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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

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COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

segunda-feira, 11 de maio de 2020

No dia de São Mateus, deixa os pássaros que não são teus (ditado popular)

Por: António Orlando dos Santos (Bombadas)
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")


Talvez não pareça oportuno falar, ou melhor, escrever sobre idas aos pássaros, neste tempo de Primavera em que, por força da Pandemia, se recolheram a casa milhares de pessoas e seus carros das ruas e estradas de Bragança, ser possível vê-los e ouvi-los com facilidade, no seu movimento constante, atarefados em acasalar e fazerem os ninhos. Será também tempo de cotejamento em que os vários rituais de acasalamento entre eles, se faz sobretudo com o trinar que espontaneamente lhes sai em notas deliciosas de harmonia.
Aprendi a gostar desta encenação que se serve das árvores e arbustos, roseiras e silveiras, riachos e linhas de água, ao sol ou à sombra por todos os lugares que se oferecem no esplendor da Primavera que incita à renovação das espécies.
Devo confessar que esta visão quase romântica que há largos anos me acompanha, não nasceu comigo, fui- a interiorizando lentamente a partir dos meus quinze, dezasseis anos em plena adolescência, tendo sido as leituras da obra de Máximo Gorky o motivo primeiro da minha mudança de sentimento.
Quando eu era pequeno, os pássaros, na cultura da garotada daquele tempo eram mais vistos como elementos de complemento alimentar e de diversão dominical, ou até de elemento decorativo, pois era voz corrente que ter pássaro na gaiola era sinónimo de sensibilidade de quem o possuía. Daí não faltarem, canários e pintassilgos e outras aves canoras aprisionadas nas gaiolas que feitas à mão por cada um, ou compradas no estabelecimento do Sacho ou no Delfim Conde eram mais ou menos decorativas, sendo até vulgar usar-se a expressão "Gaiola Dourada "para definir a presumível vantagem de se estar cativo em gaiola de ouro que não na de arame.
De Itália vinha uma canção de Toto Cotugno, Italiano Vero, que numa linha apontava como caraterística daquela gente ter "Un canarino sopra la finestra".
Deixo aqui expresso que se mudam os tempos e as vontades pois a minha, algumas vezes mudou quando descobri que a atitude não era de facto a mais honesta mesmo parecendo do meu direito sê-lo. Regresso ao tema que me trouxe aqui para vos falar de uma actividade muito enraizada na gente, muito particularmente nos jovens que era a de "ir" aos pássaros. Consistia no seguinte: Juntavam-se três ou quatro rapazes e combinava-se uma saída de casa de madrugada, cedíssimo e munidos de um cacifo com um cango de uva dentro, onde previamente se haviam metido umas dezenas abonadas de Formigas de Asa. Só estas serviam, normalmente apanhadas após a chuva de trovoada que no Verão era frequente e que com a ajuda de um sacho se desenterravam dos formigueiros que após a chuva tendia a virem à superfície. Havia rapazes altamente especializados nestas coisas que se encarregavam desta tarefa e a executavam com destreza. Uns por inclinação própria outros por instrução do grupo social que os preparava atempadamente, conseguiam apanhar formiga para eles e para venderem aos que não tinham tempo ou arte para fazerem o raide sem erros.
Num Bairro ou Rua como aquela em que nasci poucos seriam os que num canto da Adega ou em qualquer sítio escondido não tivessem umas dúzias de pescoceiras de arame, prontas a servirem para a caçada que se adivinhava sempre frutuosa. Assim pelas três, quatro da manhã, conforme fosse longe ou perto o local escolhido munidos de merenda não muito pesada, pescoceiras, cacifo das formigas e um sacho ou dois partíamos para o local escolhido.
No meu tempo de rapaz íamos sempre a pé e um dos locais mais vezes demandado eram os Lameiros de Vale de Conde à ilharga das hortas da Coxa e Quinta de S. Lourenço, vulgo do Cacete ou senão para os lados da Aveleda, sítios onde fui algumas vezes mas que por serem afastados da Cidade não sei o nome.
