(colaborador do Memórias...e outras coisas...)
É claro como água clara para quem o quiser ver, livres não somos, bom era, como nos enganava a velha cantiga da gaivota, quem é que neste mundo se pode gabar disso, simples mecanismos a que se deu corda há milhões e milhões de anos, deram corda a outros e esses a outros e a outros e a outros até chegar aqui, e nós nem tidos nem achados, sem que alguém nos tenha dado uma única palavra uma só vez que fosse quanto a essa gravíssima questão, alguém sensível a um jeitinho, uma cunha para o evitar e nos desenrascar, nada, zero vírgula zero zero e por conseguinte aqui estamos, marionetas obscuras numa viagem alucinante que nunca nos passaria pela cabeça reservar e há que custear ainda assim, sofrer-lhe todos os enjoos, transtornos, acidentes, para afinal não sobreviver ao último, existe, bem entendido, a ilusão,
– ninguém me diz o que fazer
mas que liberdade em nascer numa família herdando-lhe genes, fortuna, pobreza, tiques, ideias, parvoíces, que liberdade em receber da tribo que nos chama cidadãos história, cultura, língua, crenças, preconceitos, que liberdade em ser de um grupo, clube, partido, sindicato, religião, seita, agremiação, irmandade, confraria (incluindo a do botelo e das casulas onde parece mal não defender a excelência do botelo e das casulas), que liberdade em seguir ideias pelas quais se mata e morre, que liberdade quando se tem um lar, um filho, um cônjuge, um patrão, um diretor, um guia, um rei, um general, um presidente, um líder, livres coisíssima nenhuma, existe, bem entendido, a ilusão,
– faço o que me dá na real gana
todavia, como ordenar aos nossos órgãos que descansem, deixar de respirar, recusar alimento, abrigo, proteção, como eliminar instintos e impulsos, como não querer ganhar a vida, como não defender o património ou o estatuto que nos dão visibilidade e importância, como não desejar outros corpos poderosamente e sentir a vontade irreprimível de produzir seres iguais a nós que hão de sair de nós, como não experimentar o rancor ou o sabor corrosivo e ubíquo da inveja, como não ser mau pelo menos uma vez na vida, como não experimentar o medo de um invisível bicho feio que ameaça aniquilar-nos, existe, bem entendido, a ilusão,
– sei quem sou e para onde vou
contudo, desde quando, a cada hora que passa, impedirmo-nos de rodar junto com a terra mais de mil e setecentos quilómetros em torno do seu eixo, cento e sete mil em redor do Sol, um milhão à volta do centro da galáxia, desde quando uma caminhada ao núcleo ardente do planeta, ir de manhã à estrela proxima centauri e regressar a horas decentes pra jantar, desde quando ter asas ou nadar por baixo de água, desde quando podermos ser crustáceos, invertebrados, bactérias, fungos, algas, existe, bem entendido, a ilusão,
– quero posso e mando
porém, onde é que já se viu atravessar paredes, ocupar o mesmo lugar que outro objeto ou estar em dois simultaneamente, onde já se viu fazer parar o tempo ou viajar montados nele, onde já se viu estancar a mudança e a corrupção de todas as coisas, onde já se viu fazer com que o que aconteceu não tenha acontecido e impedir que não se dê o que se sabe com toda a certeza se vai dar, onde já se viu evitar que muitos anos antes de passarem dez mil anos não exista uma só célula de um órgão que tenha sido nosso, um objeto que tenhamos desejado e possuído, uma frase dita, um miserável bit de memória do que fomos, existe, bem entendido, a ilusão,
– sou senhor do meu nariz
e quê, se tudo o que engendramos nos torna ainda menos livres do que éramos antes de o engendrar, se estaremos ligados para sempre a cada gesto, a cada dedo que mexemos, se cada passo andado é para sempre que o andamos, se cada olhar nos prende àquilo que é olhado, se cada palavra que largamos nos liga a quem a dirigimos, se cada silêncio nos identifica com aqueles contra quem o disparamos, se cada lágrima nos prende à razão pela qual acaba de cair, se cada ação das nossas embate nos outros seres e os empurra para as ações que eles pensam sair só da vontade deles,
– parece não haver saída
e mesmo assim, mesmo assim, órfãos e perdidos num oceano onde ela simplesmente não existe, continuamos a ser ilhotas de completa liberdade nos desvãos da mente em que meditamos sós, nas caves em que as mágoas e alegrias são sentidas na paz mais absoluta, nos refúgios secretos em que desejamos ser coisas diferentes daquelas que somos.
(Nordeste - jun. 2020)
Manuel Eduardo Pires. Estes montes e esta cultura sempre foram o meu alimento espiritual, por onde quer que andasse. Os primeiros para já estão menos mal, enquanto a onda avassaladora do chamado progresso não decidir arrasá-los para construir sabe-se lá o quê, mas que nunca será tão bom. A cultura, essa está moribunda, e eu com ela. Daí talvez a nostalgia e o azedume naquilo que às vezes digo. De modo que peço paciência a quem tiver a paciência de me ir lendo.
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