São Paulo (Brasil)
(colaborador do Memórias...e outras coisas)
O ACAS é o menino de branco, à direita, olhando para o chão. Foto tirada pelo Paulo Nakamura (filho de imigrantes japoneses) no dia da minha Primeira Comunhão, em janeiro de 1953. Também aparecem meus irmãos: Nelson (dois anos mais velho que o ACAS, de pé, ao meio; Elsa, é a menina de pé à esquerda com o antebraço sobre os olhos (ela faleceu em 2008), Aparecida (adulta, de pé, à direita), além do Nico Vieira (adulto, de pé, à esquerda); sentadas, as irmãs Tita e Benvinda Rodriguez, espanholas e filhas de imigrantes espanhóis.
Sempre que eu ia à cidade de Cravinhos, distante vinte e cinco quilômetros da Fazenda São José do Pântano, onde nasci e morava; ficava de tal modo ansioso, que convergia para a insônia: normalmente mal conseguia dormir na noite anterior à viagem. Eu tinha então sete anos de idade e vivia na Fazenda São José com meus outros cinco irmãos, de dois, cinco, nove, onze e quinze anos. Havia ainda outros irmãos, já casados, que moravam “longe demais”, e dos quais eu tinha apenas umas poucas lembranças; afinal éramos uma família com nove irmãos. Mas aquele dia 02 de Dezembro de 1952 era um dia muito especial para mim: seria o dia em que compraria uma roupa especial: a roupa da minha ”primeira comunhão”!
O ano de 1952 havia sido muito bom para mim. Como era praxe à época, nas escolas municipais rurais só podiam ingressar crianças com no mínimo sete anos completos e por várias razões acabei ingressando na escola com seis anos completos. Aos seis anos de idade eu já conhecia os números de um a dez e escrevia, morosamente é verdade, meu nome completo. Eu aprendera sozinho! Era uma espécie de autodidata. Como só completaria sete anos no dia vinte e cinco de Julho, por ocasião da minha primeira comunhão, eu já estava alfabetizado, havia recebido notas excepcionais na escola e me tornara, além do segundo melhor aluno da turma (e da escola), o aluno preferido e queridinho da professora.
Eu diria que minha ansiedade também era devido ao fato que meus pais mandaram trazer, imaginem, de Ribeirão Preto, uma roupa especial: uma roupa marinheira branca, com gola quadrada, contornada com uma listra azul e bordada em vermelho, com uma belíssima âncora junto ao pescoço. Ganhei ainda, uma boina branca adornada com uma âncora azul, um par de sapatos em verniz preto e um par de meias brancas que me vinham até os joelhos. Como sou moreno claro, achei-me simplesmente lindo naquela melhor roupa que eu jamais tive, melhor ainda quando a minha avó Biluca resolveu pentear-me, - mais lindo me sentia! Para irmos à Cravinhos, naquela época, não havia nenhuma condução do tipo ônibus ou trem. Como a Fazenda em que eu morava tinha poucos recursos - nem tinha caminhão -, dependíamos de condução de uma fazenda vizinha, a “Estrela D`Oeste”, que tinha muitos caminhões e que à esta época começavam a ir buscar trabalhadores que moravam na cidade para ajudar na colheita do café; eram os precursores dos bóias-frias modernos. Só que tinha um inconveniente: os chamados “caminhões da turma” saiam da fazenda vizinha, distante cinco quilômetros de minha casa, precisamente às quatro horas da manhã. Ficou estabelecido que iríamos em poucas pessoas: só eu e minha mãe; e iríamos na única alternativa possível, o “caminhão do leite”.
