“Visado pela Comissão de Censura” – lembro-me bem de ver esta frase escarrapachada na primeira página dos jornais portugueses, em tempos da ditadura. Não é novidade para ninguém que um dos dispositivos mais eficazes e por isso mais usados pelos regimes totalitários é a vigilância severa, muitas vezes feroz, sobre o que se escreve e, pior ainda, sobre o que se pensa. Toda a heterodoxia é para esses regimes uma ameaça e, como tal, castigada.
Isto repugna hoje aos nossos espíritos afeitos à Democracia, que, com todos os seus defeitos e perversões, ainda é o menos mau dos sistemas políticos. Mas a verdade é que, durante séculos, Portugal viveu ininterruptamente, com pequenas intermitências de liberdade de expressão do pensamento, coarctado pela censura. Umas épocas pior do que outras, naturalmente. E também aconteceu que algumas vezes a ausência de censura foi usada da pior forma, confundindo-se liberdade com licença.
A censura oficial recaía sobre o pensamento político-social e religioso. Havia instâncias para exercer uma e outra, e esse exercício não era, com muita frequência, propriamente aquilo que se pudesse dizer uma brincadeira de crianças. O fogo aí está, que não me deixa mentir. Muitos desgraçados pagaram com a combustão das suas carnes a rebeldia do seu pensamento. Outros pagaram com o exílio, a tortura, toda a sorte de perseguições. Caso para dizer, com António Variações: “Quando a cabeça não tem juízo, o corpo é que paga...”
Um destes dias, pegando ao desenfado numa primeira edição das Rimas, de João Xavier de Matos, sofrível poeta setecentista, que comprei, barbaramente mutilada, num alfarrabista, dei com esta “Protestação” a fechar o livro: “As palavras Numen, Fado, Destino, Divindade, &c. empregadas sómente para melhor exprimir a ficção poética, não tem alguma cousa de commum com os internos sentimentos do Author, que como obediente filho da Igreja em tudo se submette ás determinações della.”
Ai não, que é mosca. João Xavier de Matos sabia das branduras que o Santo Ofício costumava usar para com os escritores. Não tinha o pobre António José da Silva, por alcunha “O Judeu”, sido degolado e queimado em auto-de-fé, quarenta anos antes? Nada, João Xavier de Matos tinha muito apego à vida, não estava para se ver em apertos com a Inquisição. Sabedor de que esta era tão rigorosa, tão malévola ou tão estúpida que podia tomar literalmente aquilo que era para ser tomado metaforicamente, ou seja, a tal “ficção poética”, toca, pelo sim pelo não, a estampar ali aquela “Protestação” que hoje nos agride como um símbolo vergonhoso da opressão praticada sobre os espíritos pelos detentores da verdade única. É que nem todos os censores (ou qualificadores, como também se lhes chamava) tinham a sensibilidade poética e a longanimidade de Frei Bartolomeu Ferreira, a quem coube rever Os Lusíadas e, felizmente, não achou necessário expurgar da obra as referências mitológicas que lhe dão sainete.
Mas, como fica dito, o odioso da censura não era exclusivo do Santo Ofício. Em princípios do séc. XVIII, era mister haver três licenças diferentes, às vezes quatro, para que um livro pudesse “correr”. A Mesa do Desembargo do Paço (que mais tarde, em 1768, o Marquês de Pombal transformou em Real Mesa Censória, aziago nome) catava a obra de um ponto de vista político, para saber se nela havia matéria que desequilibrasse a pirâmide social. Seguia-se o Ordinário, ou autoridade eclesiástica, e o já referido Santo Ofício, que catavam as proposições doutrinária ou eticamente duvidosas. Estas três censuras, note-se, eram prévias, mas o livro depois de impresso era ainda conferido, por maior segurança, não fosse o autor espertinho introduzir, na impressão, matéria perigosa que não houvesse submetido à censura prévia ou ignorar os cortes da tesoura censória. Todo o cuidado era pouco com gentinha da laia dos escritores.
