Por: Luís Abel Carvalho
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)
- Ora atão bôs dias, ó Droteia.
- Bôs dias pra ti tamãe, Cassilda.
- Atão andas a regar, no é berdade? Rega, rega imentes nos bem o calor.
- Ó...nem sei se balerá munto a pena. ´Sta tudo mirradinho, co a falta d´auga – lamentou-se a tia Doroteia, pousando o regador no chão. - Num tchobeu aquando debia.
- É berdade. Nem balem a auga que gastemos, mas atão, que se l´há-de fazer? Temos que tantar salbar o que temos. É poucotchinho, mas...– disse encolhendo os ombros. – Rais pele a bida. Lubemos uma bida só de trabalhos e de miséria. Rais palira...
- Num blasfemes, mulher, que Deus inda te castiga.
- Tchiça! Inda mais?!Num deb´haber maior castigo do qu´este. Inté parece uma praga que me caiu em cima.
- Inda podia ser mais pior. Que num banha outro ano da fome.
- E a mim já m´abonda o peso desta calúnia que me caiu na alma, c´muma praga. Já bistes uma cousa assim?Sempre fui uma mulher séria, que nunca roubei uma migalha a ninguém e agora, acusam-me de roubar a horta do Senhor Januário...! Que fiquem tolhidas as mãos e as patas ó ´scmungado que o fizo.
- Ou ´scumngada, porque ninguém sabe quem foi. Bá... num t´imborreças. Todos nós temos uma cruz prá´carretar, c´mo Nosso Senhor Jesus Cristo. – animou-a a Tia Doroteia. – Se perante Deus t´achas inocente, isso é qu´abonda. Agora, a justiça dos homes, no adboga nada. São lérias!!
- Pois...é munto fácil decer, mas quem ´stá no conbento, é que sabe o que lá bai dentro.
- Lá isso tamãe é berdade, mas atão... num conheces o dito: “ Uns é que comem os figos e a outros é que l´ arrebentam os lábios.
- Essa é qué essa. Que l´arrebente o bandulho e que fique duas semanas sem cagar, o malbado. – disse em tom furioso, compondo o lenço da cabeça.
- Ba, num t´intertas. E olha um conselho duma ruim cabeça: se tães a concência tranq´ila, isso é qu´importa. Se ´tás inocente ós olhos do Dbino, deixa falar...- reforçou a cantilena.
- Que romédio! Bá, bou-me lá que se me faz tarde. Mas que me custa, custa. Inté ando co a cara tapada e a olhar pró tchão. Muntos já nem a salbação me dão, s´quera!
- Pois...há gente rim cmá fome. Credo!!Bá...Bai com Deus e a Birgem Santíssima.
Tia Cassilda lá arrastou os chanatos na poeira do caminhao, a rogar pragas a quem a caluniou.
Concência...Qual concência, nem meia concência! Ficastes co as culpas e eu lá me librei delas. A bida é mesmo assim: pagó justo plo pecador e é pra ser bibida cá na terra. Despois disso...sabemo-sio lá! A mim a concência num me pesa nada. Que bem me souberam aquelas tomates, os pimentos, as cenoiras, as alfaces e as cebolas. E nem s´quera falaram dos melões! Tu há-des arrastar essa culpa todá bida, porqu´eu, nem na hora da morte o hei-de confessar. É um segredo qu´hei-de lubar comigo prá coba. Num me tcham´eu Droteia da Nat´bidade Cardoso. ( Tudo isto foi pensado e dito em voz interior!, enquanto tirava água do poço com um balde e com a ajuda duma cegonha, que despejava depois para um regador de lata.
Quatro anos mais tarde.
- Ó Srafim - chamou da cama a Tia Doroteia, com voz apagada, onde estava já há quase dois anos, depois duma queda de uma oliveira. – Há-des decer ó Sr. Dr. pra bir cá, que me sinto munto mal. Ele que banha logo que possa, porque num me sinto nada bem.
Nesse mesmo dia, o Dr. Cândido auscultou-a demoradamente e saiu com o sobrolho carregado.
- Atão, Sr. Dr. é cousa de preocupação? – perguntou-lhe o Ti Serafim, vendo o médico com cara de poucos amigos.
- Olha, Serafim. Não te quero criar falsas ilusões, mas não esperes nada de bom. A tua mulher vai durar apenas uns dias.
- O que me diz, Sr. Dr.?!- perguntou incrédulo.
