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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

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COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira..
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

sexta-feira, 7 de setembro de 2018

O Ciclo das Refeições Rurais

Comunicação apresentada ao Encontro “Saber Trás-os-Montes”
João Leite Gomes


Excelentissima mesa
Caras amigas e caros amigos

De um pedido de colaboração para o momento gustativo que vamos viver, o meu amigo, Elísio Neves teve a bondade de me convidar para vos dirigir algumas palavras sobre a “arte de garfear” no mundo rural, o que desde já muito agradeço.
Pela hora a que estamos reunidos, 10:30, eu sugeri que lhe devíamos chamar “almoço”, pois para comermos algumas das coisas vamos precisar de garfos e forçosamente de colheres, para o caldo de cebola.
Como o Programa do Encontro termina antes do “almoço”, então o momento passou a chamar-se mata-bicho.
Num programa de rádio que ouvi no carro achei graça à explicação sobre o significado de “matar o bicho”. Analfabeto no mundo da internet pedi apoio e o que soube foi: “expressão popular – engole de uma só golada um cálice de aguardente de manhã, em jejum, para matar os bichinhos que estão a formigar no estómago, logo ao romper do dia”.
Uma crendice? Talvez não. Em Junho de 1983 dois médicos gastroenterologistas australianos demonstraram que existe uma bactéria —Heliobacter Pilori — responsável pelas ulceras no estómago e no duodeno:
o tal bicho. Bem mais interessante a explicação dada no documento que nos foi distribuído — fotocópia do jornal O Campeão — Vila Real — 19 de Maio de 1897.
Mas vamos ao tema que me propus tratar: O Ciclo das Refeições Rurais.
Num mundo actual em permanente mudança, o mundo rural tem sofrido grandes alterações, principalmente muita perda de identidade.
A arte e o engenho de carregar um carro de bois com mato ou feno deu lugar à preocupação em não ser multado se a carga do tractor vier muito fora dos taipais.
A desertificação e o envelhecimento da população rural tornaram muito pontual o trabalho comunitário, o trabalho de favor. A utilização de gado para lavrar ou fazer carretos está reduzida ao mínimo dos mínimos.
A vida no campo, de sol a sol, iniciava-se logo de manhazinha e mal o sol se punha o corpo do trabalhador rural, cansado, pedia repouso. Assim logo pela manhã tinham o mata-bicho: uma simples côdea de broa, um cálice de aguardente para dar força, segundo diziam e acreditavam. Café com leite e um bijou era já uma modernice a que algumas vezes assisti, nos anos setenta em casa da minha sogra.
O almoço, servido entre as 10-10:30, era de garfo e dependia do poder económico da casa de lavoura. Mas entre um arroz seco de frango, coelho frito (se pequeno) ou estufado, uma massa de bacalhau, as normais couves com feijão, milhos (pobres), umas batatas guiadas (tipo batatas à espanhola) assim se ganhava alento para o resto da jornada.
Se a comida era levada ao campo tinha que se adaptar o seu transporte em cestos ou gigos cobertos com um pano de estopa ou, se mais grosseiro de tomentos, que servia de toalha.
O jantar era por volta das 14-14:30. A ceia, simples e leve no final do dia. No verão, os dias são maiorese era usual dar a merenda.
Sem estar a diferenciar o almoço do jantar uma referência a alguns pratos habituais nas refeições rurais: arroz de feijão adubado com carne gorda; feijão-frade cozido com cebola também cozida e um fio de azeite; pataniscas; bacalhau frito; batatas cozidas amassadas à mão (com fundagens de rojões); porco, com vossa licença, nos seus múltiplos usos e utilizando as partes mais diversas do mesmo; batatas à pobre ou também chamadas batatas da escola; uma grande cebolada e tomate do pequeno para cobrir as batatas quase sempre cozidas.
Sardinhas, azeitonas, cebola, um caldo de castanhas piladas, um caldo de couves e feijão mais aguado, para depois deixar a parte de substância como conduto ou conduito. A bola, hoje em dia o bolo do forno feita no forno de cozer a broa com carne de porco gorda e nas casas mais abastadas com sardinha da pequenina. Um bolo doce um verdadeiro mimo, principalmente para aqueles que vinham de fora ea quem não se pagava mais tarde com trabalho: bolos de broa às vezes polvilhados com açúcar amarelo e canela mal saiam da sertã; bolos de farinha milha, tipo pataniscas, bem estaladiços.
