A. M. Pires Cabral
São quase cinco da manhã. Dá-me a espertina, espicaçada por este calor desmarcado que tem feito e nem à noite abranda. Decididamente, a brisa do Marão, que costumava amenizar as noites abafadas de Julho e Agosto, está em greve; e como as greves são para ser sentidas nos seus efeitos, como dizem os dirigentes sindicais, cá estamos nós encharcados em suor e mal- -estar — e dizendo cobras e lagartos do tempo que vai.
Incapaz de dormir, venho para a varanda. Está ainda noite escura. Nas aldeias do Alvão apagaram-se há muito as luzes das ruas, e o perfil da serra negreja quase sinistro. Vila Real também dorme. Apenas de alguma janela vizinha que o calor não deixou fechar vem um ressonar feliz, cadenciado, a perturbar a grande paz da noite.
Não sou o único acordado. Numa balça próxima, começa o melro a ensaiar os primeiros assobios. Ainda deve estar no ninho, mas acordou e a voz não se lhe consente calada e vai arriscando a sua assobiadela, como quem limpa a garganta do pigarro nocturno. Ou então como quem diz com os seus botões: Levanto-me já ou deixo-me ficar mais um bocado no ninho? Estará na hora de começar a fazer pela vida? A bicharada já andará a pé ou ainda será cedo?
Estes primeiros balbucios matutinos do melro trazem-me à memória um texto que li em tempos, da autoria do Dr. António Borges de Castro, um advogado mondinense (que ainda conheci pessoalmente) que muito celebrou as coisas da sua terra. Vem esse texto no segundo opúsculo dos seus Estudos mondinenses, chamado Roteiro de Mondim de Basto —, e confesso que não sei dizer se o autor está a falar a sério ou a chuchar com a nossa credulidade. Ora leia o Leitor comigo, e ajude-me a decidir neste dilema: «As aves além de barómetros são relógios nas noites belas da primavera. Assim o rouxinol e o galo iniciam o seu cantar à meia-noite, o tentilhão à uma e meia, a toutinegra de papo vermelho às duas e meia, às três a cotovia começa a saudar a aurora, às três e meia o galo marca o início da alvorada e às quatro horas o melro anuncia que em breve o dia vai surgir, seguindo-se nestes hinos ao Criador as andorinhas e os mais pássaros em coro.»
Nem mais.
Eu já sabia que, escorando-se na fiabilidade do canto do galo, o povo usa a expressão ‘mais certo não canta um galo’ em casos em que tem a certeza absoluta do que afirma. De uma rapariga alevantadiça, diz, por exemplo: “Esta ainda há-de dar um desgosto aos pais. Mais certo não canta um galo.” Também sabia, por já ter tido o privilégio de ouvir, que o rouxinol canta por vezes a meio da noite — e concedo que possa ser à meia-noite em ponto. Mas, de meu conhecimento, as outras aves não eram tidas nem achadas no tocante a horários, diurnos ou nocturnos.
Se o Dr. Castro não está a reinar connosco, e as coisas são mesmo assim, há por ali umas lacunas que convinha fossem preenchidas por alguns outros pássaros. Nenhum canta, por exemplo, à uma ou às duas da manhã; não haverá, digamos, uma toutinegra de papo azul que se prontifique?
É possivelmente por essas e por outras que as aldeias, descontentes com a insuficiência de aves cantoras nocturnas, vão instalando nos campanários aqueles pavorosos relógios electrónicos, que massacram a vizinhança pela noite fora mas pelo menos sempre marcam as horas todas — quando não também as meias horas e até, nalguns casos, os quartos de hora, tudo isso com alguns compassos do “Avé de Fátima” por aperitivo.
Ainda a ser aquilo verdade, hoje o meu melro está já um pouco atrasado, pois segundo as contas do Dr. Borges de Castro devia ter cantado às quatro da manhã. Será porque não estamos numa bela noite de Primavera, mas numa noite calmosa e opressiva de Verão? Ou será que se regula pela hora velha? Mistério.
