Foi num dos primeiros anos da segunda metade da década de setenta e, apesar das más estradas nacionais, todos os anos, na época natalícia, voltava à casa paterna.
A candeia a petróleo já tinha sido posta na pilheira, de adorno, a palha tinha deixado o piso das ruas, e embora a minha alma continuasse a aspirar o calor e o aconchego da casa paterna e o crepitar do lume na lareira me embebedasse a memória da meninice, as panelas (potes de ferro e de três pés) ao lume eram as mesmas e os bancos mochos quase paravam o tempo.
Depois de um dia de viagem e vencidas as curvas das montanhas do Alvão e da Padrela o que vinha mesmo a calhar era a ceia em família.
A minha mãe costumava dizer que se comia o que a casa dava. E a casa dava para as noites de Inverno um grande esqueiro de lenha para aquecer tudo e todos, o pão do forno, as batatas, com as couves tronchudas e o azeite cheiroso até à medula dos ossos. Esquecia-me do fumeiro, das alheiras enchidas no amuado da grande caldeira de cobre e bronzeadas na labareda da lareira.
Há sempre dias diferentes, que nos esquecemos do mundo, que paramos o relógio do tempo e vivemos o Céu neste mundo. Um dia desses vivi-o nessa ceia memorável em que me esqueci do tempo e do mundo e continuei a comer as batatas brancas (arrambanas ou arranconses), farinhentas a cheirarem aos odores da lareira e do lume, acompanhadas com as couves-tronchas de Mirandela e regadas com a generosa azeiteira, saída das mãos do Carlos Latoeiro com um bico de mais de meio centímetro de abertura. Depois, para completar uma refeição digna do Olimpo e dos deuses, as alheiras. E que alheiras?!... A minha mãe sempre teve berço farto e as alheiras ao cortar as tripas, tinham que ter palmo e meio a dois palmos. Mais pequenas pareciam uns reizinhos para os raparigos e davam uma sensação de pobreza ou pelo menos de cinto muito apertado, dos que estudavam em Coimbra para Delgado. As alheiras assadas na lareira, na grelha e a respingarem com as brasas assanhadas pelo Vulcano.
Certo é que, nessa ceia, a minha mulher se começou a sentir incomodada. Deixou a lareira e vem à mesa dizer-me: - pára de comer! A tua mãe ainda vai pensar que eu não te dou de comer!
A minha mãe apercebe-se e remata: - deixe comer o rapaz, que lhe está a saber bem!
E lá vai mais uma batata, mais uma colher de couves e um bocado de alheira, para acabar o copo de tinto.
A seguir deixo o banco corrido e a mesa e instalo-me no escano à lareira com a família. Não havia lugar no céu ou na terra que me pudesse dar mais felicidade, depois de uma ceia abençoada, as carícias dos olhares maternos, o aconchego da lareira e o reviver de memórias e tradições, com: - diziam os antigos. E as histórias e os contos e outros saberes culturais desfiavam-se pelo brilhante rosário da memória do «mou» Pai.
Jorge Lage
in:diario.netbila.net
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quarta-feira, 10 de setembro de 2014
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