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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

segunda-feira, 8 de agosto de 2022

NA PAZ DO ARROTCHO

 Por: Luís Abel Carvalho
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)

Já os homens tinham dado a “reção” às crias, estrumado a cama dos animais e as mulheres lavado as mascarras das malgas do caldo da ceia, deitado a vianda aos porcos e “cerrado o buraco às pitas “, quando Albino entrou na aldeia pelo lado Sudoeste. Talvez tivesse chegado pela Quinta da Laranjeira - vindo dos lados do Vale da Vilariça – e subido depois as Fontelas e os Boqueiros até à Albandeira. Se conhecesse a região teria, certamente, optado pela Capa Longa, Sobralhal, Malhadinha, Vale das Bouças e Moreirinha, entrando pelo “ Pinhal do Ribelho “, caminho menos sinuoso e menos íngreme.
               Depois de passar o Ribeiro da Lajes e para fugir aos cães do gado do “ Ti Trebões “ que ladravam ao longe e enchiam de terror a noite com o seu ladrar assustador caminhou, amedrontado, pela esquerda, por um carreiro estreito, indo a dar à Fonte da Ferrada.
              Aproveitou para descansar um pouco e admirar aquela fonte centenária, do século XVIII, em arco de volta perfeita, de cantaria, com o tecto pejado de “aranhões pentelhudos”, que os miúdos se entretinham a derrubar com chapadas de água. Conseguiu, com alguma dificuldade, ler gravado na pedra a data de “1727”. Bebeu uns bons goles com as mãos em concha daquela água férrea, vinda – subterraneamente - das minas de ferro da serra do Reboredo (passando por baixo do cemitério?), com sabor a hematite. Tinha a particularidade de ser fresca no Verão e quente no Inverno e de abrir o apetite, segundo diziam! Era a água preferida das gentes da aldeia, que a guardavam em “P´tchorras “ de barro, compradas em Moncorvo na feira dos oito ou dos vinte e três e feitas pelo “Ti Rebouta”do Felgar, que a conservavam e a tornavam ainda mais fresca. No entanto, tinha o inconveniente de, após três a quatro dias, começar a deitar cheiro - como as visitas de carneiro.
                     Trazia ao ombro, pendurada no cabo da foice, uma saca de serapilheira. Saltou para o terreno do Ti Gaspar, tirou uma pedra da parede e escondeu uma sacola azul de veludo e voltou a colocar a pedra exactamente no mesmo sítio. A foice pendurou-a num ramo da figueira preta que dava uns figos grandes, soberbos e que eram a tentação das crianças e o cabo dos trabalhos do Ti Gaspar para conseguir colher alguns. Quando estavam “´screbidinhos”, eram mesmo irresistíveis, até para os adultos.
                     Quando entrou na aldeia, ao cimo da Costa da Ferrada, viu numa varanda pintada de verde uma mulher tão esquecida, tão abandonada e tão absorta no vazio, que lhe sorriu quase maquinalmente ao cumprimento, com o sorriso mais encantador e mais triste que alguma vez vira. 
              Albino ficou enfeitiçado e desassossegado e sentiu imensa ternura por aquele abandono. Olhou duas ou três vezes para trás, vendo-a sempre a olhar e a sorrir, mas não na sua direcção. Antes de virar a esquina para a rua do Outão, olhou novamente e lá estava ela apenas em corpo, porque o espírito, só Deus sabe com que mares revoltos se estaria a debater. Alguns metros depois de contornar a esquina, encontrou o Zé Castro a cambalear, já bêbado.
              - Boas noites. O amigo faça o obséquio – disse com educação, pois Albino era um homem educado e culto. – Há aqui alguma taberna onde se possa petiscar?
              - P´ra tirar uns mordos? Inté há duas à falta duma! – Respondeu arrastando a voz e fazendo esforço para se manter em equilíbrio. – Há a do Tchico Augueira e a do ti Genho. Mas olhe q ´ambos os dois o baptizam, mas atcho qu´o do ti Genho é milhor – esclareceu levantando a pala do boné. (Zé Castro andava de relações cortadas com o “Thcico Augueira”).
              - Estou-lhe muito agradecido e que Deus lhe dê boas noites – agradeceu levantando um pouco a aba do chapéu de feltro.
              - Boas noutes tamãe p´ra Boss` Incelência.   
               Tinham andado apenas alguns passos quando o Zé Castro se voltou e o chamou:
                    - O meu amigo bai-m´adesculpar o atrebimento, mas nuncó bi por cá! Pertence a alguém aqui da terra?
              - Só estou de passagem.
              - Ah…!! Olhe…só de caso tiber percisão d´algum abrigo p´ra passar a noute, é só bater à porta duma casa c´o a baranda berde, qué a minha.- Disse indicando a direcção da casa.
              - Mais uma vez lhe agradeço. Boas noites.
               - No tem qu´inganar. É só precurar p´ro Zé Castro, qué a minha p´ssoa.
              - Já agora, então, se não for muito incómodo, dizia-me com mais detalhes para que bandas fica a tal taberna do Senhor Eugénio?
              - Ora atão, num tem nada qu´errar. É munto fácele! O camarada bai por aqui adiente e q´ando encontrar uma encruzilhada – no é esta já ´qui, é a oitra – troce à sua dereita e ó despois bai ber logo uma capela, qué a capela da Nossa Sinhora de Fátima. Ou será da Nossa Sinhora D´Assinção? Olhe… já m´olbidei – disse encolhendo os ombros.- À desbanda dereita é a do Tchico Augueira e um cibo mais arriba, passando rente ó tchafarize é a do ti `Genho. O meu amigo logo lá bê luze e gódia.
              Mais uma vez Albino fez uma pequena vénia e seguiu caminho. Zé Castro fazia de tudo para se manter em equilíbrio.
              “Já bais c´mó aço, seu cousa d´abó às costas. Agora só de caso o home se birasse p´ra trás, fazias uma bela figura de titliteiro” – resmungou.
              Zé Castro tratava muito mal a mulher. Batia-lhe quase diariamente por três motivos, ou talvez por nenhum: por que se embebedava todos os dias, por que ela não lhe dava filhos e por ciúmes. 
              Natália tinha cerca de trinta e cinco anos e o Zé andava pelos quarenta e sete. Era, sem dúvida, a mulher mais bonita da aldeia, quer de rosto, quer de corpo. Era ruiva, de cabelos fartos, amarrados na nuca, tipo regueifa, com sardas na face. As ancas robustas e definidas bailavam--lhe ao andar, deixando adivinhar o corpo livre, de carnes rijas mas macias e de curvas voluptuosas por debaixo da saia rodada pelo joelho. Tinha uns peitos generosos, insinuando-se firmes, palpitantes como os figos lampos, prontos a serem colhidos. Os olhos eram grandes, brincalhões, penetrantes, intensos e serenos, da cor do mel, protegidos por pestanas fartas e compridas em curva, da cor do cabelo. 