O melro… Ave curiosa esta, toda vestida de negro, como em traje de cerimónia, salvo a provocação dum bico amarelo (ou talvez antes laranja). Isto no macho. Porque a fêmea tem um bico pardo, cor de bico, e veste-se de um negro menos retinto, meio ferruginoso. Em suma: dá menos nas vistas. Em quase todas as aves — e ao contrário do que sucede com o género humano —, o macho veste mais galas do que a fêmea. Basta ver o galo, o faisão — e o bico do melro. E até o pardal macho, uma das aves menos garridas das nossas terras, usa uma gravatinha preta que lhe fica a matar e parece que é a perdição das pardocas. A natureza lá sabe por que fez assim as coisas. O povo celebra esta pretidão do melro no prolóquio ‘Louvado seja o criador dos melros, que tão pretinhos os fazeis.’
Devido a uma certa imagem de esperteza e zombaria, o melro serve muitas vezes de metáfora para um sujeito com tais predicados: ‘Fulano saiu-me cá um melro...’ Quer-se dizer que é fino e sardónico. E nada menos que quatro jornais chamados O Melro se publicaram em Portugal no século XIX — e, não por acaso, três deles eram folhas de crítica mais ou menos humorística.
Guerra Junqueiro, num poema narrativo de que ainda falaremos um pouco mais abaixo, definiu o melro em cinco adjectivos, qual deles o mais certeiro:
O melro, eu conheci-o:
Era negro, vibrante, luzidio,
Madrugador, jovial […].
Negro e luzidio referem-se ao seu aspecto. Vibrante e jovial, estou em crer que se refiram ao canto. Quanto a madrugador, refere-se aos hábitos. Junte-se tudo — e temos um melro, sem tirar nem pôr.
* * *
O melro, que começou por ser um pássaro rústico, como todos os outros, parece ter-se adaptado bem à poluição e arruído das cidades, e hoje tanto inça nas moitas silvestres como nos arbustos dos jardins e parques urbanos. Vi melros em Colónia e em Dublin, a dois passos de avenidas cheias de CO2 e de rumor citadino. Lá andavam à sua vida, como quaisquer pacatos cidadãos. Como se a cidade fosse o seu habitat natural desde o princípio dos tempos. Acreditem que me comovi com aquele apego à vida, com aquela capacidade de adaptação da simpática ave a um ambiente cada vez mais inamistoso. Num tempo em que as espécies vão tombando uma após outra, como pêras maduras, vitimadas pela inconsideração e pela ganância do senhor Homem, esta resistência do melro é obra, e comove-me.
É o melro e o pardal. Vi pardais voar livremente dentro da enorme sala de espera do aeroporto de Bruxelas. É certo que a sala tem um pé- -direito altíssimo e plantas vivas em grande quantidade, e zero predadores (a não ser porventura alguma empresa de desinfestação, lá quando o rei faz anos), constituindo assim um habitat e um abrigo muito satisfatório para os pardais, que, de amigáveis e confiados, por pouco não nos pousam no ombro a reclamar uma migalhinha do nosso croissant.
Ultimamente, noto que também os estorninhos deram em frequentar a cidade. Mas este é um caso diferente. Os estorninhos passam o dia no campo, a debicar nas culturas, e usam a cidade apenas como dormitório. E por sinal que constituem um espectáculo digno de se ver, aqui em Vila Real, no Outono, quando vêm em bandos de muitas centenas pousar nas espias das antenas da polícia que estão no telhado do palácio do conde de Amarante. Pela mesma hora, sobre o fim da tarde, mais minuto menos minuto, chegam revoadas deles de diversas direcções e vão ocupando cada espia até fazerem dela um contínuo de vultos pretos irrequietos, tagarelas, buliçosos, disputando cada centímetro linear de fio como os banhistas disputam cada centímetro quadrado de areia na praia da Nazaré. Como digo, são bichos rurais e só descem à cidade para dormir; fazem um pouco o inverso daqueles fabianos que trabalham na cidade e vão dormir nos dormitórios dos subúrbios. Mas o facto de procurarem a vizinhança dos homens parece-me uma aquisição recente, no fundo semelhante à dos melros. E fico contente com a presença de mais estes cidadãos emplumados no nosso quotidiano.
