Bairro de ciganos em Bragança Foto: Olímpia Mairos/RR |
Desde que chegaram a Portugal, em finais do século XV, os ciganos foram alvo de perseguições – logo em 1526 a lei proibiu-os de viver em território nacional.
Muitos dos estereótipos que ainda persistem sobre esta comunidade tiveram origem nesses primeiros tempos, considera Francisco Mangas, autor de uma tese de doutoramento sobre a história dos ciganos portugueses na Época Moderna.
Em entrevista à Renascença, o investigador do CITCEM, Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória, da Universidade do Porto, afirma que a escola poderia “ser um ponto de partida importante para se resolverem algumas das incompreensões” entre esta etnia e a restante sociedade.
Na sua tese de doutoramento, refere que os ciganos têm sido um grupo de portugueses ignorados pela historiografia. O que é que explica este desinteresse, uma vez que há outros grupos minoritários que foram alvo de investigações científicas?
É difícil perceber exatamente porquê. Em primeiro lugar, há uma questão mais óbvia que tem a ver com o facto de terem estado, quase até ao período contemporâneo, afastados do mundo da escrita e, portanto, de deixarem vestígios escritos sobre o seu passado. Depois, é um grupo de portugueses com pouca capacidade reivindicativa, de acesso aos espaços onde se faz a História, nomeadamente ao mundo académico. Na minha tese comparo um pouco com os judeus e com os cristãos-novos…
Ia justamente falar-lhe sobre isso. As perseguições aos ciganos não explicam esse desinteresse da academia. Veja-se o caso dos judeus que foram perseguidos e há uma vasta bibliografia sobre a sua história.
Sim, sim, não é esse o argumento. Os cristãos-novos tinham uma capacidade reivindicativa e até de se autorrepresentarem como um grupo completamente diferente da dos ciganos. Quando estava a trabalhar, a fazer esta pesquisa, na Torre do Tombo, e a percorrer alguns índices, ou seja, livros que nos dizem o que é que está nos documentos, vi, por exemplo, documentação dos procuradores dos cristãos-novos a dirigirem-se ao Rei, ao Papa. Tinham uma capacidade de intervenção e um poderio económico e social que os ciganos nunca tiveram. A historiografia acaba também por reproduzir muitas dessas diferenças. Acho que esse é o grande motivo.
Centrou a sua pesquisa na Época Moderna, concretamente entre finais do século XV e o ano de 1822, altura em que os ciganos veem reconhecida a sua cidadania pela Constituição então promulgada. Porquê?
É o período da chegada. Sabemos que no início do século XVI, logo em 1526, há uma lei contra os ciganos em Portugal. Este é o período de definição da identidade cigana no contexto da identidade portuguesa, uma identidade que, a meu ver, se estruturou muito por uma ideia de resistência, uma resistência muitas vezes silenciosa, uma resistência a uma política que, desde muito cedo, se estrutura contra a presença destas pessoas em Portugal. Quase desde o início, quase desde 1526, a existência destas pessoas é proibida no território português. Ainda assim, vão-se mantendo numa sociedade que nunca os aceitou verdadeiramente, embora quando nos afastamos dos documentos e tentamos perceber quotidianos e outras realidades – acho que pode ser esta a contribuição da minha tese de doutoramento –, percebemos que muitas dessas pessoas ciganas viviam muito integradas no contexto das localidades em que viviam e onde trabalhavam, etc.
Essa ideia não é um pouco paradoxal em relação a esta questão da resistência e da manutenção de uma identidade muito vincada?
A identidade cigana fez-se em muitos aspetos pela manutenção de traços culturais muito fortes e pela resistência destas pessoas a serem diluídas na restante sociedade. Também há outros casos que, paradoxalmente ou não, mostram que, embora sem essa diluição total, essas pessoas se iam mantendo [na sociedade]. Isso foi uma forma de resistência a meu ver, uma tentativa de persistir.
Ao longo da tese, vai procurando valorizar as ligações da comunidade cigana com a restante sociedade da época…
A nível institucional é uma comunidade ostracizada. Há, de facto, pequenos momentos de abertura no quotidiano, nas interações económicas, mas são muito difíceis de apreender historicamente, porque estão muito pouco documentados. De facto, o que aparece mais documentado é essa hostilidade institucional, sim, mas também existe muitas vezes uma hostilidade popular. Muitas vezes, esta ação repressiva das instituições surgia em resposta a certos anseios das populações que construíram estereótipos muito fortes contra as comunidades ciganas, sobretudo contra os ciganos nómadas. Esta diferença entre o nomadismo e o sedentarismo também ajuda a explicar algumas reações. O tal paradoxo de que há pouco falávamos, às vezes, também se explica por isso. O perigo, entre aspas, era quase sempre colocado nos ciganos nómadas, por serem populações menos controláveis. Não tendo um domicílio certo tornavam-se mais desconhecidas.