Lembro-me do meu irmão Rui ir algumas vezes para os lados de Lagomar com o Rui Vara e para os locais mais diversos sempre em grupo que era o principal fator de motivação que tinha como base a pertença. 
Não é muito importante descrever os locais pois eles obedeciam todos a um critério na sua escolha o serem lameiros frescos e terem muitas árvores a rodeá-los.
Chegados ao local e no maior silêncio armavam-se as pescoceiras onde se colocava uma formiga que espetávamos no pino que prendia o arame curvo que duas molas acionavam logo que o pássaro pousasse para comer a formiga. Era este que jogava a nosso favor enganando-os, pois em vez de ser o alimento que buscavam era antes o engano que os matava.
Tenho ainda bem presente na minha memória o fascínio que se apoderava de mim quando a penumbra ainda mal abria a sua porta para dar passagem à luz baça do lusco fusco e as aves já despertas voavam como setas diretas ao pequeno círculo que havíamos feito na terra e onde colocávamos a armadilhas com as formigas ainda vivas que moviam as asas e atraíam as presas. Quando dávamos a primeira volta para recolher a primeira caçada a luz do dia nascente espraiava o brilho ainda levemente acinzentado que na segunda seria de um dourado glorioso como só em Trás-os -Montes o céu azul deixa que se veja e sinta o Sol que é a fonte de toda a criação. A Aurora que se manifesta esplendorosa é nos dias de Verão o espetáculo mais empolgante que eu alguma vez senti com os olhos abertos e de consciência plena.
À segunda volta o número de aves apanhadas no logro era já na fasquias do cento ou algumas mais. O homem destruía assim e baseado num conceito egoísta um número considerável de seres que tinham tanto direito à vida como ele próprio. Mas este raciocínio é hoje um lugar comum não condizente com o daquele tempo, em que por razões outras a passarada era apenas o alvo do ainda primário instinto predador que restava das eras em que o homem ainda não era outro ser que não um bruto.
Considerações como as feitas hoje por mim aqui e agora não terão concordância da parte de alguns e que eu respeito porque antes de tudo eu pensava igual e ainda hoje não é coisa que me cause peso na consciência. Era a ideia corrente que estava intrinsecamente ligada à escassez de alimentos mais exóticos que naquele tempo só estes "mimos" compensavam. A alegria da caçada começava a manifestar-se quando se iniciava o fazer do "Carriolo" que consistia em prender as patas do primeiro no bico do segundo e assim consecutivamente até ao último. Era um troféu que como estandarte desfraldávamos com o orgulho que só os garotos sentem quando os rituais de crescimento se ultrapassam e nos fazem sentir homens como os nossos progenitores.
Não sabemos nesse tempo que cada dia que passa é menos um dia que o Sol depois de passar a barreira da noite e se fazer Alvorada, não brilhará para nós.
Chegados de novo a casa entregávamos a passarada às mulheres que os depenavam cuidadosamente e depois de devidamente lavados e condimentados eram fritos ou cozinhados com arroz. Comidos em conjunto com os companheiros de aventuras eram um mimo que ainda hoje o meu instinto animal consegue trazer à tona, tal era o prazer de saborear o alimento que elevado a mito se tornava em substância sublime capaz de nos elevar à condição de heróis na ingenuidade de pensarmos que aquela era a razão primeira que nos faria homens.
Tomávamos em mãos exemplares lindíssimos que eu não sou capaz de nomear. De plumagem colorida e perfil elegante alguns e menos vistosos mas feitos obra superior outros, o efeito pictórico, quando os separávamos por espécie foi uma das manifestações do "Belo" que me foi permitido sentir e retenho em mim como elemento maior da minha sanidade mental. Está aqui descrito um pedaço da minha vivência que mostra a complexidade dos efeitos que a Natureza exerceu no meu caráter e na minha maneira de sentir a vida.
Chegados a Setembro e ao São Mateus o velho aforismo popular tornava-se imperativo e os pássaros retiravam-se para prepararem o tempo de Inverno, que para eles era mais uma etapa dura na luta pela sobrevivência.





Bragança, 08/05/2020
A. O. dos Santos
(Bombadas)

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