              Era uma beleza rara, estonteante, daquelas belezas à qual ninguém fica indiferente: todos os homens se apaixonam e até as mulheres não ficam indiferentes, sentindo até, uma pontinha de inveja e de ciúmes. Era uma beleza que fazia aumentar o brilho e o tamanho da íris de qualquer homem. Deus deve ter criado aquela beleza para abanar a monotonia e a pasmaceira dos dias. Naquele dia, Deus deve ter -se arrependido tanto das obras medíocres que tinha feito até então que decidiu, como forma de pedir desculpas à humanidade e testar a “carnalidade” do Homem, realizar a sua obra-prima: fez Natália, para regalo de todos. Alguém disse que Deus acertou à primeira na perfeição ao criar os gatos. Eu digo que Natália estava muito acima de qualquer gato(a). Desde os dedos dos pés até à ponta dos seus cabelos ruivos, não havia sapateiro algum que lhe pudesse indicar o menor defeito. Isto em termos físicos, porque em termos sentimentais, era das criaturas que mais sofria da insatisfação dos sentidos. Natália pertencia ao reduzido número das criaturas que estão acima da banaliadde da maioria.
               Diziam até que paralisava as cobras e os lagartos com a força do olhar. Apesar de telúrico era, no entanto, um olhar protector, envolvente e sossegado. Era um olhar ternurento que nos abraçava carinhosamente. A boca era perfeita, de lábios carnudos, avermelhados – como se tivesse acabado de comer malápias. Quando sorria – apesar da vida que levava, sorria sempre, embora um sorriso triste – mostrava uns dentes alvos como a neve do Reboredo no Inverno, alinhados e direitos como os dentes de uma serra de madeira. O sorriso era meigo e triste. Nas orelhas usava uns brincos grandes, de ouro, que já vinham da avó do Zé Castro. O seu sorriso era simples e limpo, como o sol num dia de Inverno: tudo aquecia e acariciava. Era uma pedra preciosa numa escombreira, uma luz no meio da escuridão. Tudo nela era perfeito, excepto a vida que levava. Chamavam-lhe a “Amelha Rabita”, por ser esperta e desembaraçada.
               Casou com o Zé por amor, embora se dissesse à boca pequena que fora por interesse. Zé Castro era filho único e herdara uma farta casa de lavoura. O desgosto de ter perdido a Mãe aos dezasseis anos e o Pai aos dezoito, empurrou-o para o refúgio do álcool. A casa tinha aquilo que um bom lavrador precisa: um bom nabal, dois lameiros, uma boa vinha, além de olivais e amendoais e uma forte junta de bois. Tinha uma casa de dois pisos com alpendre, cabanal, curral, cortelha e loja, independentes da habitação. (Diz o ditado:”casa com curral, paraíso terreal”). 
                    Subia-se por uns degraus de cantaria, transversais à rua, acompanhados por um corrimão de ferro trabalhado e pintado de verde. Em baixo tinha um pequeno portão também verde e ao cimo das escadas, na continuação do balcão, uma varanda comprida e protegida com grades de ferro verde, com uma porta de madeira ao fundo, que dava acesso interior ao quinteiro. No balcão, do lado esquerdo, havia a porta da cozinha com o respectivo postigo e o buraco para o gato. Do lado de dentro, ao cimo, uma ferradura pendurada num prego, por causa das bruxas. A cobertura da varanda era a continuação do telhado onde, no Verão, na parte superior do beiral, não faltavam as “cabaças” a amadurecer ao sol e um par de amêndoas pegadas, ou um ramo de oliveira benzido pela Páscoa, para espantar os “trebões”, em dias de trovoada. Por baixo das escadas, ficava o poleiro das pitas. Os baixos eram divididos em adega e outra divisão onde havia várias talhas de barro para o azeite, para o queijo, para as azeitonas, para os salpicões e as “tchouriças” e a indispensável salgadeira, para curar as pás, os presuntos e o toucinho. – Elementos energéticos indispensáveis para o confronto das tarefas físicas. Era também onde se guardavam as batatas, os feijões e a tulha de cereal. Na adega, o vinho repousava em grandes pipas de madeira e a um canto, o lagar do vinho, junto à janela, por onde se despejavam as dornas. Encostado a outro canto, esperava o alambique, para destilar o cango das uvas e dar vida santificada à aguardente pura e forte, que Zé Castro apreciava com figos secos e grão de amêndoa dentro. Garantia ele que era o melhor manjar que Deus podia oferecer. (E quem já provou – como eu - só pode estar de acordo).
              Na parede lateral direita da adega, havia uma porta que dava para o curral que por sua vez dava acesso à loja dos bois e dos machos. A porta do curral era uma porta larga para poderem entrar os bois e os machos com as albardas. Tinha uma manjedoura comprida, a toda a largura de parede, protegida com uns troncos grossos de zimbro. As camas estavam sempre limpas e mudadas, para evitar as “tchocas” que se agarram aos quartos quando se deitam. Era um aroma denso, quente e adocicado, levemente perfumado pelo cheiro do feno.
               No curral, resguardadas da chuva, estavam as alfaias: o arado, duas charruas – uma para as ladeiras e outra para terras mais fundas -, o carro de bois, os jugos de madeira para os machos e os de ferro para os bois, duas relhas “Tramagal” número cinco sobressalentes, os engaços, as forquilhas de ferro e de madeira, as foices, as seitouras, a pedoa e o podão, a gadanha com a respectiva aguçadoura guardada num corno de “tchibo”, as enxadas, os diversos sachos, a tesoura da poda, o serrote da poda, com a sua leve e característica curvatura, o traçador - a serra para duas pessoas -, dois pulverizadores ainda com resíduos de sulfato, a marreta e os guilhos de diferentes tamanhos e grossuras para rachar as cavacas, a turquês, o “desandador”, a sacaria e os “toldes”para a amêndoa e para a azeitona. Enfim: uma parafernália de utensílios para a condição de lavrador. 