É pena que este desembaraço vital de melros, pardais e estorninhos, e já agora das pombas, não se comunique a outras espécies. Mas a natureza é assim: sempre houve os que se adaptam e os que não se adaptam. Aqueles sobrevivem; estes extinguem-se. Tão simples como isso. Nada a fazer — salvo procurar retardar, o mais possível, a extinção. Coisa que nem a ECO-92 nem a cimeira do Rio nem o protocolo de Quioto parece que têm conseguido.
Tornando ao melro. Foram a rapidez do seu voo rasante de flecha e o canto que mais parece uma rajada de chufas que lhe granjearam a imagem e a fama de bicho finório e escarninho. É lindo de se ver um melro que sai disparado duma bouça, a deixar espalhados no ar os estilhaços de uma gargalhada. «Verdadeiras risadas de cristal», diz Junqueiro. Parece que faz troça de tudo e de todos, o mafarrico. Quando tranquilo no interior do silvado, porém, o seu assobio acalma, adquire requebros espantosos. Passa de sarcástico a lírico. Habilidade infeliz, de resto, pois é ela que leva tantas vezes o melro ao cativeiro. Porque há gente que gosta de ter ao pé da orelha aquela caixinha de música natural, e não se importa de pôr a ferros criaturas que nasceram para ser livres... São gostos que não partilho. Bem pelo contrário: tivesse eu a chave, e abria de par em par a porta de todas as gaiolas.
* * *
Dois escritores trasmontanos — pelo menos dois — deram ao melro as honras de personagem principal. Refiro-me a Guerra Junqueiro e a Miguel Torga.
O primeiro faz do melro o instrumento da tomada de consciência de um padre-cura, até ali preso às leituras literais do Velho Testamento.
O segundo faz dele a própria consciência da natureza, que rectifica a desordem transitória introduzida pelo cuco.
Vale a pena ver um pouco mais de perto estas incursões do melro pela literatura — ou, talvez melhor, estas incursões da literatura pelo melro.
“O Melro”, poema narrativo-reflexivo inserto na Velhice do padre eterno, é uma das «50 balas que partindo de diversos pontos, vão todas bater no mesmo alvo», segundo o próprio autor. O alvo, neste caso, já se sabe qual é: o clero e a interpretação superficial e errónea que segundo Guerra Junqueiro ele faz da doutrina da Igreja. Com outros alvos exercitou também o escritor a sua musa fundibulária, quando não estava absorto e comovido a contemplar os ‘simples’: a dinastia de Bragança foi um desses alvos e el-rei D. Carlos saiu tão malferido das rijas objurgatórias junqueirianas como os bisonhos curas, cardeais e papas de Roma. Até porco de ceva lhe chegou a chamar!
O poema conta a história de um melro que o padre-cura detesta, porque crê que lhe devasta os trigais, quando na verdade os livra da bicharada daninha:
o melro, no entretanto,
Honesto como um santo,
Mal vinha no Oriente
A madrugada clara,
Já ele andava jovial, inquieto,
Comendo alegremente, honradamente,
Todos os parasitas da seara
Desde a formiga ao mais pequeno insecto.
E apesar disto, o rude proletário,
O bom trabalhador,
Nunca exigiu aumento de salário.
Que grande tolo o padre confessor! […]
Na verdade, o padre é uma criatura bronca e montesinha, retratado como tal pelo lápis implacável de Leal da Câmara, que ilustrou o livro. «Dão-me cabo de tudo estes ladrões!», desabafa ele, ignorante da acção benéfica do melro.
Que diferença entre ele e o político e ensaísta inglês Joseph Addison, que exclamava: «I value my garden more for being full of blackbirds than of cherries, and very frankly give them fruit for their songs.» (Traduzindo: Dou mais valor ao meu pomar por estar cheio de melros do que de cerejas e de boa vontade troco a fruta pelo seu canto.)
Para encurtar razões, um dia, o padre-cura descobre o ninho do melro com seis filhotes e, antes de os devorar guisados com arroz (ou com chouriço, numa opção posterior), resolve encarcerá-los numa gaiola. Ali vai um progenitor dar com eles. E, após uma inflamada apóstrofe à liberdade, mata-os, dando-lhes a comer duma certa erva venenosa, matando-se a si mesmo em seguida pelo mesmo processo:
Meus filhos, a existência é boa
Só quando é livre. A liberdade é a lei,
Prende-se a asa, mas a alma voa...
