voltas pela cidade. Como a irmã vivia lá para os lados da Graça, apanhava o elétrico 28. O percurso começa no Martim Moniz e vai até Campo de Ourique, junto ao cemitério dos Prazeres – não compreendo como é que alguém dá o nome “Prazeres” a um cemitério! Qual é o prazer de morrer? Cá por mim deixo-me estar por estas bandas que das outras não quero saber, por ora. Passa pelas zonas mais emblemáticas de Lisboa, onde os turistas gostam de ir: Igreja dos Anjos, miradouros, Sé, Chiado, Camões, Basílica da Estrela, etc. Quem vive em Lisboa, conhece sobejamente este elétrico. Pasme-se: qualquer visitante estrangeiro desprevenido fica sem a carteira e nunca mais esquece o elétrico. Por mais polícias, à paisana, que circulem no elétrico 28, os manhosos dos carteiristas, contornam a questão.
O ti Adérito, com a sua triste figura, passava incólume às mãos dos larápios. Quereis saber onde guardava o dinheiro? As moedas iam enroladas num lenço das mãos; e as notas, dentro das meias, presas com um elástico a reforçar.
As razões, destas viagens a Lisboa, na terra ninguém as conhecia, nem ele fazia alarido delas. Cada um aventava o que melhor lhe parecia, mas longe ficavam da realidade. Estais em pulgas para saber do que se trata, não é verdade?
Pois o ti Adério era proprietário de dois prédios, cada um com cinco andares, vários apartamentos em cada piso e todos arrendados. Vinha ver se estava tudo bem cuidado, as rendas em dia e falar com o gerente do banco – não queria expor-se aos bancos lá da terra, preferia manter o caso em segredo.
Em certa viagem de elétrico, deparou-se com uma rapariga a olhá-lo de forma que ele não compreendia. Olhar fixo, oblíquo e penetrante. Dos lábios vermelhos e carnudos, soltava um sorriso discreto. Mal mostrava os dentes brancos e reluzentes. Meneava, com trejeitos, fartos cabelos lisos e longos, negros como a noite. Por debaixo de uma blusa de rendas - saltavam aos olhos -, um par de roliços seios. A cintura era delgada como a de uma vespa, ancorada em coxas fartas que transpareciam por debaixo de uma saia justa, que batia um pouco acima dos joelhos. As mãos eram esguias e longas, e a tez alva como a neve da serra da Nogueira.
Que figura inquietante! Por que razão estaria a olhá-lo, sendo ele de tão fraca aparência, bem o sabia? Deixou-se estar a ruminar no assunto, sem se mover do lugar onde vinha sentado, junto à janela. O lugar ao lago vagara, saíra um homem na paragem. A mulher, delicadamente, pedira se podia sentar-se. Não disse que sim nem que não. O silêncio foi entendido como consentimento. O ti Adérito permanecia estático e como se nada fora com ele, mas só na aparência, o coração pulava-lhe no peito. – Que quererá o dianho da mulher? – pensava entre dentes – Se calhar é alguma inquilina e eu não me estou a lembrar dela? Mas que diabo se está a passar? É melhor esperar um pouco a ver se ela abre a boca, se não, saio e depois apanho outro. Raios na mulher! Está a pôr-me doido.
Passaram duas paragens e a mulher resolveu meter conversa.
- O senhor não é de cá, pois não?
O ti Adérito estava sem saber se abria a boca, ou pulava borda fora. Sempre fora contido e discreto quanto à sua vida e agora uma estranha a meter conversa, querem lá ver o despropósito?
- Não.
- Logo vi. O senhor veio visitar os seus filhos?
- Não tenho filhos.
- Tem a certeza?
- Absoluta, menina. Nunca casei.
- Veja se conhece quem está nesta fotografia – abrira a carteira para lha mostrar.
O pobre do ti Adérito ficara sem uma gota de sangue, nem respirar era capaz. Reconhecera-se na fotografia, junto a uma jovem, muitos e muitos anos atrás.
- É a minha mãezinha e o senhor Adérito, não é verdade?
- Se a menina diz ser filha desta senhora…
- E sua, também.
- Cruz, credo! Nunca soube de tal. – parecia que ia desmaiar de susto.