                       Porém, havia outros não menos importantes, feitos de outra matéria: o sonho, a força férrea e a rijeza na crença de que no ano seguinte a colheita seria melhor. Mas se não fosse, também não ficavam deprimidos e não precisavam de psicólogo; bastavam umas caralhadas para o ar e para os animais, ou até para a mulher e os filhos, para voltarem conformados ao mesmo caminho, pisado, repisado e sonhado pelos seus antepassados. De lado havia um outro carro com o cabeçalho ao alto, apoiado nos “cornitchos” com o eixo fora do meão, à espera talvez, do Ti André, para o reparar e o assentar nas cambas da roda. Tinha apenas metidos os estadulhos de um dos lados da mesa. Pendurados em pregos, pendiam os cornais, as meleias, as belfas e os jugos. Ao alto, varas de diferentes tamanhos para a vareja, não faltando a “meia-vara”, o terror dos varejadores, principalmente os de maior basófia, os gabarristas. Contíguo ao curral, por onde se entrava por uns grandes portões de ferro para dar passagem ao carro de bois carregado de palha, de feno ou de giestas, tinha o palheiro, onde guardava o feno, a palha, a moinha e as grandes cavacas de amendoeira, de oliveira e de zimbro, essencialmente. Debaixo das escadas que davam acesso directo da casa para as traseiras – usadas principalmente nos temporais de Inverno -, tinha duas coelheiras (uma delas para criação). Era Natália quem alimentava os coelhos com cardos que apanhava no campo, com ferrã e com milhã, que crescia na horta. 
Além disso, possuía ainda vários amendoais, olivais e duas boas vinhas e vários “tchãos” para batatas e o “renovo”. 
             A seguir ao palheiro tinha uma cortinha com algumas oliveiras, amendoeiras e várias figueiras, destacando-se um bebreira pelas suas “abebras”, apreciadas por toda a gente da aldeia pela sua doçura. Toda a cortinha era rodeada por uma bela latada, onde não faltava a famosa “códega do Larinho” e a horta, totalmente tratada e cuidada pela Natália, que dava tudo o que uma casa precisa, com fartura. Ao contrário da grande maioria da aldeia, viviam desafogados. 
              Natália era das famílias mais pobres da aldeia e teve que abandonar a escola quando andava na segunda classe para trabalhar e ajudar os pais. Era considerada a melhor apanhadeira da aldeia. Apanhava a amêndoa e a azeitona com as duas mãos, que mais parecia uma galinha a comer do chão as “porretas” das cebolas cortadas em pedaços. Por isso lhe chamavam a “Natalha Rabita”. Tivera o azar de não gerar filhos – ela, porque nestes casos a culpa era sempre da fêmea. A fertilidade do macho era inquestionável e estava social e historicamente salvaguardada. Ninguém se opunha abertamente aos maus - tratos. Obedeciam religiosamente ao adágio:” Entre homem e mulher, não metas tu a colher.”Natália tinha uma irmã no Brasil, que sabia desses maus - tratos, mas recusava-se a mandá-la ir para não ser acusada de desfazer um lar e por que a mãe também se opunha. Só o pai enfrentava Zé Castro, mas nada podia contra ele e contra todos, com os seus setenta e três anos, cheio de reumático. Os homens, egoístas e corporativistas, espreitavam, como lobos, à espreita de alguma oportunidade, mas desesperavam, por que Natália era mais fiel do que outras, sem esse calvário.
              Nas horas em que Zá Castro lhe batia, Natália suplicava-lhe para parar. Ansiava desesperadamente por uma clemência divina, mas constatava que fora abandonada até por Deus. Um dia em que lhe dava um enxerto de porrada, com violência extrema, implorou-lhe:  
              - No me batas mais, por amor de Deus e pel´alminha dos teus Pais. Eu só te faço bem, no te faço mal ninhum. Andas limpo e asseado, no andas roto e tens sempre o cumer pronto quando tchegas do trabalho e a casa ´stá sempre arrumada e limpa…
              - O quê?!! Ora bô, bô !J´ágora …! Era só o qu´abondaba, no me teres a cumida no prato. Atão tchego moidinho do trabalho e inda m´atiras co´isso à cara?! Sua matchorra, que nem um filho és capaz de me dar. No és mulher nem és nada, sua maninha.
                Sentiu-se tão ofendida e tão humilhada na mais profunda condição de mulher, que teve coragem de o afrontar:
              - Tu bem sabes qu´eu gostaba munto de ter filhos e mais a mais, inda ninguém sabe de quem é a culpa; sé minha ou sé tua.
              - Aixe!!! O què?!! Tu no me digas uma cousa dessas que te mato, sua puta – disse colérico, parecendo que ia ter um ataque do coração. – Tirou o cinto, dobrou-o e deu-lhe tantas cinturadas por onde a apanhava, que a deixou com o corpo todo marcado.
              Então uma simples mulher poderia lá pôr em causa a inquestionável e intocável masculinidade e a fertilidade do macho homem?! Ora, ora! Isso é que nem pensar e nem sequer era permitido nem por Deus e nem pelos Homens; era Deus no Céu e a virilidade do Homem na Terra. Se não fosse física e socialmente castigada, o que seria da autoridade do macho e da paz social? O que os outros homens iriam pensar? Era uma vergonha inadmissível! E o povo? Seria uma desonra para o Zé Castro. (Quase sempre o “ arrotcho “ era a única razão para um casamento feliz e duradouro!).
              Se tudo era feito em nome da paz e da justiça social e divina, porquê tanta dor e tanto sofrimento dos inocentes, Santo Deus? Penso que o objectivo primordial de um ser humano em vir ao mundo, será o de proteger o outro ser humano das “agressões “ naturais da Natureza, incondicionalmente. Mas infelizmente, constata-se que a Natureza é muito mais suave e amiga para o Homem do que o próprio Homem.
              Natália calou-se e escondeu as marcas como das outras vezes, embora a raiva, o ódio e o desespero crescessem dentro dela como a lava num vulcão. Um dia teria que rebentar: ou pela chaminé principal ou por alguma secundária, explosiva ou efusiva e iria - tal como o vulcão – ter efeitos catastróficos e benéficos. Eram gritos de silêncio, abafados e escondidos pelo medo. Vivia um silencioso terror, mas com fé e esperança na Santa Luzia que um dia teria que acontecer um milagre que pusesse fim ao sofrimento e a libertar-se da tortura. Viria o dia em que a sua dignidade de mulher seria mais valiosa do que os inconvenientes sociais e religiosos e venceria as “bocas do mundo “.
              Muitas vezes a tia Adília, sua vizinha, lhe dizia:
                - Ó Natalha, larg´ó! Há mais hómeis no mundo e milhores. Isso no é bida, criatura!
              - A ti´Adilha é testemunha do inferno qu´ é a minha bida.
              - Pois sei, sei, mas quem ´stá no combento é que sabe o que lá bai dentro. 
              - Mas eu gosto dele, juro por esta alma que hei-de entregar a Deus e inda tanho a ´sperança q´um dia caia nele e mude – respondia-lhe a chorar.
              - Bem m´ou finto! Num muda nada, rapariga. Homes assim no mudam nunca. Só quando morre o bitcho é que morre a peçonha. Inda um dia t´áde matar, que to juro eu à fé de quem sou! É um salbaje, o demónio em forma d´home.