Francisco Mangas, investigador do CITCEM Foto: DR |
A sua tese centra-se no contributo dos ciganos para a construção da História de Portugal. Estamos a falar, por exemplo, do papel dos soldados ciganos na Guerra da Restauração?
Sim.
Que outros contributos pouco conhecidos do grande público é que, na sua perspetiva, são pertinentes ter em conta, quando se fala do papel da comunidade cigana na História de Portugal?
Tem-se sublinhado muito esse contributo específico na questão da Guerra da Restauração. Aliás, o Presidente da República, penso que há um ou dois anos, no primeiro de dezembro, sublinhou isso mesmo. Eu falo não tanto de contributos concretos, embora também existissem, mas sobretudo de uma questão que à primeira vista pode parecer mais abstrata, que tem a ver com esta ideia de uma sociedade portuguesa completamente homogénea ou que caminhava para esse sentido homogéneo. Logo no século XV, início do século XVI, há uma tentativa de eliminar a diferença religiosa com a questão da conversão forçada dos judeus. [No caso] da comunidade cigana, [creio que] o seu contributo para a História de Portugal tem a ver com a manutenção e a persistência de uma sociedade mais diversa. Uma diversidade que nem sempre é aceite, mas que, apesar de tudo, persiste.
Vê alguma relação entre esta diversidade que os ciganos acabaram por trazer à sociedade portuguesa e uma propensão que os portugueses tinham, pelo menos até há pouco tempo, para acolher outros povos e culturas?
Sim, não só dos ciganos, mas também de outras minorias em Portugal. Mas a verdade é que também temos que ver o outro lado da moeda: apesar da manutenção desta diversidade, ao longo da História de Portugal, também se construíram muitos preconceitos e muitos estereótipos, nomeadamente em relação aos ciganos, que dificultam uma leitura plena, uma resposta completa à sua pergunta sobre uma sociedade sempre aberta à diferença. Também podemos falar da resistência da sociedade maioritária em aceitar esta diferença. Muitos dos preconceitos que os ciganos sofrem, hoje em dia, têm este passado. Têm raízes neste período da Época Moderna que estudei na minha tese de doutoramento.
Escreve na sua tese que os relatos sobre a comunidade cigana que eram feitos pelos inquisidores eram mais ricos e diversos por comparação a outras descrições existentes. Pode dar alguns exemplos?
Algumas das fontes que utilizei no meu trabalho foram os processos da Inquisição, ou seja, casos de ciganos e ciganas que foram presos pelos mais variados motivos. Os inquisidores faziam sempre perguntas sobre a vida das pessoas, fossem elas ciganas ou não, sobre com quem viviam, onde viviam, com quem se relacionavam, por onde se deslocavam.
Lembra-se de algum relato em particular?
Sim, há um relato muito particular de um homem que se chamava José Correia, que foi preso em Coimbra, na década de 60, do século XVIII. Era cigano e tinha uma vida completamente sedentária. Vivia em Santa Comba Dão. O seu processo dá a entender que uma das suas filhas se casou com um homem que não era cigano. Tinha relações muito profundas até de natureza económica com os vizinhos. A sua vida, em todos estes pequenos pormenores, parecia quase uma impossibilidade, quando lemos o que estabelecia a legislação contra os ciganos por esta altura. Este processo do José Correia é muito interessante, porque envolvia outros ciganos que viviam uma vida mais próxima daquilo que nós assumiríamos como o estereótipo [sobre esta comunidade]. Tinham uma vida mais nómada, muito mais endogâmica. A realidade é muito mais complexa do que à primeira vista as coisas podem parecer, e eu acho que os textos da Inquisição permitem-nos perceber essa complexidade de uma maneira mais detalhada. É muito interessante a forma como os estereótipos se foram construindo.
Na atualidade são comunidades muito associadas, por exemplo, ao Rendimento Social de Inserção…
Na Época Moderna, os estereótipos não assentavam na questão dos apoios sociais, mas havia outros que, desde muito cedo, se estruturaram.