- Pois não. Quando a mãezinha soube que estava grávida, foi embora de Lisboa. Tinha vergonha de ser mãe solteira. Mas olhe que nada me faltou. Cuidou de mim com muito amor e carinho. Hoje, sou eu que cuido dela. Estudei, arranjei um bom emprego e vivemos bem. Quer ver a mãezinha? Dou-lhe a morada.
Meneou a cabeça dizendo que sim. As palavras ficaram-lhe coladas ao céu da boca. Por mais que tentasse balbuciar algo, a língua estava enrolada.
Acertaram a visita. Convinha preparar a mãe para o receber.
No dia e hora combinados, bateu à porta do 3º andar esquerdo, no número 20 da Calçada da Estrela. Comprara roupa e uns sapatos novos para se apresentar condignamente. Nas mãos, levava um ramos de rosas amarelas, ainda se lembrava serem as preferias de Natalina.
A porta abrira-se e ele, assim que bateu com os olhos em Natalina, caiu de joelhos ao chão. Não aguentou tanta emoção. Abraçou a filha e a mãe com o rosto coberto de lágrimas, pediu-lhes perdão por não saber nada delas, que tudo teria sido diferente se soubesse do caso…
- Deixe lá, paizinho. Daqui para a frente tudo pode ser diferente, se o paizinho nos aceitar.
- Amanhã mesmo vou falar ao meu advogado para resolvermos tudo. Quero que sejas reconhecida como minha filha. Que nome te deu tua mãe?
- Deu-me o nome da sua mãe: Eugénia.
- Então vais passar a chamar-te Eugénia de Andrade Correia.
Havia, sobre a mesa da sala, uma toalha alvíssima bordada com umas ramagens de campos de trigo, que o transportou a longuíssimos tempos. Tinha sido um presente que dera a Natalina. Como ela ainda conservava aquela toalha. Não se esquecera dele.
Eugénia serviu bolo de mármore, acabado de fazer, e chá. Sabia ser o bolo preferido do pai.
Quem o via, olhava-o com caridade. Vestia-se com roupas para lá de velhas; tinha trejeitos de mendigo; carteira ou porta-moedas nunca se lhe vira; maneiras rudes e parolas; e não se coibia de falar em mirandês, língua em que era fluente.
Chegado a Lisboa, instalava-se na casa de uma irmã para a viagem lhe sair mais económica. Nunca levava uma lembrança aos sobrinhos que tanto adoravam a bola doce mirandesa, ou uma alheira caseira, ou até uma couve do quintal! Nada de nada. Depois de assentar poiso, dava umas voltas pela cidade. Como a irmã vivia lá para os lados da Graça, apanhava o elétrico 28. O percurso começa no Martim Moniz e vai até Campo de Ourique, junto ao cemitério dos Prazeres – não compreendo como é que alguém dá o nome “Prazeres” a um cemitério! Qual é o prazer de morrer? Cá por mim deixo-me estar por estas bandas que das outras não quero saber, por ora. Passa pelas zonas mais emblemáticas de Lisboa, onde os turistas gostam de ir: Igreja dos Anjos, miradouros, Sé, Chiado, Camões, Basílica da Estrela, etc. Quem vive em Lisboa, conhece sobejamente este elétrico. Pasme-se: qualquer visitante estrangeiro desprevenido fica sem a carteira e nunca mais esquece o elétrico. Por mais polícias, à paisana, que circulem no elétrico 28, os manhosos dos carteiristas, contornam a questão.
O ti Adérito, com a sua triste figura, passava incólume às mãos dos larápios. Quereis saber onde guardava o dinheiro? As moedas iam enroladas num lenço das mãos; e as notas, dentro das meias, presas com um elástico a reforçar.
As razões, destas viagens a Lisboa, na terra ninguém as conhecia, nem ele fazia alarido delas. Cada um aventava o que melhor lhe parecia, mas longe ficavam da realidade. Estais em pulgas para saber do que se trata, não é verdade?
Pois o ti Adério era proprietário de dois prédios, cada um com cinco andares, vários apartamentos em cada piso e todos arrendados. Vinha ver se estava tudo bem cuidado, as rendas em dia e falar com o gerente do banco – não queria expor-se aos bancos lá da terra, preferia manter o caso em segredo.