              - Oh…é que se me daria cá um abalo! Era a justiça dibina: a mim, acababa-se-m´o sofrimento e ele pagaba por tudo o que me tem feito. – Respondeu com desdém. 
              - Só menos le desses um raparigo! Aí já mou finto qu´ele mudasse.
             - Só Deus e Nossa Senhora sabem de quem é a culpa, ti´Adilha.
              - Lá isso tamãe é berdade. Mas inda és noba e bonita c´mo no há! Tu és o sol da nossa terra! Q´alquera benairo te fica bem. S´ eu fosse a ti, catrapiscabe-l´algum e ´scapaba-me p´ra bem longe. O meu lombo é que nunca mais serbiria p´rás manápulas dele. Nem p´rás dele, nem p´rás de mais ninguém, que to juro eu à fé de quem sou. Nunca mais m´habia de pôr a bista em cima – dizia-lhe a única pessoa que sofria com o sofrimento dela, tal como o Pai.
              - Deixe-me cá, ti´Adilha, deixe-me cá. Que Deus me perdõi, mas às bezes é o que tanho ganas de fazer – disse-lhe em voz baixa, com medo que alguém ouvisse. – Oh! Quem me dera sair desta pasmaceira e ir para uma cidade grande.
              - P´ra quê?! Num tiludas, rapariga. Pois é nas cidades que´stão os piores bandidos. Eles fugem das bilas e das aldeias prás cidades. Lá podias lubar uma bida milhor, por i, s´encontrasses um home bô que t´istimasse. Mas isso tamãe o podes arranjar em calquera canto. No precisa de ser na cidade. Sabes qual é a única diferença entre esta pasmaceira e a cidade grande? A miséria é a mesma, o ritimo e´qué oitro. É uma dor d´alma, ber aquela gente pobre a ganhar mal e biber em casas bem piores qu´as nossas, num traque-traque, c´até cansa só de ber. E a cumida que comem? Nem eles sabem ó certo o qué que comem! Inté a auga sabe …olha, nem sei a quê. Tem juízo, rapariga. O biber bem ´stáqui. Que l´intressa terem cinema, treatro e concertos de música si os no bão ber? No t´inludas, rapariga. Tem-te na raiz. Mas a belfurinheira da tua Mãe é que te podia acudir, mas essa, desde que lebe daqui cântaros e taleigadas, é o que l´abonda. A essa é que l´eu debia dezer umas qu´eu cá sei, mas quem diz as berdades, perde as amizades – disse resignada encolhendo os ombros.
              - Oh! A ´nha mãe é uma indromineira; o qu´ela quer é biber em paz com Deus e co diabo. É uma intresseirona. Tanho pena é do pobre do meu Pai, coitado, qu´inda sofre mais do qu´eu.
               - Eu bem no sei. Mas deixa-me cá, que quem mal fala, suja boca suja. E eu no sou mulher de lubar e trazer.
               - A ti ´Adilha st´aqui que no me desminte. No tem nada que m´apontar, nem assim um catchinho, c´mó cisco negro duma unha. Ele sabe que casei co ele c´mo Deus me botou ó mundo. Inté m´obrigou a ´stander os lançóis na baranda, tcheios de sangue.
          - Atão eu no nos bi?! Todá gente os biu! Desse pecado ´stás tu libre de t´acusar, nem ele nem ninguém.
              Pecado era uma mulher tão jovem, tão bonita, tão atraente e dedicada, levar uma vida de tanto sofrimento e de tanta humilhação. E era igualmente pecado tanto o povo, como a Igreja fecharem os olhos e assobiarem para o lado e nada fazerem. Porque a sociedade só será digna desse nome quando proteger os que dela fazem parte e denunciar actos cobardes e vergonhosos daqueles que querem impôr-se à força bruta, espezinhando os mais fracos.
              Era um tempo e uma sociedade em que as mulheres só serviam para serem montadas, emprenharem, parirem, ficarem cheias de filhos, educarem-nos para mandarem nas mulheres e as filhas para obedecerem aos homens. Direitos! Caluda. (Lá prevalece de novo o “ arrotcho “). Na maior parte das situações, não ganha quem tem razão, mas sim quem consegue impôr a sua razão. E são sempre os mais fortes.
                  Albino calçava umas botas já gastas de sola e vestia umas calças azuis de bombazina e um casaco preto de sarja, por cima duma camisola de lã verde, já coçada, feita à mão. A camisa era de flanela, aos quadrados castanhos e cinzentos, já com o colarinho desfiado. Era um homem alto, forte, de mãos grossas e pulsos ossudos, que denotavam força. Trazia, no entanto, a barba bem-feita e o cabelo cortado curto, preto e as suíças bem aparadas. A pele, embora queimada pelo sol, era lisa e macia, sem rugas e sem ser seca, como a dos demais. Os olhos eram afáveis, amendoados, pretos, com pestanas grandes e espessas, que pareciam tudo olhar distraídos.
              Aparentava cerca de quarenta anos, mas havia nele traços e expressões que faziam parecer não ter mais de trinta. Andava devagar, com passo indeciso e com os ombros um pouco descaídos, evidenciando talvez, desânimo e pouco interesse pela vida.
              A única coisa que sabemos dele é que veio de comboio de Barca de Alva até ao Pocinho, vindo de Zamora. O destino era o Porto, mas desconfiado de que vinham dois indivíduos a segui-lo, no Pocinho comprou bilhete até Duas Igrejas e entrou no comboio da linha do Sabor. Comprava sempre o bilhete até à última estação (e isso era segredo dele). O troço entre Pocinho e Moncorvo era de declive fortemente acentuado, pelo que o comboio ia devagar, devagarinho, demorando quarenta minutos para andar doze quilómetros! À espantosa média de dezoito quilómetros por hora! Daí a famosa canção dos pauliteiros:

“O comboio vai a subir a serra
Parece que vai, mas não vai parar.
Sempre assobiar, vai de serra em serra,
Sempre eu quero ver se ele vai chegar”.

              Quando ia na encosta virada para o Sabor, deixando o Douro para trás, avistando já o Vale da Vilariça, com a Foz e as Cabanas de Baixo à espreita, Albino voltou a ver os dois indivíduos e saltou repentinamente do comboio em andamento e escondeu-se atrás de uns carrascos. Não teve espírito nem tempo para se assustar com a grandiosidade da montanha do outro lado do Sabor e apreciar a beleza da Lousa, alcandorada lá no cimo da serra. Albino, que era um homem sensível, com todos os sentidos em alerta máximo (há Homens assim), não teve tempo de se emocionar com a beleza virgem e inóspita daquela paisagem paradisíaca. Outros valores se levantaram – salvar a própria pele daqueles que vendem a alma ao diabo por uma migalha material. Não sentiu a luminosidade do sol a encostar-se ao cabeço da Lousa e a paz e a quietude campestre que essa luz suave e única transmite.