- Estou a ser sincero contigo. No entanto, não lhe digas nada.
- Obrigado, Sr. Dr. Atão q´anto é que le debo por a consulta.
- Deixa lá isso. Não me deves nada – disse o Dr. num gesto de enxotar moscas.
- Que Deus Nosso Senhor lo acrescente.
- Atão o qué que ´stibestens a bitchanar os dois? O qué que disse o Dr.? – perguntou a mulher sem abrir os olhos, que já desconfiava de algo grave.
- Num disse nada. Só disse que daqui a três ou quatro dias já ´stás guitcha oitra bez.
- Hum...num te fintes nisso. Num arribo, não. ´Stou munto mal, Srafim ! Juro-tá fé de quem sou– disse numa voz sumida.
- Num ´stás nada. Isso é cisma tua. Tães mas é qu´inguitchar- tentava consolá-la o marido.
No dia seguinte, perguntou-lhe a mulher:
- Ele a que tocam, Srafim?
- É a tchamar prá confissões. – disse-lhe o marido.
- Atão fazes o fabor de qando acabarem, pedes ó Senhor Prior que banha cá, mas só despois da ceia.
- Mas pra quê essa pressa toda?
- Eu é que sei cmo me sinto. Mandó bir cá óspois da ceia.Quero me confessar, porque talbez seija a última, que to digo eu.
- Então que sangria desatada é essa para se confessar, Tia Doroteia?!- perguntou o padre Celestino ao entrara no quarto escuro, apenas iluminado por uma lamparina de azeite.
- Tanho que me confessar, Senhor padre, porque o meu fim ´stá a tchigar.
- Então que desânimo vem a ser esse? Tenha fé e esperança em Nosso Senhor Jesus Cristo.
- Tamãe tanho e munta. Pois por isso é que me quero confessar. Tanho na alma o peso dum grande pecado. Só peço a Deus que salve. É um pecado que m´aflige já bai praí pra riba de cinco anos!
- Então confesse e pode falar à vontade, porque tudo o que me disser, ficará em segredo eterno de confissão.
- Só tanho medo que Deus num me perdoi.
- Perdoa, sim. A confissão serve precisamente para Deus perdoar os nossos pecados, se realmente estivermos arrependidos deles, e nos salvar das profundezas do inferno.
Tia Doroteia fez uma confissão honesta e, no final, pediu o seguinte:
- Num durarei munto mais. Sinto qu´o meu fim ´sta a tchigar. Por isso pedia-le que anunciasse do altar abaixo que quem roubou a horta do Senhor Januário fui eu e a pobre da Cassilda é que ficou co as culpas. Mas diga isto só uma ou duas semanas despois d´eu morrer.
De facto, três dias depois a tia Doroteia morreu em paz com a sua consciência, à luz das leis da igreja. E após quinze dias,o padre Celestino dizia o seguinte do altar abaixo:
- Caros paroquianos. Não há dor maior do que carregarmos na alma o peso de um pecado que não cometemos. Nosso Senhor, na sua infinita misericórdia, dá-nos a possibilidade de nos redimirmos até ao último minuto das nossas vidas. Sem mais delongas, vou directo ao assunto: a Tia Cassilda carrega há quase cinco anos o peso da vergonha de ter roubado a horta do Senhor Januário. Posso assegurar-vos de que não foi ela. ( Ouviu-se um “ ah...” abafado pela igreja). E em nome de todos, quero aqui pedir perdão à Tia Cassilda por todos aqueles que não acreditaram nela. A vergonha que passou durante estes anos todos, não lha podemos tirar, mas podemos devolver-lhe a honra perdida. Fica aqui a verdade reposta.
E assim a Tia Cassilda, na medida do possível, voltou a mostrar a cara e os dentes, embora timidamente.
- Bôs dias pra ti tamãe, Cassilda.
- Atão andas a regar, no é berdade? Rega, rega imentes nos bem o calor.
- Ó...nem sei se balerá munto a pena. ´Sta tudo mirradinho, co a falta d´auga – lamentou-se a tia Doroteia, pousando o regador no chão. - Num tchobeu aquando debia.
- É berdade. Nem balem a auga que gastemos, mas atão, que se l´há-de fazer? Temos que tantar salbar o que temos. É poucotchinho, mas...– disse encolhendo os ombros. – Rais pele a bida. Lubemos uma bida só de trabalhos e de miséria. Rais palira...
- Num blasfemes, mulher, que Deus inda te castiga.