Em certa viagem de elétrico, deparou-se com uma rapariga a olhá-lo de forma que ele não compreendia. Olhar fixo, oblíquo e penetrante. Dos lábios vermelhos e carnudos, soltava um sorriso discreto. Mal mostrava os dentes brancos e reluzentes. Meneava, com trejeitos, fartos cabelos lisos e longos, negros como a noite. Por debaixo de uma blusa de rendas - saltavam aos olhos -, um par de roliços seios. A cintura era delgada como a de uma vespa, ancorada em coxas fartas que transpareciam por debaixo de uma saia justa, que batia um pouco acima dos joelhos. As mãos eram esguias e longas, e a tez alva como a neve da serra da Nogueira.
Que figura inquietante! Por que razão estaria a olhá-lo, sendo ele de tão fraca aparência, bem o sabia? Deixou-se estar a ruminar no assunto, sem se mover do lugar onde vinha sentado, junto à janela. O lugar ao lago vagara, saíra um homem na paragem. A mulher, delicadamente, pedira se podia sentar-se. Não disse que sim nem que não. O silêncio foi entendido como consentimento. O ti Adérito permanecia estático e como se nada fora com ele, mas só na aparência, o coração pulava-lhe no peito. – Que quererá o dianho da mulher? – pensava entre dentes – Se calhar é alguma inquilina e eu não me estou a lembrar dela? Mas que diabo se está a passar? É melhor esperar um pouco a ver se ela abre a boca, se não, saio e depois apanho outro. Raios na mulher! Está a pôr-me doido.
Passaram duas paragens e a mulher resolveu meter conversa.
- O senhor não é de cá, pois não?
O ti Adérito estava sem saber se abria a boca, ou pulava borda fora. Sempre fora contido e discreto quanto à sua vida e agora uma estranha a meter conversa, querem lá ver o despropósito?
- Não.
- Logo vi. O senhor veio visitar os seus filhos?
- Não tenho filhos.
- Tem a certeza?
- Absoluta, menina. Nunca casei.
- Veja se conhece quem está nesta fotografia – abrira a carteira para lha mostrar.
O pobre do ti Adérito ficara sem uma gota de sangue, nem respirar era capaz. Reconhecera-se na fotografia, junto a uma jovem, muitos e muitos anos atrás.
- É a minha mãezinha e o senhor Adérito, não é verdade?
- Se a menina diz ser filha desta senhora…
- E sua, também.
- Cruz, credo! Nunca soube de tal. – parecia que ia desmaiar de susto.
- Pois não. Quando a mãezinha soube que estava grávida, foi embora de Lisboa. Tinha vergonha de ser mãe solteira. Mas olhe que nada me faltou. Cuidou de mim com muito amor e carinho. Hoje, sou eu que cuido dela. Estudei, arranjei um bom emprego e vivemos bem. Quer ver a mãezinha? Dou-lhe a morada.
Meneou a cabeça dizendo que sim. As palavras ficaram-lhe coladas ao céu da boca. Por mais que tentasse balbuciar algo, a língua estava enrolada.
Acertaram a visita. Convinha preparar a mãe para o receber.
No dia e hora combinados, bateu à porta do 3º andar esquerdo, no número 20 da Calçada da Estrela. Comprara roupa e uns sapatos novos para se apresentar condignamente. Nas mãos, levava um ramos de rosas amarelas, ainda se lembrava serem as preferias de Natalina.
A porta abrira-se e ele, assim que bateu com os olhos em Natalina, caiu de joelhos ao chão. Não aguentou tanta emoção. Abraçou a filha e a mãe com o rosto coberto de lágrimas, pediu-lhes perdão por não saber nada delas, que tudo teria sido diferente se soubesse do caso…
- Deixe lá, paizinho. Daqui para a frente tudo pode ser diferente, se o paizinho nos aceitar.
- Amanhã mesmo vou falar ao meu advogado para resolvermos tudo. Quero que sejas reconhecida como minha filha. Que nome te deu tua mãe?
- Deu-me o nome da sua mãe: Eugénia.
- Então vais passar a chamar-te Eugénia de Andrade Correia.
Havia, sobre a mesa da sala, uma toalha alvíssima bordada com umas ramagens de campos de trigo, que o transportou a longuíssimos tempos. Tinha sido um presente que dera a Natalina. Como ela ainda conservava aquela toalha. Não se esquecera dele.
Eugénia serviu bolo de mármore, acabado de fazer, e chá. Sabia ser o bolo preferido do pai.
Natural de Torre de Dona Chama,
Mirandela, Bragança, Portugal.
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