Hoje, felizmente não temos censura. Temos uma lei de imprensa, isso sim, que procura regular civilizadamente estas coisas da expressão do pensamento. Mas quanto sofrimento, quanta expatriação, quanto trato de polé, quanta morte pelo fogo não foram precisos para chegarmos a este ponto!
Isto repugna hoje aos nossos espíritos afeitos à Democracia, que, com todos os seus defeitos e perversões, ainda é o menos mau dos sistemas políticos. Mas a verdade é que, durante séculos, Portugal viveu ininterruptamente, com pequenas intermitências de liberdade de expressão do pensamento, coarctado pela censura. Umas épocas pior do que outras, naturalmente. E também aconteceu que algumas vezes a ausência de censura foi usada da pior forma, confundindo-se liberdade com licença.
A censura oficial recaía sobre o pensamento político-social e religioso. Havia instâncias para exercer uma e outra, e esse exercício não era, com muita frequência, propriamente aquilo que se pudesse dizer uma brincadeira de crianças. O fogo aí está, que não me deixa mentir. Muitos desgraçados pagaram com a combustão das suas carnes a rebeldia do seu pensamento. Outros pagaram com o exílio, a tortura, toda a sorte de perseguições. Caso para dizer, com António Variações: “Quando a cabeça não tem juízo, o corpo é que paga...”
Um destes dias, pegando ao desenfado numa primeira edição das Rimas, de João Xavier de Matos, sofrível poeta setecentista, que comprei, barbaramente mutilada, num alfarrabista, dei com esta “Protestação” a fechar o livro: “As palavras Numen, Fado, Destino, Divindade, &c. empregadas sómente para melhor exprimir a ficção poética, não tem alguma cousa de commum com os internos sentimentos do Author, que como obediente filho da Igreja em tudo se submette ás determinações della.”
Ai não, que é mosca. João Xavier de Matos sabia das branduras que o Santo Ofício costumava usar para com os escritores. Não tinha o pobre António José da Silva, por alcunha “O Judeu”, sido degolado e queimado em auto-de-fé, quarenta anos antes? Nada, João Xavier de Matos tinha muito apego à vida, não estava para se ver em apertos com a Inquisição. Sabedor de que esta era tão rigorosa, tão malévola ou tão estúpida que podia tomar literalmente aquilo que era para ser tomado metaforicamente, ou seja, a tal “ficção poética”, toca, pelo sim pelo não, a estampar ali aquela “Protestação” que hoje nos agride como um símbolo vergonhoso da opressão praticada sobre os espíritos pelos detentores da verdade única. É que nem todos os censores (ou qualificadores, como também se lhes chamava) tinham a sensibilidade poética e a longanimidade de Frei Bartolomeu Ferreira, a quem coube rever Os Lusíadas e, felizmente, não achou necessário expurgar da obra as referências mitológicas que lhe dão sainete.
Mas, como fica dito, o odioso da censura não era exclusivo do Santo Ofício. Em princípios do séc. XVIII, era mister haver três licenças diferentes, às vezes quatro, para que um livro pudesse “correr”. A Mesa do Desembargo do Paço (que mais tarde, em 1768, o Marquês de Pombal transformou em Real Mesa Censória, aziago nome) catava a obra de um ponto de vista político, para saber se nela havia matéria que desequilibrasse a pirâmide social. Seguia-se o Ordinário, ou autoridade eclesiástica, e o já referido Santo Ofício, que catavam as proposições doutrinária ou eticamente duvidosas. Estas três censuras, note-se, eram prévias, mas o livro depois de impresso era ainda conferido, por maior segurança, não fosse o autor espertinho introduzir, na impressão, matéria perigosa que não houvesse submetido à censura prévia ou ignorar os cortes da tesoura censória. Todo o cuidado era pouco com gentinha da laia dos escritores.
Hoje, felizmente não temos censura. Temos uma lei de imprensa, isso sim, que procura regular civilizadamente estas coisas da expressão do pensamento. Mas quanto sofrimento, quanta expatriação, quanto trato de polé, quanta morte pelo fogo não foram precisos para chegarmos a este ponto!
Sem comentários:
Enviar um comentário