               Ao chegar ao chafariz, viu uma casa com luz no rés-do-chão e supôs ser a taberna do “Tchico Augueira”. 
              Mais adiante, pôde distinguir vozes e luz na do Senhor Eugénio.
              Parou à entrada da porta e cumprimentou:
              - Deus nos dê boas noites a todos. Posso entrar? - Perguntou olhando para o taberneiro.
              - A casa é sua – respondeu o Senhor Eugénio, homem educado mas temido pelo seu mau génio. – Vamos entrando - convidou.
            
              O senhor Eugénio era um homem de estatura mediana, de barriga saliente, o que se pode chamar de “barrigudo”. No entanto, era um homem respeitado e vertical nos seus valores humanos. Era um homem em quem se podia confiar. Era duro, mas recto.
              Àquela hora havia na taberna apenas o Zé da Quinta, o Serafim d´Amalha, a quem chamavam o “Serafim Facalhão”, o Marcolino, mais conhecido pelo “Boinas”, o Miguel da Bila, conhecido pelo “raposo”, o Belarmino, a quem chamavam o “Tcherila”, o “Lérias”, o ti Bernardo, mais conhecido pelo “Tchitcha Guizada”, com quem quase ninguém queria ter amizade, por ser reles e traiçoeiro e o Zé “sarralheiro”, que andava sempre sujo de carvão da forja.
              - Atão o qu´é co meu amigo bai qu´rer? – Perguntou o Sr. Eugénio, limpando o balcão de madeira com um pano ainda mais sujo do que o balcão.
              - Eu queria comer qualquer coisa, se houver. Pode ser pão com um pedaço de presunto, ou chouriço…
              - Tanho aqui um salpicão qu´é de comer e tchorar por mais. – Tirou o salpicão – ainda a mais de meio – e pô-lo no balcão, juntamente com “métade” de um pão centeio e uma malga de azeitonas. E tem aqui uma faca. Comá sua bontade.
              - Muito obrigado.
              - Ah! Alambreim´agora!Quer tamãe um caldinho de tchítcharos?
              - Se os houver, bem gosto deles.
              - Ó ´Ster! – Chamou ao alçapão.- Abonda cá uma malga do caldo dos tchítcharos. E p´ra buber?- perguntou.
              - Pode ser um quartilho de vinho, misturado com um copo de aguardente, se faz favor.
              Todos estavam atentos àquela figura desconhecida e imponente e estremeceram, parecendo que um raio demoníaco tinha entrado na taberna, por acharem estranha aquela mistura. O “Tchitcha-Guizada” não se conteve.
              - O meu amigo bai m´adesculpar, mas atão bomecê bebe binho co´ aguardente?! Ora bô, bô! – Disse num risinho sarcástico.
- Atão isso é p´ra ´stragar o binho ou a augardente?
              - O qu´é que tu tens lá a ber co isso? Cada um é c´mo cada qual – atalhou o Sr. Eugénio, já prevendo alguma zaragata.
              - Mas ó ti Genho…eu tamãe nunca bi tal mixórdia – apoiou o Tcherila, encolhendo os ombros.
              - Isso…Acirró inda mais.Tu tamãe…sendes da mesma laia!
              - Pois…`Stá bisto. Só de caso fosse um de nós cá da terra, já era motibo de troça. Agora… se for um penalbilhas q´alquera de fora, já tudo é inceite.
                - És mesmo rim c´má fome, seu belfurinheiro, seu cunenas de merda. O qu´é que bós tendens a ber co a bida dos oitros? – Perguntou já irritado. – Calende lá mas é a morca e mordende a língua antes de falarens.
              - Mas atão no é? Onde já se biu misturar binho co augardente? – Insistia o Tchitcha-Guizada, voltando-se para os outros, procurando apoio.
              Só o “Raposo” lhe deu um sorriso matreiro e escondido.
              - Pouco restrolho, qu´o pão ´stá baixo. Lebas-me já umas arrotchadas qu´inté bais cagar de leque e mijar d´ingureta. – Ameaçou-o o taberneiro, pegando num pau de lodão.
                   - Não se zanguem por minha causa – disse Albino calmamente. - Será melhor, então, só o quartilho de vinho.
              - Bô era! Ess´ágora! O senhor bebe aquilo que bem l´aptecer – sentenciou.
              - Quem saberá quem é o bitcho? Se calhar algum bardino fugido à Guarda - insistia provocador.
              - Caralhitchos...´Stebas ós ´Stebais. Põe-te já no olho da rua. Bamos, andor, seu criqueiro da trampa. Besta que no faz ´strume, fora da ´strabaria – ripostou o senhor Eugénio colérico, com o pau no ar, saindo detrás do balcão.
              - ´Stá ma´sportiçar, ti Genho?!
              - Bá, deixem lá isso – contemporizou o Serafim “Facalhão”, segurando o Senhor Eugénio. – Deixó home buber o que l´aptece. O ti Genho tem rezão – disse virando-se para o Tchitcha-Guizada.
                       Sorrateiramente e sem ninguém dar por isso, o Tchitcha-Guizada tirou do bolso das calças uma navalha já aberta e ia espetar o Albino, mas este, quase por milagre, apercebeu-se e quando já ia com o braço no ar para o anavalhar, Albino segurou-lhe no braço pelo pulso, torceu-lho atrás das costas, tombou-o ao chão e obrigou-o a abrir a mão e a largar a navalha. Fez isso de modo tão simples, tão perfeito, tão rápido e sem nenhum esforço, que todos ficaram de boca aberta, a olhar uns para os outros.
              - Sou um homem de paz. Não quero matar ninguém, mas também não quero que ninguém me mate – disse Albino com a maior calma do mundo, levantando-o por um braço e entregando-lhe a navalha. – Peço desculpa a todos, especialmente ao Senhor Eugénio pelo sucedido. E agora, se me permitem, pago uma rodada a todos e também aqui para o nosso amigo. E estendeu-lhe a mão.
              - Bá, dá lá uma mãozada ó home – disse o Carolino, vendo que o ti Bernardo se recusava.
                  - No preciso que ninguém me pague nada. Tamãe tanho dinheiro – disse cabisbaixo.
              - O que tu precisabas era duma boas ´stadulhadas no lombo, seu berloso, seu merdilheiro – disse-lhe o Senhor Eugénio ainda com o pau na mão.