Na época das vindimas uma ida ao lagar tinha um pequeno reforço na alimentação, normalmente figos e aguardente, e cigarros avulso, os chamados mata ratos.
Nos nossos dias as coisas mudaram e muito. Algum desafogo económico e uma permanente aculturação, um ritmo de vida frenético, novos meios de transporte são algumas das causas, penso eu, desta quase mudança radical.
Os assalariados rurais só trabalham 8 horas e quando pegam de manhã. já vão comidos de casa. O almoço já é por volta do meio-dia e quase sempre da sua responsabilidade e despegam às 17h. Poucos são os patrões que oferecem normalmente uma cerveja e um pão com qualquer coisa; poucos ou quase nenhum quer vinho.
A actual ideia de ceia prende-se com uma paródia ou encontro a altas horas da noite. A nossa ceia do 1.º de Dezembro não era depois do teatro e durava até de madrugada?
Como o tema deste Encontro é “Saber Trás-os-Montes — a gastronomia na literatura transmontana e alto duriense “ penso que a mesa me vai fazer o favor de dar mais meia dúzia de minutos para também poder falar do Tema.
Desde o início de Agosto não tenho feito outra coisa que não seja procurar nas obras de Camilo, referências gastronómicas. Amanhã, em Ribeira de Pena, irei falar mais em pormenor sobre o assunto. Só duas ou três referências sobre Camilo e a comida.
Assim em Amor de Perdição vejamos o diálogo entre Mafalda e o seu primo e marido Afonso de Teive: “ainda me não apresentaste ao teu amigo como uma sofrível intérprete da arte de cozinha. Interprete! Exclamou ele. Tu és mais. Tu inventaste a ciência de cozinhar que é muito mais sublime que a arte”.
Em a Filha do Arcediago: “O jantar do senhor António neste dia foi rápido e pequeno porque ao coração refluíra-lhe quase toda a sensibilidade do estómago. O senhor António limitou-se a comer obra de arrátel e meio de cozido da perna, uma travessa de arroz com rodelas de linguiça, uma concava de pelangana de carneiro ensopado com batatas, uma tigela de alourado caldo com sopas que se levantavam estremecidas quatro polegadas acima do nível da tijela, um quarto de ceira de figos da comadre, alguns copos de vinho à proporção e mais nada”.
Em Coração, Cabeça e Estómago: A bela e sadia Tomásia a falar com o enfezado Silvestre (alter ego de Camilo): «Credo! Vocemecê bebe chá por almoço? Pois então. As comidas fortes dão-se bem com o estómago? Ora se dão! Nunca estive doente dois dias a fio. Costuma cear? Poderá não! Almoço, janto, merendo e ceio.»
Na mesma obra aparece o pequeno-almoço às sete horas: sopa de ovos, salpicão, batatas ensopadas com toucinho e toucinho cozido com batatas, uma colher de requeijão e uma pinga de vinho.
Nas Novelas do Minho: «Quando entravam no quinteiro, saia o lavrador da adega onde pela terceira vez fora matar o bicho, aquela hidra que botava cabeça toda o santo dia no bucho hercúleo do João da Lage […]»
Em O Judeu, em nota de rodapé do cap. IX: «A alimentação dos encarcerados, com alguma diferença nas horas de lha ministrarem era a mesma em todas as prisões inquisitórias do território português: Os presos são bem tratados: comem três vezes no dia almoço às seis horas da manhã, jantar às dez e ceia às quatro da tarde. Aos pretos dão-lhes canja de arroz, chama-lhe o francês canje, ao almoço; ao jantar e ceia dão-lhes peixe e arroz. Os brancos passam melhor: de manhã dão-lhes um pão fresco de três onças e peixe frito e uma linguiça se é domingo ou quinta-feira e nesses dias, ao jantar dão-lhe carne, um pão como o do almoço e um prato de arroz e algum guisado com farto molho, para adubar o arroz que é cozido simplesmente com sal…»
Em A Mulher Fatal: «Às três da tarde Perpétua entrou na tulha com um açafate de tampo donde tirou um pedaço de lombo de porco assado com loiras batatas, um pudim das mesmas, um prato de linguiça com ovos, uma compoteira de doce de ginja e uma tijela vermelha de marmelada.»
Em Maria da Fonte: «Ao meio dia deram-lhe um frango cozido que ele não pôde engolir porque o queria guisado. À noite mandou comprar um arrátel de bolinhos e meia canada.»
