segunda-feira, 17 de setembro de 2018

A imprensa – sintomas de mal-estar na chegada da República

A Pátria Nova, órgão do Partido Republicano, aparece a 31 de janeiro de 1908, uma data simbólica que evoca o levantamento republicano de 31 de Janeiro de 1891, no Porto. A sua publicação constitui um indicador importante, sem que daí possamos tirar seguras conclusões, acerca da ação dos republicanos e da sua implantação. Como veremos por outros indícios, a implantação do Partido, mesmo nas proximidades do 5 de Outubro de 1910, tinha pouco significado.



O principal objetivo de A Pátria Nova era o de contribuir para disseminar as sementes republicanas em terras pouco preparadas para as receber. Uma publicação com estas características, com os níveis de comprometimento ideológico e doutrinário que revelava, estaria para além da força que os republicanos tinham localmente. Teria sido fruto da ação e da determinação de algumas figuras republicanas locais, entre as quais se destaca José António Rodrigues de Paula, elemento da maçonaria.
Constituía uma emanação do republicanismo bragançano, mas a sua afirmação e o seu prestígio teriam resultado essencialmente, segundo cremos, da influência de um distinto militante republicano, muito chegado a António José de Almeida: João José de Freitas, trasmontano, que foi o primeiro diretor oficial do jornal e que, até à sua morte – que, como veremos, coincide com a morte do jornal – vai figurar como fundador. E se não foi um dos principais responsáveis pela sua criação, estamos convencidos de que a ele se deverá, em boa medida – graças à sua militância e aos seus conhecimentos –, a força combativa do periódico, a sua elevada qualidade doutrinária, formativa e literária. Figura grada do partido, acabou por ter um percurso verdadeiramente trágico.
A influência que exerceu nestas terras e o peso político que teve fizeram dele, nos primeiros tempos da República, uma grande personalidade.
Quando se lida com este tipo de documentos – imprensa escrita –, levantam-se problemas de difícil resolução, a respeito da divulgação e da receção que estas publicações teriam conhecido. Muito pouca gente era alfabetizada.
E, entre os alfabetizados, seriam poucos os que liam jornais.
Contudo, os periódicos eram um “importante meio de transmissão cultural. O Portugal de então era um País de jornais”. Como sabemos, malgrado a elevada taxa de analfabetismo, “o jornal tinha grande circulação, sendo frequente a sua leitura em voz alta, em pequenas vilas e aldeias, perante assistências heterogéneas do povo analfabeto…”
Um órgão como este devia ser “consumido”, fundamentalmente, por militantes e simpatizantes das doutrinas republicanas, embora chegasse, em princípio, a um público mais vasto. Como teria sido recebido, que influência exerceu na formação daqueles que o liam e o ouviam ler? Não sabemos como penetrou na opinião pública.
Seja como for, A Pátria Nova, mesmo que não tenha conhecido uma ressonância significativa, foi uma voz importante no panorama político, ideológico e cultural da urbe. A ação pedagógica, propagandística e doutrinária do hebdomadário, juntamente com a atuação dos poucos republicanos brigantinos – numa altura em que tão apaixonadamente se vivia, em que tanto se polemizava e tanto se debatiam ideias, princípios e valores –, não deixou de se fazer sentir, tendo contribuído para fazer oposição à Monarquia, para informar e para formar, para semear o ideário republicano.
É muito o que nos diz – se devidamente interrogado – sobre os tempos que reflete, que reporta, que documenta e sobre os homens que viveram tais tempos. Dada a sua orientação, é muito o que nos ensina sobre a ideologia e a ética republicanas, sobre os valores republicanos e sobre o republicanismo. É muito o que nos diz sobre os combates que se travaram, as alianças e cedências que se fizeram, os sonhos e as desilusões de cidadãos que queriam (r)evolucionar o mundo em que viviam.
As frentes de combate eram muitas. Iam desde o ataque à Monarquia, às forças sociais e instituições que a suportavam, à propaganda das virtudes messiânicas da República, passando por intervenções de natureza pedagógica nos mais variados domínios – político, ideológico, religioso, social, económico, cultural. A luta pela mudança do regime está sempre presente. As críticas ao regime monárquico sobem de tom e tornam-se, por vezes, gritantes, quando, de acordo com a linha editorial, a conjuntura o justifica e as circunstâncias o exigem.
Debatia, combatia e doutrinava. Abundam as colaborações qualificadas – de articulistas conceituados e de prestigiadas figuras – quer pelo nível cultural e científico, quer pela dimensão literária. A língua é, quase sempre, bem tratada. É grande o investimento doutrinário e teórico. Como não podia deixar de ser, sem perder de vista a discussão das grandes e momentosas questões nacionais, pugna-se pelos interesses locais e pelas causas regionais. Faz-se política local, mas também nacional.
