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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

quinta-feira, 8 de julho de 2021

Guerra Junqueiro: “João e os seus camaradas”

 Era uma vez uma viúva com um filho único. Ao cabo de um inverno rigoroso, possuía apenas um galo, e meio alqueire de farinha. João resolveu-se a correr mundo, à busca de fortuna. A mãe coseu o resto da farinha, matou o galo, e disse-lhe:

O que é que preferes: metade desta merenda com a minha bênção, ou toda com a minha maldição?

Que pergunta! respondeu o pequeno. Nem por quantos tesouros há no mundo eu quereria a tua maldição.

Bem, meu filho, replicou a mãe carinhosamente. Leva tudo, e Deus te abençoe.

E partiu. Foi andando, andando, até que encontrou um jumento, que tinha caído num atoleiro, de onde não podia sair.

Oh! João, exclamou o burro, tira-me daqui, que estou quase a afogar-me.

Espera, respondeu João.

E, formando uma ponte com pedras e ramos de árvores, conseguiu tirar o quadrúpede do atoleiro.

Obrigado, disse-lhe ele, aproximando-se de João. Se te posso ser útil, aqui me tens ao teu dispor. Aonde vais tu?

- Vou por esse mundo fora, a ver se ganho a minha vida.

Queres tu que eu te acompanhe?

Anda Daí.

E puseram-se a caminho.

Ao passarem por uma aldeia, viram um cão perseguido pelos rapazes da escola, que lhe tinham atado ao rabo uma chocolateira velha. O pobre animal correu para João que o acariciou, e o jumento pôs-se a ornear de tal maneira, que os rapazes com o medo deitaram todos a fugir.

Obrigado, disse o rafeiro a João. Se para alguma cousa te for prestável, aqui me tens às tuas ordens. Aonde vais tu?

Vou por esse mundo de Cristo, a ver se ganho a minha vida.

Queres que te acompanhe?

Anda Daí.

Quando saíram da aldeia pararam junto de uma fonte. O pequeno tirou a merenda do alforje, e repartiu-a com o cão. O burro pastou alguma erva que por ali havia. Enquanto jantavam, apareceu um gato esfaimado a miar lastimosamente.

Coitado, exclamou João! E deu-lhe uma asa do frango.

- Obrigado disse o gato. Oxalá que um dia eu te possa ser util. Aonde vais tu?

- Procurar trabalho. Se queres, anda connosco.

- De boa vontade.

Os quatro viajantes puseram-se a caminho. Ao cair da tarde, ouviram um grito dilacerante, e viram uma raposa correndo a toda a brida com um galo na boca.

“Agarra! agarra!” bradou o pequeno ao cão.

E no mesmo instante o cão atirou-se atrás da raposa, que, vendo-se em perigo, largou o galo para correr melhor. O galo saltando de contente disse a João:

- Obrigado. Salvaste-me a vida. Nunca me esquecerei. Aonde vais tu?

- Arranjar trabalho. Queres vir connosco?

- De boa vontade.

- Então anda. Se te cansares, empoleira-te no jumento.

Os viajantes continuaram a jornada com o seu novo companheiro. Sentiram-se todos fatigados e não avistavam à roda nem uma quinta, nem uma cabana.

- Paciência, disse João, outra vez seremos mais felizes. Resignemo-nos hoje a dormir ao ar livre; além disso a noite está sossegada, e a relva é macia.

Dito isto estendeu-se no chão; o jumento deitou-se ao lado dele, o cão e o gato aninharam-se entre as pernas do burro complacente, e o galo empoleirou-se numa árvore.

Dormiam todos um sono profundíssimo, quando de repente o galo começou a cantar.

- Que demônio! disse o jumento acordando todo zangado. Porque é que estás a gritar?

- Porque já é dia, respondeu o galo. Não vês ao longe a luz da madrugada, que vem rompendo?

- Vejo uma luz, disse João, mas não é do sol, é de uma lanterna. Provavelmente há ali alguma casa, onde nos poderíamos recolher o resto da noite.

Foi aceita a proposta. Partiu a caravana; foi andando, andando, através dos campos, até que parou junto da casa do guarda de um grande castelo, de onde subiam gargalhadas, gritos confusos, cantos grosseiros e blasfêmias horríveis.

- Escutem, disse João; vamos devagarinho, muito devagarinho, a ver quem é que está lá dentro.

Eram seis ladrões armados de pistolas e de punhais, que se banqueteavam alegremente, sentados a uma mesa principesca.

- Que bom assalto acabamos de dar, disse um deles, ao castelo do conde, graças ao auxilio do seu porteiro. Que bom homem que é este porteiro. à sua saúde!

- À saúde do nosso amigo! repetiram em coro todos os ladrões.

E de um trago despejaram os copos.

João voltou-se para os companheiros, e disse-lhes em voz baixa:

- Uni-vos uns aos outros o melhor que puderdes, e, assim que vos der sinal, rompei todos ao mesmo tempo numa gritaria diabólica.

O burro, levantando-se nas patas traseiras, lançou as mãos ao peitoril de uma janela, o cão trepou-lhe à cabeça, o gato à cabeça do cão e o galo à cabeça do gato. João deu o sinal, e estourou à uma o ornear do jumento, os latidos do cão, o miar do gato e os gritos estridentes do galo.