              - Bá, bamos lá deitar isso p´ra trás das costas e buber um copito à saúde aqui do nosso amigo…. – Como é a sua graça?
              - Albino.
              - …Do nosso amigo Albino, e tu tamãe bais buber, ó Bernardo. Caratchos…! Bá, bamos lá – disse o “Raposo” , pondo-lhe o braço à volta do pescoço e puxando-o para junto do balcão, aproveitando todas as oportunidades para beber um copo à conta do “barba longa”.
              - `Stá bem – condescendeu envergonhado de olhos no chão.
              - Já passou tudo- disse Albino estendendo-lhe a mão. 
 O homem distingue-se no bem, porque no mal somos todos iguais.
              O Zé da Quinta e o Boinas assistiram à cena impávidos, sentados no banco corrido, ao longo da parede oposta ao balcão.
              A luz era fraca. Apenas um lampião a “pitrolho” em cima de uma pipa, por detrás do balcão, dava alguma claridade moribunda e projectava danças de sombras ampliadas e melancólicas nas paredes. Na parede do lado esquerdo, fazendo esquina com o balcão, havia outro banco comprido, de madeira de freixo.
              Principalmente aos Domingos, depois da missa, a taberna enchia-se de homens que discutiam o tempo, as sementeiras, a saúde dos animais, as pragas nas colheitas e faziam previsões para a amêndoa e para a azeitona. Era raro o Domingo – lá mais para o fim da tarde – que não houvesse “acerto de contas” ou entre os pastores por causa do renovo e dos pastos, ou entre duas famílias que se odiavam já há duas ou três gerações. Era porrada à farta, com paus e pedras a varrer cabeças, com machados e foices, além da faca de matar o porco, havendo já mortos em ambas as partes. Tudo isso fazia naturalmente parte da vida rude e medieval em que se vivia. As condições miseráveis em que viviam, a luta pela sobrevivência e o estúpido sentimento de vingança e de lavar a honra com sangue – valores primordiais daquelas gentes – tinham como consequência inevitável o pior desfecho.
              Beberam e socializaram. Albino ia respondendo com monossílabos, não sendo de muitas falas, mas sempre de olho indiscreto no Tchitcha-Guizada. 
              O olhar era sereno, embora triste, transportando algum desgosto da alma e dor irreparáveis. Todos estavam rendidos à sua personalidade forte e simples e todos quiseram pagar também uma rodada.
              E não passou despercebido que mais uma vez o “Raposo” se esquivou e saiu “a berter augas” quando a vez dele estava próxima, entrando um bom pedaço de tempo depois.
                Perto das dez horas, Albino perguntou quanto devia.
              - Bah...! Pronto, dá-me cinco c´roas e ´stá tudo pago.
              - Então faça o favor de se pagar de três mil réis – disse Albino pondo uma moeda de cinco escudos no balcão.
              - Mas atão ´spere lá um cibo, que l´arranjo calquera cousa p´ra lubar.
              - Aceito, mas só se pagar – contrapôs.
               - Bô era! Paga-me ó despois c´uma pedrada q´ando cá boltar.
                O senhor Eugénio meteu-lhe numa taleiga uma chouriça, um azedo, duas morcelas, uma malga de azeitonas, um punhado de figos secos, uma cabaça de vinho e meio pão centeio. (O trigo ainda era só para os mais fidalgos).     
               Por mais que insistisse, o taberneiro não lhe quis dinheiro nenhum.
              - O que se dá no é bendido.
               Albino agradeceu uma centena de vezes e despediu-se de todos um a um e saiu em direcção à Ferrada.   
              - Par´cia bô home – disse o Boinas.
              - Bia-se logo que sim – concordou o Zé da Quinta. – Era um paz d´alma.
              - E os modos de falar?! Par´cia um diplomata! Era mesmo um diplomata! – Reforçou o Carolino.
              (Como na aldeia todos tinham uma alcunha, caso Albino vivesse lá, seria certamente conhecido pelo “Diplomata”).
              - Mas trazia calquera cousa co ele a mortificar-l´a alma. Os olhos dele eram de dor lá por dentro – observou o Tcherila.
              - Hum…Se fosse a bós no metia o dinheiro no saco, sem primeiro ber se tem buraco – disse o Miguel Carono, sempre desconfiado de tudo e calculista, daí a alcunha de o “Raposo”.
              - E no debe haber cá muntos que le ponham o dedo molhado – disse o “Sarralheiro”.
              - Muntos?! Inté é bem capaze de no haber cá ninhum – disse o Boinas. - Atão bós no bistens o qu`ele fizo?!
              - Hum… `stou a ber um qu´era capaz disso – disse enigmático o Tcherila.
              - Quem? O Miguel da Ponte? – Perguntou o Senhor Eugénio.
              - Tamãe, tamãe – concordou.
               Ora, bô, bô… Cantilenas. Esse é um corpo grande e alma piquena. Inda no há muntos meses, lubou umas berdoadas do “Lêndeas “ (o Moisés da Justina), ali pró sesmo, caté gania. Ó despois correu- o à lapada e binha cá c´uma bolina, quinté as brotchas das botas faziam tchispas nos seixos das pedras!
              - Bô, bô! Bem grande é o Marão e no dá pão! – Disse o Zé da Quinta – reforçando a dúvida.
              - Ma s´taba-m´alambrar do Ratcha-fragas.
              - Ah!!! Esse sim – concordaram todos.
                    - Aqui este melro é que ´scusaba bem de ter feito o que fizo – disse o Serafim Facalhão abanando a cabeça e dando-lhe umas palmadinhas nas costas.
              - Já ´stou arrepeso- disse o Tchitcha-Guizada, como que a pedir desculpa.
              - `Stás arrepeso, ´stás! Mais arrepeso ´starias se tibesses lubado dois muchetes bem dados nas fuças – disse o Tcherila prendendo um sorriso miudinho e cínico.     
              - Só se perdiam as que caíssem no tchão – apoiou o taberneiro.
              - Catantchos! Tamãe era bem boa! – Disse ofendido.
              - Dízio que xim. Lebába - zias e ficabas co elas, que já ninguém tas tiraba – disse o Raposo acenando com a cabeça, no seu ar matreiro.
              - Eram as punhadas mais bem empregadas que já bi na bida – disse o Senhor Eugénio com firmeza na voz.
              - Carbalho, ó ti Genho! Olhe qu´eu sou seu amigo, carbalho!
              - Tu, meu amigo?! Ora bô, bô. Tu nem teu amigo és! ´Stás sempre a resmungar contigo mesmo!
               - No foi nada bonito, no foi não s´nhora, mas agora já são augas passadas e o que lá bai, lá bai – contemporizou o Zé da Quinta, que era um rapaz de bom senso e respeitado pela sua sensatez.