O caminhão do leite pertencia a uma companhia suíça, e percorria as fazendas recolhendo os latões de leite da ordenha da manhã. Havia um outro caminhão, que passava ao entardecer para recolher os latões de leite da ordenha da tarde. Na carroçaria desses caminhões, a metade era reservada para os latões de leite, vazios e higienizados, os quais vinham da usina de leite. Nos latões, um número gravado correspondia a esta ou aquela fazenda. Os latões vazios, portanto eram deixados no lugar (pontos de recolha e entrega) de onde recolhiam os latões contendo leite, de modo que os fazendeiros mandavam um latão com leite e já recebiam outro vazio, para ser usado no dia seguinte. Dentro desses latões vazios vinham cartões da usina de leite, mencionando o número do fazendeiro, a quantidade de leite enviada, além de mencionar se o leite fora considerado em termos de qualidade, bom ou inferior. Pois bem, a outra metade da carroçaria do caminhão de leite era dotada de várias tábuas de pinho, transversais à carroçaria e afixadas nas laterais da carroçaria. Em cada tábua destas, iam “acomodadas” de cinco a seis pessoas, além de suas malas, embornais, sacos e sacolas. Por preço módico, cobrado pelo motorista do caminhão do leite, transportava até vinte pessoas por dia, pessoas as quais faziam percurso bastante peculiar e bucólico: paravam num determinado ponto da fazenda, apanhava os passageiros, se houvessem, recolhia os latões de leite, deixava os latões vazios, ato contínuo, saía dessa fazenda ia até a seguinte do roteiro, e assim por diante, resumindo, para fazer o percurso até a cidade, de vinte e cinco quilômetros, o caminhão demorava de três a cinco horas! Como se pode prever, os passageiros estavam sujeitos a toda sorte de acontecimentos: expostos ao vento, chuva, poeira e etc.. Imaginem o meu estado ao chegar ao destino: meus lindos cabelos eram agora pasta disforme de coloração marrom, devido à exposição à poeira, meu lindo terninho azul marinho, todo amarfanhado e por ironia do destino, com uma mancha de vinte centímetros de diâmetro de um tom marrom-arroxeada. Ocorreu que o motorista do caminhão do leite não fechou corretamente o latão localizado logo atrás do meu banco e provavelmente em um dos buracos da estrada de terra, o baque fez com que o latão de leite borrifasse meu precioso terninho azul marinho sem que eu percebesse, com o leite fresco, generoso e gordo da fazenda; logicamente a poeira da estrada fez o resto. Ao chegar ao nosso destino, eu estava desanimado da vida, sujo, cansado e além do mais já passava das duas da tarde.
- Não se preocupe, disse a minha mãe. Você vai fazer a sua primeira comunhão em outra fazenda vizinha no dia treze de janeiro! Só então eu sorri, imaginando-me novamente com aquela roupa linda, em meio aos amiguinhos e ao pessoal das fazendas vizinhas.
Fiquei quieto por uns instantes e dei uma mordida no meu sanduíche de mortadela e bebi um gole do Guaraná Caçula. Afinal tive um dia especial.
P.S.: A FOTO (CAPUT) FOI FEITA EM JANEIRO DE 1953; O EVENTO RELATADO ACONTECEU EM DEZEMBRO DE 1952. UMA CURIOSIDADE: PARA FAZER ESSA FOTO, CAMINHAMOS, A PÉ, QUASE OITO QUILÔMETROS, DA FAZENDA ONDE MORÁVAMOS ATÉ O SÍTIO DOS IMIGRANTES JAPONESES; ELES ERAM OS ÚNICOS, EM TODA A REGIÃO, QUE POSSUÍAM MÁQUINA FOTOGRÁFICA. SE ELES NÃO ESTIVESSEM POR LÁ A ÉPOCA, JAMAIS TERIA UMA FOTO DA MINHA PRIMEIRA COMUNHÃO. DO TÚNEL DO TEMPO, HÁ 67 ANOS!
Antônio Carlos Affonso dos Santos – ACAS. É natural de Cravinhos-SP. É Físico, poeta e contista. Tem textos publicados em 8 livros, sendo 4 “solos e entre eles, o Pequeno Dicionário de Caipirês e o livro infantil “A Sementinha” além de quatro outros publicados em antologias junto a outros escritores.
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