Também se assume como opositor à Igreja, a uma certa Igreja, dando corpo, de forma programada – e em sintonia com as grandes causas do Partido – à ideologia republicana. Depois da implantação da República, à medida que as dissidências entre republicanos se acentuam, vai ser, essencialmente, de 1913 a 1915, a voz do ideário e dos interesses “evolucionistas” e, em particular, das diatribes do agora senador João José de Freitas (e dos seus apaniguados) contra Afonso Costa.
O artigo “A Nossa Missão”, do primeiro número, delineia intenções e finalidades programáticas. Aposta sobretudo no combate político e doutrinário: “Inabalavelmente republicanos, trabalharemos pelo nosso credo político na medida dos minguados recursos que possuímos. … Defenderá este semanário a instrução popular como base da educação da sociedade portuguesa”. E ainda a aposta no regionalismo: “A Pátria Nova tratará de todos os assuntos de reconhecido interesse local, apresentando noticiário desenvolvido do movimento económico de Bragança e seu Distrito, bem como de qualquer acontecimento que possa interessar o público”.
Vejamos o que se escreve, com crueza e cores negras, a 4 de março de 1908, ainda no rescaldo da Ditadura cerceara “todas as liberdades, suprime todas as garantias, e impõe a uma Nação as maiores vergonhas e as maiores torpezas que jamais lembraram a qualquer Governo”. O consulado de João Franco não começara mal de todo, mas depois veio “o regime draconiano”, com todas as medidas e procedimentos execráveis. A situação era trágica e calamitosa. “O que mais revoltava a consciência pública era ver-se através deste conluio entre o Rei e o seu ministro, uma miserável questão de dinheiro… Se com a Monarquia tais desvarios e vexações eram possíveis, é porque a Monarquia, mesmo Constitucional, era uma forma de governo tão defeituosa e tão erma de garantias, que permitia que, dentro dela e sem transição, se praticassem todas as opressões e que se prestava à transformação em absolutismo… E por último, o celerado decreto de 31 de janeiro que permitia a deportação… Esgotados os meios legais de resistência, restava só a revolução ou o regicídio. O regicídio antecipou-se-lhes”.
O sentimento de que as coisas vão muito mal, por culpa dos protagonistas monárquicos – e não por culpa da atuação do Partido Republicano –, é bem visível, por exemplo, na “Carta de Lisboa”, publicada no Jornal de Bragança de 25 de maio de 1910: “O pior é que a administração do País vai de mal a pior, ou antes, não há administração há mais de dois anos; e pelo que respeita ao regime monárquico, é caso de dizer-se: Deus me livre dos meus amigos que dos meus inimigos me livrarei eu. De facto, quem tem contribuído principalmente para enfraquecer o sistema monárquico-constitucional não têm sido os republicanos com a sua propaganda violenta e subversiva, porque os próprios excessos a condenam, mas as transigências vergonhosas, os erros e os crimes dos homens que se têm sucedido na gerência dos negócios do Estado”.
Com muita atenção deve ser lido, ainda, pela luz que pode lançar sobre as desencantadas avaliações que são feitas por alguns convictos monárquicos, dos últimos tempos de governação, “Um artigo inédito de Abílio Beça”, de abril de 1910, que saiu no último número da Gazeta de Bragança, de 19 de outubro. Após a tragédia do Terreiro do Paço, “arreigou se em todos os monárquicos sinceramente possuidores do amor da Pátria… a convicção de que a marcha da política da administração pública ia encaminhar num melhor rumo… a vida nova, que tantas vezes se tem anunciado, sem nunca haver chegado”. Interroga-se depois: “ o que se tem visto de útil e de palpável nos dois anos já decorridos?” Responde: “tem-se fomentado a desagregação partidária, precisamente quando mais se carecia de partidos fortes e disciplinados.” “Na administração pública… em lugar da redução universalmente reclamada das despesas, veem-se medrar cancros financeiros que era urgente extirpar e agravar ainda o mal com leis ruinosas.” É um artigo de um espírito sensível e lúcido. Um diagnóstico como este revela descrença e desilusão. Um monárquico convicto e esclarecido, com a estatura de Abílio Beça, via com muita preocupação o presente e o futuro da Monarquia.

Título: Bragança na Época Contemporânea (1820-2012)
Edição: Câmara Municipal de Bragança
Investigação: CEPESE – Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade
Coordenação: Fernando de Sousa

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