Por: Paula Freire
(colaboradora do Memórias...e outras coisas...)
- Olha a velha Pepa! Foge qu’é bruxa! - gritava a rapaziada em desgovernado alarido, sempre que a viam passar pelos caminhos da aldeia. Já trôpega do corpo inteiro, cabeça enfiada debaixo de um lenço cor de escuridão, a tossicar maldições, em sussurro, contra a canalha atrevida e despropositada.
Onde iria a velha Pepa, por esses dias frios de outono, quando passava, quase muda para o mundo, com a vagareza de quem já conhecia o amargo sabor de um século de vida?
Que a desgraçada da morte a levasse de uma vez, pensava muitas vezes com os vetustos botões, já descascados, da intrépida casaca, companheira de incontáveis invernos. Que fazia ela aqui, a dever agora tantos anos à cova, vítima de tamanhas e inclementes dores e desalentos?
E praguejava para dentro, com o pensamento entrecortado por duas ou três ave-marias que a protegessem das mordazes e implacáveis vozes dos maganões que, assim, a atormentavam sempre que por ali tinha precisão de passar, para o cumprimento da sua longa missão.
Benzia-se uma e depois outra vez e arrepiava caminho até se tornar invisível aos olhares que a perscrutavam.
A verdade é que nunca ninguém se atrevera a segui-la com o intuito de lhe adivinhar o destino. Talvez fosse o medo de confirmarem os feitiços que a centenária cuspia do olhar, segundo rezavam os mais velhos.
O certo, é que também nunca ninguém a vira regressar do lugarejo onde pudesse ter ido conceber estranhos sortilégios.
Era um mistério, porque no ano seguinte, lá a viam de novo a tremelicar passos pesados por baixo dos pés rombos.
E a velha Pepa, que se entendia mais velha do que o mundo, desaparecia exatamente da mesma forma sinistra como surgia, sem que alguém lhe conhecesse a história.
Até ao dia em que não voltou.
Um ano e outro ano e mais outro e a velha Pepa não tornou a dar sinal de presença.
O povo, com intenção de lançar luz sobre o fenómeno, ainda que alguns mais desinteressados encolhessem os ombros enquanto profetizavam a morte da velha, destacou dois ou três rapazolas arrojados para descobrirem do segredo que lhe alimentava a curiosidade.
Já com as gentes cheias de preocupação e sobressalto, foram precisos alguns dias até que aqueles regressassem com notícias.
Tinham encontrado lá para as bandas dos confins da aldeia, escondido e tenebroso lago, com que poucas almas, mesmo atentas, dariam de caras. Enterrada nas margens, vultosa cruz de madeira anunciava que ali houvera morte certa há um horror de anos atrás. Jocelino Ventura, o nome gravado em epígrafe.
Adiante, um tortuoso caminho coberto de matagais, conduzira-os a uma inóspita casa. Com cheiro a almas penadas, garantiram. Lá dentro, entre antiguidades e lixo acumulado, vários retratos de onde se destacava bonito casal e uma criança de tenra idade. Por trás, a referência, em letra miudinha, à nobre família Ventura. Junto ao retrato, coçado diário a revelar trágicas desventuras.
Vivia feliz o casal Anastácio e sua esposa Josefa Ventura, com o enlevo próprio de pais afortunados pelo único filho, o pequeno Jocelino, até ao dia fatídico em que desprevenido tiro, dado pelo próprio pai, em tarde de caça e lazer, caíra sobre o corpo leve do menino. Descomposto e desvairado pela amargura do destino, e a prever a loucura em que a fatalidade atiraria a mulher, o infeliz homem premiu o gatilho sobre si mesmo, logo depois de deitada a alma da criança nas águas daquele lago.
A vida morreu para a pobre mãe naquele dia. E, em cada ano que o tempo a obrigou a abraçar aquela dor, D. Josefa tornava sua a missão de, pelas alturas em que o infortúnio fazia memória, derramar as suas lágrimas amargas sobre a cova do único amor que pudera sentir, pedindo clemência ao Senhor pela cobarde desumanidade do marido.
Estupefacta com a inusitada história, a aldeia inteira pediu perdão ao espírito de D. Josefa pela maldade das suposições e dos impropérios sempre proferidos. O retrato do casal, colocado junto ao altar da igreja, passou, então, a relíquia do local com desejo de absolvição pelos atos praticados. De bruxa, D. Josefa subiu ao estatuto de santa.
Como o rasto lhe foi perdido, todos acreditaram que também partira.