- Tchiça! Inda mais?!Num deb´haber maior castigo do qu´este. Inté parece uma praga que me caiu em cima.
- Inda podia ser mais pior. Que num banha outro ano da fome.
- E a mim já m´abonda o peso desta calúnia que me caiu na alma, c´muma praga. Já bistes uma cousa assim?Sempre fui uma mulher séria, que nunca roubei uma migalha a ninguém e agora, acusam-me de roubar a horta do Senhor Januário...! Que fiquem tolhidas as mãos e as patas ó ´scmungado que o fizo.
- Ou ´scumngada, porque ninguém sabe quem foi. Bá... num t´imborreças. Todos nós temos uma cruz prá´carretar, c´mo Nosso Senhor Jesus Cristo. – animou-a a Tia Doroteia. – Se perante Deus t´achas inocente, isso é qu´abonda. Agora, a justiça dos homes, no adboga nada. São lérias!!
- Pois...é munto fácil decer, mas quem ´stá no conbento, é que sabe o que lá bai dentro.
- Lá isso tamãe é berdade, mas atão... num conheces o dito: “ Uns é que comem os figos e a outros é que l´ arrebentam os lábios.
- Essa é qué essa. Que l´arrebente o bandulho e que fique duas semanas sem cagar, o malbado. – disse em tom furioso, compondo o lenço da cabeça.
- Ba, num t´intertas. E olha um conselho duma ruim cabeça: se tães a concência tranq´ila, isso é qu´importa. Se ´tás inocente ós olhos do Dbino, deixa falar...- reforçou a cantilena.
- Que romédio! Bá, bou-me lá que se me faz tarde. Mas que me custa, custa. Inté ando co a cara tapada e a olhar pró tchão. Muntos já nem a salbação me dão, s´quera!
- Pois...há gente rim cmá fome. Credo!!Bá...Bai com Deus e a Birgem Santíssima.
Tia Cassilda lá arrastou os chanatos na poeira do caminhao, a rogar pragas a quem a caluniou.
Concência...Qual concência, nem meia concência! Ficastes co as culpas e eu lá me librei delas. A bida é mesmo assim: pagó justo plo pecador e é pra ser bibida cá na terra. Despois disso...sabemo-sio lá! A mim a concência num me pesa nada. Que bem me souberam aquelas tomates, os pimentos, as cenoiras, as alfaces e as cebolas. E nem s´quera falaram dos melões! Tu há-des arrastar essa culpa todá bida, porqu´eu, nem na hora da morte o hei-de confessar. É um segredo qu´hei-de lubar comigo prá coba. Num me tcham´eu Droteia da Nat´bidade Cardoso. ( Tudo isto foi pensado e dito em voz interior!, enquanto tirava água do poço com um balde e com a ajuda duma cegonha, que despejava depois para um regador de lata.
Quatro anos mais tarde.
- Ó Srafim - chamou da cama a Tia Doroteia, com voz apagada, onde estava já há quase dois anos, depois duma queda de uma oliveira. – Há-des decer ó Sr. Dr. pra bir cá, que me sinto munto mal. Ele que banha logo que possa, porque num me sinto nada bem.
Nesse mesmo dia, o Dr. Cândido auscultou-a demoradamente e saiu com o sobrolho carregado.
- Atão, Sr. Dr. é cousa de preocupação? – perguntou-lhe o Ti Serafim, vendo o médico com cara de poucos amigos.
- Olha, Serafim. Não te quero criar falsas ilusões, mas não esperes nada de bom. A tua mulher vai durar apenas uns dias.
- O que me diz, Sr. Dr.?!- perguntou incrédulo.
- Estou a ser sincero contigo. No entanto, não lhe digas nada.
- Obrigado, Sr. Dr. Atão q´anto é que le debo por a consulta.
- Deixa lá isso. Não me deves nada – disse o Dr. num gesto de enxotar moscas.
- Que Deus Nosso Senhor lo acrescente.
- Atão o qué que ´stibestens a bitchanar os dois? O qué que disse o Dr.? – perguntou a mulher sem abrir os olhos, que já desconfiava de algo grave.
- Num disse nada. Só disse que daqui a três ou quatro dias já ´stás guitcha oitra bez.
- Hum...num te fintes nisso. Num arribo, não. ´Stou munto mal, Srafim ! Juro-tá fé de quem sou– disse numa voz sumida.
