terça-feira, 13 de novembro de 2018

A amizade desinteressada que leva a gestos de que o nosso Deus se orgulhará

Por: António Orlando dos Santos (Bombadas)
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")

Deveríamos estar no ano de 1984, não tenho elementos à mão para confirmar a data, mas não andarei longe, era eu proprietário do Café Flórida e durante a tarde no período antes do jantar estando eu no piso do rés-do-chão, oiço rebuliço na cave onde funcionava o Bar-Restaurante.
Desci as escadas e deparo-me com uma cena quase inimaginável para mim que nunca havia sido capaz de me debruçar com atenção para um facto social que no meu tempo de criação não era considerável, o vandalismo praticado por jovens desviados dos preceitos e regras de convívio que por razões inexplicáveis a eles lhes pareceram obsoletas e merecedoras de erradicação, para darem lugar à anarquia e ao instinto predador que o homem controla desde o tempo em que após a morte de Abel, Caim, depois de repreendido pelo Senhor, recebe a garantia de que será protegido pelo direito alienável à vida que a sua condição humana lhe confere. (Se alguém matar Caim, será castigado sete vezes mais) (Génesis/ 4-15).
Sentado num banco do Bar e com os pés em cima do balcão estava um rapazote que com uma travessa de ossinhos que serviriam de petisco a quem os desejasse, se divertia a dispará-los contra o empregado que tentando esquivar-se gritava por socorro enquanto os vidros que cobriam a parede de fundo se estilhaçavam com os projéteis que partiam garrafas estanteamento e vidros espelhados. Tentei obstar a tal disparate mas o acolhimento às minhas palavras foi apenas o desprezo absoluto pela minha intervenção. 
Chamou-se a Polícia e o rapazola foi levado para a Esquadra. Fui informado depois que era já useiro nestas cenas e que conhecido da Autoridade, no dia seguinte seria presente a Juízo, avisando-me que estivesse presente às tantas horas para depor e informar o Juiz da minha versão dos factos.
Não conhecia o rapaz e encarei o assunto como mais um de comportamento desviante de garoto sem educação.
Já me tinha acontecido tanta coisa desagradável que mais uma menos uma não era de me fazer perder a fé nos homens.
Por volta das dez da manhã do dia seguinte entram no Flórida duas mulheres que eu conhecia e que sempre estimei por todas as razões e mais uma! Tia Aniceta e Tia Preta! Os meus olhos abriram-se de espanto, surpresa e contentamento. Num instante pensei que me visitavam para me pedirem um pouco de fermento inglês para confecionarem algum folar, já que a Tia Lola, mãe do Michelin o fazia algumas vezes com uma frase que retenho com ciosidade, pois era de uma beleza que me comovia: -Ó meu filho, arranja-me aí uma castanhinha de fermento que quero fazer um folar e alguns filhoses. Não imaginava ao que de facto elas iam e porquê!
Depois da minha demonstração de regozijo, a Tia Aniceta diz-me que vêm para me pedir um favor, respondi, só se for coisa impossível, para duas damas desta estirpe, quem sou eu para recusar tal.
Falou a Tia Preta, sabemos que ontem tiveste aqui um problema. Sabemos também que quem o ocasionou irá hoje ser julgado por isso e outras coisa pendentes. -Eu estava confuso-  que teriam elas que ver com o caso? Continuou, vimos pedir-te que retires a queixa. Respondi, fá-lo-ei, mas já agora expliquem-me o que as levou a virem aqui? Responde a tia Aniceta, a amizade pelos pais e o amor ao delinquente, nasceu e foi criado ali à nossa roda e é um ser humano que merece ser encaminhado para o bom caminho.
Não vou revelar quem o rapaz era, mas vou dizer que apenas pensei, outra vez. o coração destas mulheres que ali dentro do peito de cada uma delas tem lugar para caber o mundo inteiro.
Disse-lhe apenas, vão com Deus que por mim não será ele condenado.
Despediram-se de mim com um beijo em cada face e eu fiquei com o ditado que minha mãe me ensinou: -Depois da tempestade vem a bonança. Esta última trouxeram-na estas duas mulheres da idade da minha mãe que não ocuparam a mente com ódios e raivas, mas apenas amor e solidariedade com os mais frágeis e expostos dos que na tempestade da sua existência não sobreviveriam sozinhos.
Não foi possível retirar a queixa, pois era ocorrência reportada à PSP e seguiu para Tribunal. Quando chamado a depor eu contei ao juiz a razão para a minha mudança de atitude, o Juiz disse, afinal não estamos perdidos, ainda há no mundo quem seja benevolente com os que sabe-se lá quem desvia para maus caminhos e porfia por trazer as ovelhas ao redil. Deus guarde essas mulheres para quem o meu pensamento se eleva pelo exemplo de amor e compaixão pelos que elas viram nascer, crescer e serem condenados, o que lhe atravessou o coração.
Retirei-me após o depoimento e fiquei com a consciência tranquila e de novo agradecido à Tia Preta e Aniceta pela lição que me deram. Só as Mães com letra grande são capazes destes gestos sublimes de fazer descer a bonança à cabeça e coração dos homens. 

Este texto dedico-o às netas e netos destas duas DAMAS de coração de ouro, que não traziam rosas nos regaços, mas algo mais valioso, sentimentos puros como a própria PUREZA. 






Bragança 17/10/2018
A. O. dos Santos
(Bombadas)

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