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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

sábado, 29 de outubro de 2022

Elétrico 28

 Ti Adérito, mirandês dos quatro costados, tinha por hábito descer à capital, duas ou três vezes por ano. Apanhava um autocarro em Miranda do Douro e lá seguia caminho.
Quem o via, olhava-o com caridade. Vestia-se com roupas para lá de velhas; tinha trejeitos de mendigo; carteira ou porta-moedas nunca se lhe vira; maneiras rudes e parolas; e não se coibia de falar em mirandês, língua em que era fluente.
Chegado a Lisboa, instalava-se na casa de uma irmã para a viagem lhe sair mais económica. Nunca levava uma lembrança aos sobrinhos que tanto adoravam a bola doce mirandesa, ou uma alheira caseira, ou até uma couve do quintal! Nada de nada. Depois de assentar poiso, dava umas voltas pela cidade. Como a irmã vivia lá para os lados da Graça, apanhava o elétrico 28. O percurso começa no Martim Moniz e vai até Campo de Ourique, junto ao cemitério dos Prazeres – não compreendo como é que alguém dá o nome “Prazeres” a um cemitério! Qual é o prazer de morrer? Cá por mim deixo-me estar por estas bandas que das outras não quero saber, por ora. Passa pelas zonas mais emblemáticas de Lisboa, onde os turistas gostam de ir: Igreja dos Anjos, miradouros, Sé, Chiado, Camões, Basílica da Estrela, etc. Quem vive em Lisboa, conhece sobejamente este elétrico. Pasme-se: qualquer visitante estrangeiro desprevenido fica sem a carteira e nunca mais esquece o elétrico. Por mais polícias, à paisana, que circulem no elétrico 28, os manhosos dos carteiristas, contornam a questão. 
O ti Adérito, com a sua triste figura, passava incólume às mãos dos larápios. Quereis saber onde guardava o dinheiro? As moedas iam enroladas num lenço das mãos; e as notas, dentro das meias, presas com um elástico a reforçar. 
As razões, destas viagens a Lisboa, na terra ninguém as conhecia, nem ele fazia alarido delas. Cada um aventava o que melhor lhe parecia, mas longe ficavam da realidade. Estais em pulgas para saber do que se trata, não é verdade?
Pois o ti Adério era proprietário de dois prédios, cada um com cinco andares, vários apartamentos em cada piso e todos arrendados. Vinha ver se estava tudo bem cuidado, as rendas em dia e falar com o gerente do banco – não queria expor-se aos bancos lá da terra, preferia manter o caso em segredo.
Em certa viagem de elétrico, deparou-se com uma rapariga a olhá-lo de forma que ele não compreendia. Olhar fixo, oblíquo e penetrante. Dos lábios vermelhos e carnudos, soltava um sorriso discreto. Mal mostrava os dentes brancos e reluzentes. Meneava, com trejeitos, fartos cabelos lisos e longos, negros como a noite. Por debaixo de uma blusa de rendas - saltavam aos olhos -, um par de roliços seios. A cintura era delgada como a de uma vespa, ancorada em coxas fartas que transpareciam por debaixo de uma saia justa, que batia um pouco acima dos joelhos. As mãos eram esguias e longas, e a tez alva como a neve da serra da Nogueira.
Que figura inquietante! Por que razão estaria a olhá-lo, sendo ele de tão fraca aparência, bem o sabia? Deixou-se estar a ruminar no assunto, sem se mover do lugar onde vinha sentado, junto à janela. O lugar ao lago vagara, saíra um homem na paragem. A mulher, delicadamente, pedira se podia sentar-se. Não disse que sim nem que não. O silêncio foi entendido como consentimento. O ti Adérito permanecia estático e como se nada fora com ele, mas só na aparência, o coração pulava-lhe no peito. – Que quererá o dianho da mulher? – pensava entre dentes – Se calhar é alguma inquilina e eu não me estou a lembrar dela? Mas que diabo se está a passar? É melhor esperar um pouco a ver se ela abre a boca, se não, saio e depois apanho outro. Raios na mulher! Está a pôr-me doido.
Passaram duas paragens e a mulher resolveu meter conversa.
- O senhor não é de cá, pois não?
O ti Adérito estava sem saber se abria a boca, ou pulava borda fora. Sempre fora contido e discreto quanto à sua vida e agora uma estranha a meter conversa, querem lá ver o despropósito?
- Não.
- Logo vi. O senhor veio visitar os seus filhos?
- Não tenho filhos.
- Tem a certeza?
- Absoluta, menina. Nunca casei.
- Veja se conhece quem está nesta fotografia – abrira a carteira para lha mostrar.
O pobre do ti Adérito ficara sem uma gota de sangue, nem respirar era capaz. Reconhecera-se na fotografia, junto a uma jovem, muitos e muitos anos atrás.
- É a minha mãezinha e o senhor Adérito, não é verdade?
- Se a menina diz ser filha desta senhora…
- E sua, também.
- Cruz, credo! Nunca soube de tal. – parecia que ia desmaiar de susto.
- Pois não. Quando a mãezinha soube que estava grávida, foi embora de Lisboa. Tinha vergonha de ser mãe solteira. Mas olhe que nada me faltou. Cuidou de mim com muito amor e carinho. Hoje, sou eu que cuido dela. Estudei, arranjei um bom emprego e vivemos bem. Quer ver a mãezinha? Dou-lhe a morada.
Meneou a cabeça dizendo que sim. As palavras ficaram-lhe coladas ao céu da boca. Por mais que tentasse balbuciar algo, a língua estava enrolada. 
Acertaram a visita. Convinha preparar a mãe para o receber.
No dia e hora combinados, bateu à porta do 3º andar esquerdo, no número 20 da Calçada da Estrela. Comprara roupa e uns sapatos novos para se apresentar condignamente. Nas mãos, levava um ramos de rosas amarelas, ainda se lembrava serem as preferias de Natalina.
A porta abrira-se e ele, assim que bateu com os olhos em Natalina, caiu de joelhos ao chão. Não aguentou tanta emoção. Abraçou a filha e a mãe com o rosto coberto de lágrimas, pediu-lhes perdão por não saber nada delas, que tudo teria sido diferente se soubesse do caso…
- Deixe lá, paizinho. Daqui para a frente tudo pode ser diferente, se o paizinho nos aceitar.
- Amanhã mesmo vou falar ao meu advogado para resolvermos tudo. Quero que sejas reconhecida como minha filha. Que nome te deu tua mãe?
- Deu-me o nome da sua mãe: Eugénia.
- Então vais passar a chamar-te Eugénia de Andrade Correia.
Havia, sobre a mesa da sala, uma toalha alvíssima bordada com umas ramagens de campos de trigo, que o transportou a longuíssimos tempos. Tinha sido um presente que dera a Natalina. Como ela ainda conservava aquela toalha. Não se esquecera dele. 
Eugénia serviu bolo de mármore, acabado de fazer, e chá. Sabia ser o bolo preferido do pai.
 

©Teresa do Amparo Ferreira, 28-10-2022
Natural de Torre de Dona Chama,
Mirandela, Bragança, Portugal.

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