              Deram as “boas noutes” ao Senhor Eugénio um a um com um “inté manhê” e quando saiu o último, apagou o lampião e subiu para se deitar.
              Outros dias viriam.
               Quando Albino passou pela casa do Zé Castro reparou que havia luz e lembrou-se da tristeza e da imensidão daquele olhar. Naquele momento isso era na sua memória uma razão forte e inabalável para viver. Há nas nossas vidas olhares e sorrisos que não esquecemos nunca e  que ficam para sempre a fazer parte positiva das nossas memórias.
              - Entre quem é – convidou uma voz doce de mulher, quando ouviu duas pancadas suaves na porta.
              - Desculpe, minha senhora. Esta é a casa do Senhor Zé Castro?
              - É sim s´nhora. Quem manda? – Perguntou o Zé do quarto.
              - Desculpe, Senhor Zé Castro. Sou o Albino, a pessoa que há pouco lhe perguntou por uma taberna.
              - Ah! Sim, sim. `Spere um catchinho, que já m´alebanto.
              Vestiu as calças que tinha ao fundo na barra da cama, meteu os pés nas botas e pôs o casaco por cima dos ombros. Convidou-o para entrar e sentaram-se no escano da cozinha. Zé Castro baixou a preguiça.
              - Ó Natalha! Bota cá de cumer aqui ó Senhor Albino. Traz p´ráqui um bocado de pão e tchitcha.
              Natália trouxe um púcaro cheio de vinho com dois copos de barro e partiu umas fatias de presunto e umas rodelas de salpicão com centeio e azeitonas. Quando podia, olhava para Albino de uma maneira sôfrega, querendo encerrar toda a sua vida naquele momento. Albino via agora, com nitidez, a infinita beleza e a doce tristeza daqueles olhos envolventes. Apetecia-lhe repousar todo o seu cansaço no regaço morno daqueles olhos maternais. O olhar era de ansiedade, mais parecendo o de um animal acossado perante o perigo iminente. Queria desabafar tudo o que continha no peito cheio de mágoas e soltar tudo o que sofria em silêncio. 
              Deixou-os a sós e foi para a sala. Albino deduziu que a varanda da sala era a que dava para a rua, onde a viu pela primeira vez.
               Beberam e comeram. Depressa o Zé ficou com sono.
                          - Ó Natalha! Bamos acomodar aqui o Senhor Albino na tarimba do cabanal.
              Quando Natália encontrou oportunidade, meteu-lhe um papel dobrado na mão. Zé Castro foi com Albino para o cabanal, que ficava nas traseiras, pela escada interiores da casa, sem saírem à rua. Natália levou-lhe dois “lancóis” de flanela, um cobertor de papa, uma manta de “ orelos” e um travesseiro. Zé Castro acendeu a candeia de azeite, que estava pendurada num prego, na trave.
              -Já bi que no fuma, pois não?
              - Felizmente não apanhei o vício.
               - Pois a mim, atcho co cigarro faze-me ainda mais pior do co árcol. Atão boas noutes. Só de caso tiber precisão d´alguma cousa, é só tchamar.
              Zé Castro já quase não abria os lhos de tanto sono. Natália deu as boas noites e saiu.
              Albino desdobrou o papel e começou a ler:
              “ Por alminha de quem lá tem, lebeme com cigo. Péssole por tudo o que à de mais çagrado que me tire deste inferno. Bou arrumar uma trouxinha pra lubar e fujo com cigo. Às três da manhê bou lá ter. Sou uma mulher travalhadeira e onrrada “.
                    Molhou o polegar e o indicador com saliva e com eles apagou a candeia. Sabia que se não devia soprar, para evitar a fuga de alguma chispa do morrão. Mil pensamentos e imagens trespassaram-lhe a mente como nuvens empurradas pelo vento em dias de trovoada. Ficou acordado a imaginar a sua vida dali para a frente. Estava satisfeito como uma criança que acaba de receber o seu brinquedo mais desejado e pensou:” A vida, quando não é levada demasiado a sério, é verdadeiramente fascinante e engraçada”.
                   Ao marido deixou-lhe em cima da preguiça um pedaço de papel escrito: “ No te quero mal mas nu me precures. Pra esta casa só birei dentro dum caichao. E aqui te deicho as arcadas da tua Mãe “.
                Na manhã seguinte não havia sinais nem da Natália, nem do Albino. 
                   Saíram cautelosamente pela cortinha e saltaram o muro ao fundo, para um caminho que ia dar à fonte da Ferrada, pelo Nascente.
                  Desceram até à Ferrada e Albino foi buscar a sacola que tinha escondido na parede do ti Gaspar.
              - Sabe c´mo é que se tchama esta fonte?
              - Não faço a mínima ideia!
              - É a fonte dos namorados. Intigamente binhamos p´ráqui a bailar- disse Natália emocionada.
              - Então a Natália também dançou aqui!
               - Muntas bezes, mormente ós Domingos, mas sempre co as nossas mães ali, d´olhos bem arreguitchados.
              A noite era feia e fria e a lua lançava uma luz parca e austera, mas Natália conhecia bem aqueles caminhos de olhos fechados, de tanto os percorrer à amêndoa, à azeitona, aos figos vindimos para a passeira ou às uvas e às laranjas, quer ao calor do vigoroso Verão, quer aos gelos do rigoroso Inverno.
              Desceram em direcção ao rio até aos “Ratchões”, a mata cavalos, nunca por caminhos usados por pessoas ou por animais. 
               Albino estava nas nuvens com a agilidade com que Natália subia e descia as pequenas fragas e se desenvencilhava das silvas e das giestas. Caminharam para nascente, ao longo da margem esquerda do Sabor. Passaram para o termo da Cardanha no “Vau”, onde o rio alargava e era menos fundo, já o dia amanhecia e, pelo tom róseo-alaranjado do céu, prometia um dia com sol. O Sabor separava os termos do Larinho e do Felgar, dos da Cardanha, da Póvoa e da Ferradosa, pertencendo esta já ao concelho de Alfândega da Fé. Natália conhecia de cor os socalcos daquelas ladeiras selvagens, de andar à amêndoa e à azeitona, desde os nove anos até casar. Depois de casada, o marido proibiu-a. Olhava aquelas encostas íngremes, inacessíveis, com os amendoais rodeados de giestas, de carrascos, de zimbros e de piorneiras com nostalgia. Na outra margem, no termo do Larinho e do Felgar, além dos amendoais viam-se também grandes e escuros olivais, de oliveiras centenárias e bicentenárias, imóveis e eternas, à espera das mãos carinhosas dos donos, que as aliviassem do ventre e do madeiro. Eram árvores com a idade do mundo. 