Como por exemplo?
Em 1526, há a primeira lei contra os ciganos. Ora, por volta dessa altura, não se sabe muito bem em que data, Gil Vicente publicava o Auto das Ciganas ou Farsa das Ciganas. Estamos nas primeiras décadas da presença cigana em Portugal e estão aí já construídos estereótipos dos ciganos como pessoas muito ruidosas, que enganam os outros, que ludibriam. Há a questão das mulheres como líderes do seu grupo familiar. Neste Auto das Ciganas, que já foi trabalhado por muitos especialistas em Gil Vicente, acho que há uma passagem que não foi ainda totalmente bem valorizada: uma pequena fala em que elas expulsam os seus homens de cena. Depreendemos que os homens eram ciganos. Gil Vicente estava a tentar trazer algo cómico: não era o que se esperava da mulher, no início do século XVI. Ainda assim, esta questão da mulher é uma ideia-chave que perdura. Nesta altura, os estereótipos têm muito a ver com esta questão de serem pessoas que enganam os outros, portanto ladrões. Isso é algo que se cristaliza durante muito tempo na Época Moderna. É difícil perceber exatamente porquê. Tem a ver com uma certa dificuldade de incompreensão. Outra questão é a forma como falavam, o facto de terem uma linguagem diferente da do resto dos portugueses, que era algo que marcava muito a diferença entre eles e nós, digamos assim. O próprio Gil Vicente tentou reproduzir uma certa mistura entre o português e o castelhano, mas, na verdade, sabemos que é mais profundo do que isso: tem a ver com a língua romani, e com as suas variantes na Península Ibérica.
A propósito do Dia Nacional do Cigano que se assinala a 24 junho, a Pastoral Nacional dos Ciganos publicou uma nota que refere que “muitas vezes, a marginalização destas comunidades é alimentada pela falta de conhecimento sobre a cultura cigana, as suas particularidades e seu modo de vida”. É uma questão de educação da restante sociedade?
Às vezes essas incompreensões são mútuas. Acho que no campo da sociedade maioritária há uma incompreensão muito profunda que tem a ver com estes conhecimentos da História. Na altura [da pesquisa], a título quase de curiosidade, peguei nos programas de História de Portugal do 5º ao 12º ano da escolaridade, e não encontrei referências às pessoas ciganas em Portugal. Há uma referência no programa do 12º ano, salvo erro, que diz respeito ao Holocausto, aos muitos milhares de ciganos que morreram sob o jugo nazi, mas de resto há esse silêncio. Este é só um pequeno exemplo deste silenciamento que se verifica ainda. Começámos esta conversa com o silenciamento, o desinteresse académico, mas é um desinteresse que se estende a outras dimensões da nossa vida coletiva, nomeadamente na escola. A escola seria um ponto de partida importante para se resolverem algumas destas incompreensões.
Além desta questão da educação, que papel pode o Estado ter hoje em dia nesta matéria?
Há processos que estão a decorrer, nomeadamente o nível de escolarização das pessoas ciganas em Portugal. Era preciso acelerar esse trabalho. É um ponto importante. Durante muitos anos, falou-se sobretudo do cumprimento da escolaridade obrigatória. É preciso solidificar esse processo que está a ser conseguido, mas também é preciso abrir outros horizontes, nomeadamente no acesso ao ensino superior. Acho que são precisas políticas nesse sentido junto das comunidades ciganas. Seria um ponto de partida importante também em relação às mulheres e às meninas ciganas, e ao seu acesso à escolaridade, que está a acontecer, mas ainda muito lentamente. É preciso dar um novo impulso a esse tipo de políticas.
Isso não esbarra com aquilo que dizia ser a característica destas comunidades desde o início, que tem a ver com a resistência?
A resistência tem um lado bom e um lado mau. E esse aspeto é um lado mau, sobretudo no caso da resistência à escolarização, sobretudo das mulheres. Mas penso que se está a desvanecer gradualmente. As próprias mulheres ciganas têm as suas associações, as suas reivindicações e estão a entrar no ensino superior também. Há dias, estava numa conferência e alguém, na plateia, trouxe precisamente essa questão das mulheres ciganas afastadas ou até menorizadas, no contexto das próprias comunidades. Um colega que estava a assistir apresentou-se, disse que era de origem cigana e trouxe-nos um detalhe: quem está a chegar à universidade, entre os ciganos, são sobretudo as mulheres e as raparigas. Acho que é um sinal de esperança.
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