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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

terça-feira, 21 de junho de 2022

VERÃO DE 1984 / 1

 Já fartos de passar tantos anos uns dias de Agosto à beira-mar, rodeados de toneladas de corpos seminus e sem medo ao melanoma, que parecem ter como único fito na vida escurecer a pele que Deus lhes deu clara, e por vezes tendo de caminhar sobre a areia com cautelas infinitas para não pisar o pé deste ou o rabo daquele ou a toalha de aqueloutro, e tendo ainda por cima a cada esquina uma esplanada, discoteca ou outro lugar cheio de inamistosos decibéis, já fartos de tudo isso, dizia, decidimos em conselho de família que as férias deste ano seriam passadas na aldeia.
A aldeia, para que conste, chama-se Grijó. Para os menos versados nestas coisas da etimologia, os senhores filólogos explicam que o topónimo procede, depois de percorridas uma série de etapas intermédias, do latim ‘ecclesiola’, igrejinha. Deve ser pois alusão a alguma ermida ou capela que por ali houvesse em tempos muito recuados. 
 Fica esta povoação uma légua a sul de Macedo de Cavaleiros, no ponto em que a Serra de Bornes começa preguiçosamente a altear-se, consentindo ainda terras de semeadura, vinhas, hortas e olivais, mas impondo já aqui e ali o mato e os castanheiros, choupos e carvalhos robles que lá pelos cimos dominam ainda, não obstante as plantações intrusas de pinho e pseudotsuga.
Grijó é, em 1984, uma aldeia de dimensão razoável para os padrões da região. O núcleo antigo, em redor da igreja, é muito modesto, se bem que típico em algumas das suas casas feitas de xisto trigueiro, com suas escaleiras exteriores e suas varandas com coberturas amparadas a banzos de madeira. Casas brasonadas, que existem em muitas destas aldeias — basta ver, aqui à volta, Cortiços, Vale Benfeito, Castelãos — em Grijó não há; o mais parecido com isso é um casarão de proporções nobres, com capela privada. O povo chama-lhe a Casa Miranda. 
Já na igreja paroquial valerá a pena passar meia horita desenfadada. Construída em 1680 por Martinho Afonso, foi-lhe adossada a actual sacristia, porventura em substituição de uma anterior, em 1754, obra de José Sobral. Tudo isso — datas e nomes — se lê gravado em pedra, para que o mundo saiba quem foram José Sobral e Martinho Afonso e o que fizeram em Grijó. A capela-mor mostra a infalível talha dourada que o séc. XVIII espalhou por toda a parte. Mostra também — com ressalva de ser eu pouco menos que leigo na matéria — uns retábulos pintados que me parecem de fábrica razoável.
 De figuras ilustres nadas em Grijó não rezam monografias. Mas esta crónica vai rezar, se bem que 'en passant': foi aqui que nasceu o Professor Adriano Moreira, uma das mais lúcidas inteligências do Portugal político e cultural contemporâneo. Nasceu aqui e tem [tinha, em 1984] casa praticamente paredes meias com a nossa. Algumas vezes, infelizmente escassas, tive o gosto de trocar breves palavras com ele, encontrando-nos os dois ocasionalmente em Grijó. 
Nos últimos quinze, vinte anos, a aldeia rompeu vigorosamente os limites primevos e entrou de estender-se para sul, em direcção a Vale Benfeito, e para norte, em direcção a Macedo. Dinheiro da emigração, claro. Raramente o emigrante recupera a velha casa paterna. Prefere construir de raiz, e assim vai ampliando o termo do lugar. Mas essas casas, algumas delas exemplares acabados da 'maison' que tanto desdém inspira aos puristas da arquitectura indígena só são habitadas em período de férias, quando os seus proprietários confluem, vindos de franças e araganças, para a terrinha natal. O que significa que Grijó, fora de Agosto, é uma terra de casas fechadas e quase morta — condição que se vem agravando mais a cada ano que passa. Levada a gente nova na rede varredoura da emigração, qualquer dia a aldeia não terá senão gerontes, e, embarcados esses na temida barca inescapável, acabará por não ter ninguém.   
 Mas longe vá o agouro. A verdade é que neste mês de Agosto, os emigrantes em férias animam extraordinariamente o povoado. Movimentam-se nos seus carros com assentos forrados a pele, que metem calor à gente só de olhar para eles, alindados com grandes autocolantes que representam águias e outros bichos agressivos, e exibindo a infalível menção ‘Turbo’, como se, hoje em dia, fosse desprestigiante ou ridículo ter um automóvel de cilindros convencionais. Nas ruas, vestidas à moda de lá, as madamas afectam grande desenvoltura e modos cosmopolitas 'pour épater' os que ficaram. Mas, se o petiz malcriado se lhes solta da mão e faz das suas, gritam-lhe encolerizadas: ‘Tiago, viens ici, senão re****-te os cornos!’
Pois, apesar deste bulício sazonal, o lugar convém-me não menos do que convinha a Raul Brandão o farol das Berlengas. Também eu sou um contemplativo e sei ler no silêncio telúrico destes ares — mesmo se a algraviada luso-francesa estrondeia ao rés da rua. Tenho aqui alguns bens que dinheiro algum compraria: uma paz antiga, quase bíblica, de que tudo — gente, casas, natureza — se deixa entranhar até ao mais profundo de si; uma sabedoria não menos antiga de gente que muito viveu e é agora capaz, no declinar da vida, de dar forma de provérbio a quanta situação se lhe desenrole diante dos olhos; um ar lavado de monóxido de carbono e outros gases deletérios; e, enfim, em pano de fundo, o vulto tutelar da ‘minha’ Serra de Bornes.
Com tal rol de benesses, adivinho já a inveja com que algum leitor terá lido esta crónica até aqui. Mas convém ver a situação de todos os ângulos e reconhecer honestamente que de Grijó a Síbaris e a Cápua vai a sua distância. E que tenho aqui outras coisas que, quando mais se fazem notar, quase me levam a esquecer as vantagens de passar férias na aldeia. 
 Tenho, por exemplo, a escassos quinze metros da minha mesinha de cabeceira, o relógio da torre da igreja, que faz questão de martelar pausadamente as horas por essa noite fora. E, para que não fiquem dúvidas a ninguém, quinze segundos depois da última badalada repete tudo tintim por tintim. Imagine-se o que será a meia-noite batida por esta avantesma, numa noite de espertina.
Tenho uma moscaria de mil demónios, que inça da bosta e estrume que coalha alguns quelhos, e que entra afoita casa dentro, mal encontra por onde. Faço nas moscas grandes mortandades diárias, mas, como a fénix, elas parecem renascer das cinzas e cada dia novo enxame, mais numeroso e vingativo, vem zungar sobre a nossa cabeça e sobre o nosso prato.
Tenho por fim umas torneiras caprichosas que às vezes não dão pinga de água. Diz-me o presidente da Junta que, se as pessoas não regassem hortas e quintais, a água não faltaria nos canos. Mas quê! As pessoas prezam mais o cebolinho do que a higiene e quem, como eu, preza mais a higiene do que o cebolinho, lava-se quando pode — e viva o velho!
Fora isso, Grijó é o paraíso.

(Continua.)

A M Pires Cabral

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