Ó filhos, voemos pelo azul!... Comei!
Note-se que os seis pequenos melros, por um passe de mágica a que não deve ser estranho aquilo que se chama liberdade poética, nesta altura só já eram quatro... Mas isto é um detalhe insignificativo. Verdadeiramente interessante no poema é o facto de constituir um vibrante hino à liberdade e um poderoso libelo contra o dogma do pecado original — na verdade um dos que o entendimento humano (talvez por isso mesmo que é humano...) mais dificuldades tem em aceitar. Assim:
A mãe comeu o fruto proibido;
Esse fruto era a minha sementeira:
Era o pão, e era o milho;
Transmitiu-se o pecado.
E, se a mãe não pagou, que pague o filho.
É doutrina da Igreja. Estou vingado!
Resta acrescentar que o padre, testemunhando o acto heróico do melro, cai em si, exclama «Ah, Deus é bem maior do que eu julgava...», deita fora a bíblia antiga (leia-se: o Antigo Testamento) e proclama: «Tudo que existe é imaculado e é santo!/ […] Ó Natureza,/ A única bíblia verdadeira és tu!...»
Esta tirada final é digna de ser dita, nos nossos dias, por qualquer paladino da biodiversidade.
Haverá porventura inconsistências teológicas no poemeto, como em toda a Velhice, e não tem faltado quem as aponte a dedo. Nessa seara não meto eu agora a minha seitoura. Mas, tanto quanto o meu entendimento alcança e sem prejuízo das ditas eventuais fragilidades, “O melro” não deixa de ser uma bela peça no género panfletário, que em certos passos, descontado o tom chocarreiro e em momentos de maior receptividade, pode muito bem calhar que nos faça assomar uma pontinha de água aos olhos. Tal é o sortilégio da poesia.
* * *
Miguel Torga, nos Bichos, uma das mais espantosas ficções jamais escritas em Português, dedica uma dezena de contos a outros tantos animais, captando-os no seu natural e resistindo à tentação de os humanizar, antes os restituindo no respeito integral da sua identidade de espécie. É certo que os bichos falam e pensam e mostram outros tiques humanos, mas tudo isso serve justamente para marcar a sua diferença em relação ao homem.
“Farrusco” é o título do conto que tem por personagem o melro — e farrusco, como o Leitor sabe, significa tisnado, escuro, negro. Que outro nome podia ter um melro? E, já agora, o pardal de outro conto do livro, que outro nome podia ter senão Ladino? E o sapo, que outro nome podia ter senão Bambo? E a cigarra, que outro nome podia ter senão Cega-Rega?
E o galo, que outro nome podia ter senão Tenório? Até nesta coisa de baptizar os seus bichos foi magistral Miguel Torga.
Pois bem. Farrusco, o melro, é o detentor do riso que castiga. Que outra coisa pode ele fazer na sua humildade? A Clara, uma rapariga toda ela de se comer, que andava a trabalhar no campo, tinha perguntado ao cuco, segundo um uso antigo, quantos anos lhe dava de solteira e o cuco respondera dando três cucadas. Três anos — uma violência aos olhos da rapariga e da natureza.
Farrusco riu-se então pela primeira vez:
Coisa bonita! Uma cascata de semicolcheias escaroladas, como se alguém rasgasse um pano cru, rijo e comprido, no silêncio da tarde serena.
Esta gargalhada foi uma primeira desautorização da sentença do cuco. Inconformada, a rapariga voltou a perguntar: «Cuco do Minho, cuco da Beira: quantos anos me dás de solteira?» E o cuco, impiedoso, pôs-se para ali a dar cu-cus que nunca mais parava. «Parecia uma ladainha! A lengalenga não parava mais.»
O «aldrabão do cuco» era assim o arauto de uma desordem desmedida: uma rapariga apetitosa como a Clara devia casar cedo, para se cumprirem também nela as leis antiquíssimas da espécie. E de novo se ouviu a gargalhada do melro, repondo a ordem. Era como um sarcasmo a desacreditar a profecia do cuco e a reconduzir as coisas ao seu natural.
— O estafermo do cuco, tia Isaura! Até um melro se riu!...
— Riem-se de tudo, esses diabos...