- Agora, bradou João, fingindo que comandava um destacamento, carregar armas! Dai-me cabo dos ladrões; fogo!

No mesmo instante o jumento quebrou a janela com as patas, zurrando cada vez mais; os ladrões atemorizados refugiaram-se no bosque, saindo precipitadamente por uma porta falsa.

João e os seus companheiros penetraram na sala abandonada, comeram um excelente jantar, e deitaram-se em seguida- João numa cama, o burro na cavalariça, o cão numa esteira ao pé da porta, o gato junto do fogão e o galo num poleiro.

Ao princípio os ladrões ficaram muito contentes, por se verem sãos e salvos na floresta. Mas depois, começaram a refletir.

- Era bem melhor a minha cama, do que esta erva tão húmida, disse um deles.

- Tenho pena do frango que eu começava a saborear, disse um outro.

- E que rico vinho aquele! acrescentou o terceiro.

- E o que é mais lamentável, exclamou um quarto, é ficar-nos lá todo o dinheiro, que, com a ajuda do criado do conde, tínhamos tirado das gavetas.

- Vou ver se torno lá a entrar? disse o capitão.

- Bravo! exclamaram os ladrões.

E pôs-se a caminho.

Já não havia luz na casa; o capitão entrou às apalpadelas, e dirigiu-se para o fogão; o gato saltou-lhe à cara e esfarrapou-lh'a com as garras. Soltou um grito doloroso, correu para a porta, mas infelizmente pisou o rabo do cão, que lhe deu uma grande dentada. Gritou de novo, e conseguiu por fim transpor o limiar da porta. Mas quando ia a sair, o galo atirou-se a ele, rasgando-o com o bico e com as unhas.

- Anda o diabo nesta casa! exclamou o capitão, como poderei eu sair!

Julgou encontrar refúgio na estrebaria; mas o burro atirou-lhe uma parelha de coices, que o deitou quase morto ao meio do chão.

Passado algum tempo veio a si; apalpou o corpo, viu que não tinha nem pernas nem braços partidos, ergueu-se e tornou para a floresta.

- Então? então?-perguntaram-lhe os camaradas assim que o viram.

- Nada feito, exclamou ele. Mas antes de tudo arranjem-me uma cama para me deitar e cataplasmas de linhaça para pôr neste corpo, que o trago num feixe. Não podeis imaginar o que sofri. Na cozinha fui assaltado por uma velha que estava a cardar lã, e arrumou-me na cara com o cedeiro, deixando-me neste miserável estado. Quando ia a sair a porta, um demônio de um remendão atravessou-me as pernas com a sovela. Logo depois Satanás em pessoa atirou-se a mim, despedaçando-me com as garras. Na estrebaria deram-me uma paulada que me ia matando. Se vocês me não acreditam, vão lá, e experimentem.

- Acreditamos, disseram os companheiros, vendo-lhe a cara e o corpo todo ensanguentado: Não seremos nós que lá tornaremos.

Pela manhã, João e os seus camaradas almoçaram ainda excelentemente, e partiram em seguida para restituir ao conde o dinheiro que os ladrões lhe tinham roubado. Meteram-no cuidadosamente dentro de dois sacos, com que carregou o jumento. Foram andando, andando, até que chegaram à porta do castelo. Diante dessa porta estava o malvado do porteiro, com uma libré esplendida, meias de seda, calções escarlates e cabelo empoado.

Olhou com ar de desprezo para a pequenina caravana, e disse a João.

- Que vindes aqui buscar? Não há lugar para os recolher, vão-se embora?

- Não queremos nada de ti, respondeu João. O dono do castelo far-nos-á um bom acolhimento.

- Fora daqui vagabundos, exclamou o porteiro enfurecido. Ponham-se a andar imediatamente, quando não atiro-lhes já às pernas os meus cães de fila.

- Perdão, só um instante, replicou o galo empoleirado na cabeça do jumento; não me poderias dizer quem é que abriu aos ladrões na noite passada a porta do castelo?

O porteiro corou. O conde que estava à janela, disse-lhe:

- Ó Bernabé, responde ao que esse galo te acaba de perguntar.

- Senhor, replicou Bernabé, este galo é um miserável. Não fui eu que abri a porta aos seis ladrões.

- Como é então, meu velhaco, tornou o conde, que tu sabes que eram seis?

Seja como for, disse João, aqui lhe trazemos o dinheiro roubado, pedindo-lhe unicamente que nos dê de jantar e nos recolha esta noite, porque vimos cansados do caminho.

- Ficai certos que sereis bem tratados.

O burro, o cão e o galo, levaram-nos para a quinta. O gato ficou na cozinha. E enquanto a João, o conde reconhecido, vestiu-o dos pés à cabeça com um vestuário magnífico, deu-lhe um relógio de ouro, e disse-lhe:

- Queres ficar comigo? És esperto e honrado, serás o meu intendente.

João aceitou a proposta, e mandou vir a sua velha mãe para o pé de si. Casou depois com uma linda rapariga, e viveu sempre felicíssimo.

Fonte:
Guerra Junqueiro: "Contos para a Infância", Publicado originalmente em 1877.

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