              Os olhos humedeceram-se-lhe e as lágrimas escorreram-lhe pela face e Natália já não as reprimiu nem as reprovou, sentindo-se renascer em cada passo que a afastava de casa.
              - Está arrependida? Se quiser, pode voltar - disse-lhe Albino reconfortando-a.
              - No é nada. Alambrei-me dos meus tempos de solteira, q´ando andaba à´mêndoa além naquele amendoal, qué do Senhor Manelito da Cardenha. O feitor era o ti Manel Pataco, o pai da Lurdes Pataca, que ´stá casada no Larinho co Luís Carbalho. Bô home, coitado. Contaba ele que no ano de 1917, quando habia a grande guerra, morream na barca, ó atrabessar o rio, onze pessoas do Felgar e de Moncorbo. Abanturaram-se co rio de mar a monte e coitados…, lá ficaram todos. Era Inberno e o rio lubaba munta correnteza. Esse home inda tchigou andar na primeira guerra. ´Stibo na França e contaba muntas cousas da guerra. Beja bomecê, q´uinté sabia falar o francês!
              - C´est vrai? - Disse Albino em tom de brincadeira.
              - Oh…eu nem o Português aprendi a `screber, quanto mais…            
                Natália parecia uma criança infeliz, perdida e desorientada, como se de repente se visse sozinha no mundo, sem ninguém que a defendesse. Albino teve ensejos de pegar nela ao colo, envolvê-la com toda a ternura e cobri-la com beijos de paz. 
                    Deram a volta por largo, evitando passar em Cilhades, onde morava o barqueiro, que a conhecia. Era ele quem passava as pessoas e os animais de uma margem para a outra, com a barca. Quando as pessoas do Larinho ou do Felgar queriam passar o rio e a barca estava no outro lado, em Cilhades, gritavam: ”Ó barqueiro! Bota cá a barca.” E lá vinha então o “Ti Rabeca”, muitas vezes já com um copito. O “cais de embarque” era um lodaçal, rodeado de vimes, olmos, enormes lodões, um pequeno canavial, choupos e salgueiros em arco para o rio, como que a venerá-lo. Era uma travessia que enchia de espanto os olhos das crianças e o coração de medo e lhes dava estatuto. Criança que tivesse “passado a barca”, enchia o peito de ar perante aqueles que ainda o não tinham feito. A barca era frágil, de madeira cheia de remendos, principalmente no chão, presa e guiada por arames, e como tinha só uma entrada/saída, tinha que girar cento e oitenta graus ao longo da largura do rio, para ficar com a saída virada para a margem. Os burros carregados de sacas, tinham que se manter imóveis, para que o peso fosse devidamente distribuído e a barca não virasse. As mulheres faziam a travessia a rezar a S. Lourenço e os homens, não o querendo admitir, olhavam para o rio também com o credo na boca.
              A meio da ladeira e olhando para o rio que corria indomável nas apertadas margens de granito e xisto, viam - se meia dúzia de pobres casebres escuros em volta de uma capela.
              - Aquele poboado ali em baixo é Cilhades e a capela é a capela de S. Lourenço, já munto antiga!
              - No dia de S. Lourenço, vai à vinha e enche o lenço – brincou Albino.
              - Tchiguei a ir lá à romaria que lá fazem em Agosto – continuou, não se apercebendo da interrupção. – É o protector das gentes que atrabessam o rio na barca. Inda hoje, durant´apanha da amêndoa, as pessoas dormem lá ó relento, em cima das sacas bazias, p´ra no perderem tempo co caminho. Só bão algumas, p´ra lubarem as cargas e trazerem a m´renda.
              - Então quer dizer que a Natália gostava de romarias!
              - Oh…Naquele tempo corriamo - sias a todas aqui à bolta do Larinho, mormente os rapazes e as raparigas solteiras, por bia dos bailaricos!
              - E hoje? Ainda gosta de dançar?
              - Oh... Óspois que me casei nunca mais bailei – disse com tristeza, a olhar o rio.
              Parou repentinamente e sorriu. Aquele sorriso que tanto enternecera Albino, devolveu-lhe ao rosto todo o seu esplendor. Depois disse com os olhos a brilhar. 
              - Sabia qu´há uma lenda que diz qu´além em Cilhades, há um bezerro d´oiro interrado?
              - Ai sim?! Então vamos lá nós desenterrá-lo – propôs Albino em tom de brincadeira
              - Oh! Diz a lenda que só será atchado de noute lendo um livro de S. Cipriano, à luz duma candeia d´azeite.
              - Que pena, não termos nem o livro nem a candeia.
              - Oh! Eu no me finto nessas cousas. Isso são tudo ´stórias imbantadas p´ros antigos.
              Foram subindo o monte em direcção à Cabreira e à Ferradosa. Passaram ao largo da Ferredosa e virara na direcção de Alfândega da Fé. Caminhavam praticamente durante a noite. Natália ficava escondida e Albino ia às povoações comprar comida. Sempre pelo mato, passaram ao largo de Mirandela e Valpaços. Só chegaram ao destino depois de dezassete longos dias.
              Três anos mais tarde já tinham dois filhos e viviam em Vila Verde da Raia, no concelho de Chaves, perto da fronteira com a Galiza, uma felicidade que deveria fazer corar de vergonha “ a munto bô Cristão”.

Fontes de Carvalho

Fontes de Carvalho
, pseudónimo de Luís Abel Carvalho, nasceu no Larinho, uma aldeia transmontana do Concelho de Torre de Moncorvo, Distrito de Bragança. É o filho do meio de três irmãos.
     Estudou em Moncorvo, Bragança e no Porto, onde se formou em Engenharia Geotécnia. É casado e Pai de três filhos.
    Viveu no Brasil, onde passou por momentos dolorosos e de terror, a nível económico e psicológico. Chegou a viver das vendas de artesanto nas ruas e a dormir debaixo de Viadutos.
      No ano de 1980 e 1981 foi Professor de Matemática em Angola, na Província de Kwanza Sul, em Wuaku-Kungo. Aí aprendeu a desmistificar certos mitos e viveu uma realidade muito diferente da propagandeada.
     Em Portugal deu aulas de Matemática em diversas cidades, nomeadamente em São Pedro da Cova, Ponte de Lima, Cascais (na Escola de Alcabideche, onde deu aulas aos presos da cadeia do Linhó), Alcácer do Sal, Escola Francisco Arruda e Luís de Gusmão, em Lisboa. Frequentou durante quatro anos, como trabalhador-estudante, o curso de Engenharia Rural, no Instituto Superior de Agronomia.
    Em 1995 fundou a empresa Bioprimática – Reciclagem de Consumíveis de Informática, onde trabalha até hoje como sócio-gerente.

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