quinta-feira, 8 de novembro de 2018

Crónica da gente da minha rua – O Chico Brôa

Por: António Orlando dos Santos (Bombadas)
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")
Nos meus tempos de menino, morava na minha rua, um homem a quem eu atribuía poderes ocultos. Claro que deixo já bem explícito que o que eu pensava não correspondia minimamente à verdade. O seu aspeto e a sua maneira de ser, quase ascética, eram, para mim, causa das mais variadas conjeturas. Há ainda muita gente que se lembrará dele. Chamavam-lhe o Chico Brôa. Coloco o acento circunflexo mesmo que o Acordo Ortográfico o suprima porque para mim o Brôa do Chico não quedaria bem sem o dito. 

Vivia com a mãe, mulher já velha que, como ele, era pouco comunicativa. Não me lembro do seu nome e duvido que alguma vez o houvesse sabido pois, para mim, ela era apenas a mãe do Chico Brôa. Era ardina e trabalhava para o Guedes do Quiosque. Trazia sempre, a tiracolo, um saco de alça onde metia os jornais. Fora confecionado com o mesmo tipo de cotim com que se faziam as fardas da Guarda Republicana. Saía de casa de manhã cedo e normalmente só regressava ao fim do dia. Vestia sempre de escuro e só no pico do Estio aparecia sem um casacão enormíssimo e pesado, que era agasalho que parecia ser parte de si mesmo. Usava cinto da Legião com fivela amarela polida.
Como disse anteriormente, era ardina e fazia a distribuição dos jornais pelas residências dos assinantes e também nos estabelecimentos comerciais. Fazia a coleta dos respetivos pagamentos e também era ele que estava encarregado de levantar os jornais diariamente na Estação do Caminho de Ferro, no setor das tarifas onde pontuava o tio Correia, pai do Zé Russo e do Faróis, mais conhecido pelo tio Ralha. 
Depois da esposa do Guedes fazer a separação, fazia ele a ronda pela cidade na sua distribuição. Falta dizer que, naquele tempo, as pessoas assinavam os jornais para se manterem informadas das novidades e também porque ainda não havia televisão e a rádio era menos diligente do que hoje na divulgação das notícias. Em traços largos era esta a ocupação do Chico Brôa.
O que fazia depois disto, que lhe ocupava uma boa parte do dia, nunca eu soube muito bem. Bebia os seus copos mas sem exagero. A convivência com a mãe era pacífica, já que ele próprio indubitavelmente o era também. Creio que era Legionário pois o uso do cinto preto, de couro com fivela amarela, assim o indiciava.
Uma coisa ele era de certeza – Irmão da Misericórdia. Aí era onde residia todo o meu fascínio por ele. Na Sexta Feira Santa, havia a procissão do Senhor dos Passos e à frente, em primeiríssimo lugar, surgia o Chico Brôa de um lado e o Zé Sarrafo do outro. Levava cada um duas matracas que compassadamente faziam rugir com uma cadência lenta,, fazendo-as soar com um som lúgubre e arrepiante. Vestiam ambos o hábito da irmandade, preto e roxo que atavam no pescoço com uma tira de cetim preto. As tábuas, que cada qual transportava, eram grossas e tinham, encastoadas, ferragens que, como batentes, faziam esse ruído que me fazia pele de galinha. 
Durante anos, foram estes dois personagens os principais elementos da Procissão da Sexta Feira Santa. Para mim, é claro. Não me interessavam os anjinhos, os soldados romanos, o judeu dos pregos ou mesmo o Bispo debaixo do Pálio exibindo o Santíssimo, nem todas as Autoridades, ditas forças vivas da cidade, hirtas e solenes. O Senhor Morgado vai de sege rica, todo repimpado. Ai que bem lhe fica o chapéu armado e a comenda ao peito! (Adriano Correia de Oliveira). Nem sequer a cruz vazia, segura por laços brancos, que os Seminaristas transportavam me retiravam os olhos do alerta constante dos dois da frente. Com as matracas lugubremente soando ameaçadoras, eram o clímax de um ano inteiro. O Chico Brôa e o Zé Sarrafo fechavam o arco do ano do fascínio e do temor que, na minha cabeça, o Chico Brôa representava. Um homem calado qual ermitão que, por razões desconhecidas, imprimia na minha imaginação o medo de que, num dia daquela procissão, ele seria capaz de ordenar aos elementos que repetissem a absência do sol que recriasse a escuridão que seguiu a trovoada de raios e coriscos que, às três da tarde daquela era do Senhor, fez expirar o Salvador para o reerguer três dias após, como rezam as Escrituras.
O meu quase temor por ele foi-se esbatendo e quis, mais que uma vez, estabelecer conversa com ele. Em vão. Respondia sempre por monossílabos. Repito que não era homem de mau feitio mas creio que lhe pesava o fardo que era para ele o dialogar com alguém. Nunca tive medo dele, pois a sua figura era serena, apenas o seu ar triste e o facto de ser o homem das matracas, que repetiam sempre o ratatatata do meu temor de menino, me afastavam dele. Nunca consegui um sorriso daqueles lábios fechados.
Em 1969, eu e minhas irmãs saímos da Caleja e perdi o contacto. Ele ficou, pois morava do lado poupado ao camartelo. Quando regressei da tropa, já havia falecido, não sei se antes se depois de sua mãe. Quando comecei a escrever esta crónica prometi a mim mesmo indagar sobre ele. Talvez o Abílio Reis me saiba dizer algo. Para mim, ele é mais um dos nossos, um da Caleja, a quem devo o meu respeito e de quem não sei sequer onde fica a sua sepultura! Prometo inteirar-me. Afinal a memória trouxe-me o Chico Brôa de volta.





Paris, 02/05/2018
A. O. dos Santos
(Bombadas)

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