Mas nunca ninguém conseguiu compreender porque motivo, pelos dias mais frios de cada outono, a névoa erguida do lago, acordava todas as noites vestida de um fogo azul, com surpreendente odor a condenação.
Onde iria a velha Pepa, por esses dias frios de outono, quando passava, quase muda para o mundo, com a vagareza de quem já conhecia o amargo sabor de um século de vida?
Que a desgraçada da morte a levasse de uma vez, pensava muitas vezes com os vetustos botões, já descascados, da intrépida casaca, companheira de incontáveis invernos. Que fazia ela aqui, a dever agora tantos anos à cova, vítima de tamanhas e inclementes dores e desalentos?
E praguejava para dentro, com o pensamento entrecortado por duas ou três ave-marias que a protegessem das mordazes e implacáveis vozes dos maganões que, assim, a atormentavam sempre que por ali tinha precisão de passar, para o cumprimento da sua longa missão.
Benzia-se uma e depois outra vez e arrepiava caminho até se tornar invisível aos olhares que a perscrutavam.
A verdade é que nunca ninguém se atrevera a segui-la com o intuito de lhe adivinhar o destino. Talvez fosse o medo de confirmarem os feitiços que a centenária cuspia do olhar, segundo rezavam os mais velhos.
O certo, é que também nunca ninguém a vira regressar do lugarejo onde pudesse ter ido conceber estranhos sortilégios.
Era um mistério, porque no ano seguinte, lá a viam de novo a tremelicar passos pesados por baixo dos pés rombos.
E a velha Pepa, que se entendia mais velha do que o mundo, desaparecia exatamente da mesma forma sinistra como surgia, sem que alguém lhe conhecesse a história.
Até ao dia em que não voltou.
Um ano e outro ano e mais outro e a velha Pepa não tornou a dar sinal de presença.
O povo, com intenção de lançar luz sobre o fenómeno, ainda que alguns mais desinteressados encolhessem os ombros enquanto profetizavam a morte da velha, destacou dois ou três rapazolas arrojados para descobrirem do segredo que lhe alimentava a curiosidade.
Já com as gentes cheias de preocupação e sobressalto, foram precisos alguns dias até que aqueles regressassem com notícias.
Tinham encontrado lá para as bandas dos confins da aldeia, escondido e tenebroso lago, com que poucas almas, mesmo atentas, dariam de caras. Enterrada nas margens, vultosa cruz de madeira anunciava que ali houvera morte certa há um horror de anos atrás. Jocelino Ventura, o nome gravado em epígrafe.
Adiante, um tortuoso caminho coberto de matagais, conduzira-os a uma inóspita casa. Com cheiro a almas penadas, garantiram. Lá dentro, entre antiguidades e lixo acumulado, vários retratos de onde se destacava bonito casal e uma criança de tenra idade. Por trás, a referência, em letra miudinha, à nobre família Ventura. Junto ao retrato, coçado diário a revelar trágicas desventuras.
Vivia feliz o casal Anastácio e sua esposa Josefa Ventura, com o enlevo próprio de pais afortunados pelo único filho, o pequeno Jocelino, até ao dia fatídico em que desprevenido tiro, dado pelo próprio pai, em tarde de caça e lazer, caíra sobre o corpo leve do menino. Descomposto e desvairado pela amargura do destino, e a prever a loucura em que a fatalidade atiraria a mulher, o infeliz homem premiu o gatilho sobre si mesmo, logo depois de deitada a alma da criança nas águas daquele lago.
A vida morreu para a pobre mãe naquele dia. E, em cada ano que o tempo a obrigou a abraçar aquela dor, D. Josefa tornava sua a missão de, pelas alturas em que o infortúnio fazia memória, derramar as suas lágrimas amargas sobre a cova do único amor que pudera sentir, pedindo clemência ao Senhor pela cobarde desumanidade do marido.
Estupefacta com a inusitada história, a aldeia inteira pediu perdão ao espírito de D. Josefa pela maldade das suposições e dos impropérios sempre proferidos. O retrato do casal, colocado junto ao altar da igreja, passou, então, a relíquia do local com desejo de absolvição pelos atos praticados. De bruxa, D. Josefa subiu ao estatuto de santa.
Como o rasto lhe foi perdido, todos acreditaram que também partira.
Mas nunca ninguém conseguiu compreender porque motivo, pelos dias mais frios de cada outono, a névoa erguida do lago, acordava todas as noites vestida de um fogo azul, com surpreendente odor a condenação.
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