- Num ´stás nada. Isso é cisma tua. Tães mas é qu´inguitchar- tentava consolá-la o marido.
No dia seguinte, perguntou-lhe a mulher:
- Ele a que tocam, Srafim?
- É a tchamar prá confissões. – disse-lhe o marido.
- Atão fazes o fabor de qando acabarem, pedes ó Senhor Prior que banha cá, mas só despois da ceia.
- Mas pra quê essa pressa toda?
- Eu é que sei cmo me sinto. Mandó bir cá óspois da ceia.Quero me confessar, porque talbez seija a última, que to digo eu.
- Então que sangria desatada é essa para se confessar, Tia Doroteia?!- perguntou o padre Celestino ao entrara no quarto escuro, apenas iluminado por uma lamparina de azeite.
- Tanho que me confessar, Senhor padre, porque o meu fim ´stá a tchigar.
- Então que desânimo vem a ser esse? Tenha fé e esperança em Nosso Senhor Jesus Cristo.
- Tamãe tanho e munta. Pois por isso é que me quero confessar. Tanho na alma o peso dum grande pecado. Só peço a Deus que salve. É um pecado que m´aflige já bai praí pra riba de cinco anos!
- Então confesse e pode falar à vontade, porque tudo o que me disser, ficará em segredo eterno de confissão.
- Só tanho medo que Deus num me perdoi.
- Perdoa, sim. A confissão serve precisamente para Deus perdoar os nossos pecados, se realmente estivermos arrependidos deles, e nos salvar das profundezas do inferno.
Tia Doroteia fez uma confissão honesta e, no final, pediu o seguinte:
- Num durarei munto mais. Sinto qu´o meu fim ´sta a tchigar. Por isso pedia-le que anunciasse do altar abaixo que quem roubou a horta do Senhor Januário fui eu e a pobre da Cassilda é que ficou co as culpas. Mas diga isto só uma ou duas semanas despois d´eu morrer.
De facto, três dias depois a tia Doroteia morreu em paz com a sua consciência, à luz das leis da igreja. E após quinze dias,o padre Celestino dizia o seguinte do altar abaixo:
- Caros paroquianos. Não há dor maior do que carregarmos na alma o peso de um pecado que não cometemos. Nosso Senhor, na sua infinita misericórdia, dá-nos a possibilidade de nos redimirmos até ao último minuto das nossas vidas. Sem mais delongas, vou directo ao assunto: a Tia Cassilda carrega há quase cinco anos o peso da vergonha de ter roubado a horta do Senhor Januário. Posso assegurar-vos de que não foi ela. ( Ouviu-se um “ ah...” abafado pela igreja). E em nome de todos, quero aqui pedir perdão à Tia Cassilda por todos aqueles que não acreditaram nela. A vergonha que passou durante estes anos todos, não lha podemos tirar, mas podemos devolver-lhe a honra perdida. Fica aqui a verdade reposta.
E assim a Tia Cassilda, na medida do possível, voltou a mostrar a cara e os dentes, embora timidamente.
Excerto do conto “ O peso da culpa.”
Fontes de Carvalho
Fontes de Carvalho, pseudónimo de Luís Abel Carvalho, nasceu no Larinho, uma aldeia transmontana do Concelho de Torre de Moncorvo, Distrito de Bragança. É o filho do meio de três irmãos.
Estudou em Moncorvo, Bragança e no Porto, onde se formou em Engenharia Geotécnia. É casado e Pai de três filhos.
Viveu no Brasil, onde passou por momentos dolorosos e de terror, a nível económico e psicológico. Chegou a viver das vendas de artesanato nas ruas e a dormir debaixo de Viadutos.
No ano de 1980 e 1981 foi Professor de Matemática em Angola, na Província de Kwanza Sul, em Wuaku-Kungo. Aí aprendeu a desmistificar certos mitos e viveu uma realidade muito diferente da propagandeada.
Em Portugal deu aulas de Matemática em diversas cidades, nomeadamente em São Pedro da Cova, Ponte de Lima, Cascais (na Escola de Alcabideche, onde deu aulas aos presos da cadeia do Linhó), Alcácer do Sal, Escola Francisco Arruda e Luís de Gusmão, em Lisboa. Frequentou durante quatro anos, como trabalhador-estudante, o curso de Engenharia Rural, no Instituto Superior de Agronomia.
Em 1995 fundou a empresa Bioprimática – Reciclagem de Consumíveis de Informática, onde trabalha até hoje como sócio-gerente.
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