Em Coisas Espantosas: «Logo pela manhã almoçavam os meninos o seu café com leite e Augusto ia à cozinha com o caixeiro almoçar caldo verde migado com pão centeio.»
Em O Bem e o Mal: «Costumava ela erguer-se antemanhã […] Peregrina acendia o lume, aconchegava o púcaro nas brasas, segava as couves, ia assistir á missa do irmão e depois vinha cozinhar o caldo […]»
Para intervalar com algumas referências gastronómicas, que a seguir farei, da obra de João de Araújo Correia e porque tem precisamente a ver com uma das iguarias que estamos a degustar uma citação de José Gomes Ferreira em Lembranças de um Comilão (1973): «a mais antiga ideia apaladada de infância é a de uma cebola aberta em quatro partes e polvilhada de sal. Que sabor.»
Falemos agora da obra de João de Araújo Correia, um extraordinário contista.
Em Pó Levantado – crónica “Dia e Noite”: «Mantença do tio José Pandego, ao almoço, era um pedaço de broa que levava de casa, numa saquita e uma sardinha salgada, muito pequena assada na brasa. O jantar do tio José Pandego, ao meio dia certo, marcado pelo, sol era uma tijela de arroz e uma tijela de caldo. Bacalhau só em serviços puxados como a cava. À noite ceava sozinho à sua custa, no seu quartel de solteiro, nova tijela de caldo e toca a deitar, para se erguer de novo com as estrelas.”
Em Enfermeira do Idioma – “Língua nova rica”: «E ceia? Ninguém o arranca a dizer ceia. À ceia de Cristo é capaz de chamar jantar de Cristo. Não admira que Nosso Senhor tenha ceado.»
Em Ecos do País: O texto sobre “Culinária desenxabida» é notável, perfeitamente actual e que vale a pena ler. Na crónica “Falar difícil”: «Como a palavra merenda. Bem pronunciada que linda não é comparada com lanche? No lanche só haverá beleza em dentes pequeninos que o devorem…»
Em Terra Ingrata — “O dinheiro do tio Carlos”: «[…] comi muito caldo sem unto. O meu apresigo ― quantas vezes ― foi um dente de alho esfregado no pão. Sobre a pinga muito bem bebida, apresigando-a com pão centeio cortado à navalha em pedacinhos como preceitua a etiqueta rural”.
Em Tempos Revolvidos — “Mãos fechadas”: «Almoça de garfo pela manhã e leva um pão com manteiga ou uma fatia de queijo para o comer ao meio-dia. Não vai à cantina porque não é preciso. Vem jantar a casa às quatro horas da tarde.»
Em Rio Morto — “Cheiro de santidade”: «De madrugada as mulheres [...] subiam à cozinha da minha avó para matar o bicho. Agarravam-se a uma boa malga de café, limpavam os beiços á pressa com as costas da mão […] Meia manhã seria, chegavam os mendigos. Ai lhes distribuíam o almoço ― caldo, pão e sardinha. Valdevinos que passavam a noite na taberna, joga que joga […] iam dejejuar-se à cozinha de minha avó que lhes mandava assar na brasa, uma linguiça ou salpicão. Boa bucha era, metida num trigo e empurrada com um quartinho de vinho tinto, vinho branco ou jeropiga loira. Eles, os moinantes, escolhiam.»
Do mesmo livro — “O inferno é ali”: «Avia-te Bertolo que temos muito que fazer […] mas aposto que já mataste o bicho […] Enquanto o senhor doutor vê os doentes consolo-me […] conheço quantos ramos de loureiro há por aí fora. Mas também que passadio é o meu? Alguma isca de bacalhau, duas azeitonas, presunto quando a governanta se lembra de mim, em dias de grande gala, que são raros, e o casqueiro de trigo, que não é mal-amanhado. Se não fosse o vinho…»
Peço desculpa pelo tempo que lhes tomei, para além dos dez minutos acertados. Mas entusiasmei-me com a procura nos quase 20 livros que tenho do grande escritor, também camilianista e resultou nesta intervenção, sem licença e sem ser convidado para tal acabei por falar também sobre o tema do encontro”Saber Trás-os-Montes — a gastronomia na literatura transmontana e alto duriense “
Agradeço a paciência com que me ouviram e a simpatia da mesa.

Tellus, n.º 61
Revista de cultura trasmontana e duriense
Director: A. M. Pires Cabral

1 comentário:

  1. CaroJoãoLeite, bom dia!

    Gostei deveras de seu texto sobre as comidas trasmontanas.
    Tal texto conduziu-me às fazendas de café, onde nasci e me criei, no interior do estado de São Paulo, Brasil, na minha querida cidade de Cravinhos.

    Parabéns!

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