Mas o lusco-fusco começava a empoeirar o céu, e Farrusco ia fechando docemente os olhos, deitado na cama dura. A vida que lhe ensinara a mãe, simples, honesta, espartana, não lhe consentia luxos de noitadas. Pela manhã, ainda o sol vinha lá para Galegos, já ele tinha de estar de perna à vela, pronto para comer a bicharada da veiga, e rir de novo, se alguma tola de Vilar de Celas se fiasse outra vez no aldrabão do cuco.
Dois melros na nossa literatura maior: um heróico, outro sarcástico — ambos agentes de grandes transformações, ambos capazes de ensinar alguma coisa aos homens.
* * *
Mas o simpático Turdus merula Lin. mereceu ainda a um terceiro escritor nosso — João Pina de Morais — meia página de antologia.
É no conto “O rouxinol”, de Sangue Plebeu. Digo meia página, porque efectivamente é essa a sua extensão. E compreende-se: no preâmbulo à comovente história do rouxinol, Pina de Morais passa em revista toda a passarada dos seus tempos de menino. E como são muitos os pássaros, pouco espaço pode dedicar a cada um. Mas, curtas embora, cada uma destas evocações é verdadeiramente ‘uma página’ de antologia.
Lemos — e lembramos a nossa própria infância, rodeada de aves e dos cantos respectivos. Onde isso vai! Onde vai a abundância de pequenas aves que, do género humano, tinham então pouco mais a temer do que a razia que os garotos faziam aos ninhos e a não menor razia que por Setembro sofriam as aves de arribação. De alguma forma, tratava-se de alguma maneira de razias biológicas e, por muito grandes que fossem, sobravam sempre pássaros. O pior veio depois. Depois é que começaram as razias químicas, com os pesticidas inconsideradamente espargidos sobre a natureza, que puseram tantas espécies à beira da extinção e a algumas extinguiram mesmo.
Dirão que choro este treno sobre leite derramado. O mal está feito, mas há sempre lugar a prevenir novos e piores males. Ou o homem toma juízo duma vez por todas e limita as suas ambições, ou qualquer dia está sozinho à superfície do planeta. Eu não gostaria de chegar a ver esse dia.
Mas sacudamos o pessimismo e terminemos da melhor maneira este apontamento sobre o melro, transcrevendo o texto do grande escritor, cidadão e militar de Valdigem que foi João Pina de Morais:
Ai o cantar do melro!... Havia um que fazia o ninho numa roseira mesmo sobre a porta da casa, porta que era preciso fechar devagar para não incomodar o nosso vizinho. À tarde, quando, como eu digo, cortam o vale em voo disparado, quase sem abrir as asas, apenas lançam o assobio triunfante, mas depois, parados nas ramarias, serenam e, deitando a cabeça para trás em êxtase e erguendo vertical o bico amarelo, com ritmo enérgico e doce como certas notas de clarim, desfraldam a voz atirando ao céu um hino tão heróico e provocador, que se pode exprimir pelo canto da alegria de viver. O melro é instantâneo nas suas grandes alegrias, depois deixa-se tomar pela tristeza e fica todo o dia sem deixar a mesma árvore e quase sem cantar. Canta sobretudo de manhã e à tarde. De manhã é a explosão vadia e alta que acorda para a vida a paisagem inteira. Pela tarde, dá ao dia que acaba a glória heróica da morte numa batalha. Para um poente em chaga só vai bem o grito delirante do melro.
Não terminarei contudo sem fazer o Leitor reparar — se é que não reparou espontaneamente, que é aliás o mais certo — na homenagem que os três escritores prestam ao melro, através da metaforização do seu canto. Lembra-se? ‘Verdadeiras risadas de cristal’ (Guerra Junqueiro); ‘uma cascata de semicolcheias escaroladas, como se alguém rasgasse um pano cru, rijo e comprido, no silêncio da tarde serena’ (Miguel Torga); ‘explosão vadia e alta que acorda para a vida a paisagem inteira’ (Pina de Morais).
Literatura da melhor. Abençoado pássaro que tais gemas fez dar a tais filões!
(Do livro a publicar Por esta terra adentro)
Tellus, n.º 61
Revista de cultura trasmontana e duriense
Director: A. M. Pires Cabral

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