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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira..
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

sábado, 23 de julho de 2022

O MENINO SCUDINHO

 Era de prever uma coisa destas, pelo menos cá no Ocidente. Cá, já estamos habituados a que, de quando em quando, uma qualquer figura que, ao atingir certa notoriedade — no futebol, nas letras, na política, na guerra, seja no que for —, empreste o seu nome a um bom número de bebés nascidos durante a vigência dessa notoriedade.  Victor Hugo, o tonitruante patriarca das letras francesas, apadrinhou milhares de Victor Hugos por toda a França, e até em Portugal. Adolfo Hitler foi o padrinho espiritual de muito Adolfo nascido aí pelos anos 30. Na Faculdade, tive um colega que se chamava nada menos que Bakunine Gorki Gomes da Silva, óbvia homenagem ao anarquismo e ao bolchevismo, na pessoa de dois dos seus mais conspícuos mentores e luminares. O pai (ou o padrinho) do meu colega Bakunine Gorki devia ser um revolucionário e pêras. 
 Assim sendo, não me surpreende nada ouvir, numa entrevista na televisão, um palestiniano anónimo proclamar que o seu próximo filho se chamará Saddam. Saddam Hussein corporizou, bem ou mal, queiramos ou não, a esperança dum povo desalojado de reaver a sua pátria. Esse povo paga-lhe, baptizando os filhos com o seu nome. Está em gestação, segundo todas as probabilidades, uma vaga de Saddams nas actuais barrigas árabes.
 Menos previsível — mas o que sei eu dos árabes? — era que alguém quisesse pôr ao filho o nome de Scud. Scud é, como se sabe, o míssil que até agora tem, quando o rei faz anos, sido disparado por Saddam Hussein contra Israel e a Arábia Saudita. Ainda se o míssil cumprisse a sua missão satisfatoriamente, vá lá. Mas não: aquela bisarma ronceira e errática, quando não cai pura e simplesmente no deserto, tem sido metodicamente interceptada pelo seu rival Patriot e, se alguns estragos causa, não é propriamente pela deflagração da ogiva, mas com os estilhaços da sua própria destruição. É algo estranho pois que um jordano qualquer pretendesse pôr o nome de Scud ao seu rebento — coisa que parece lhe foi denegada, e com toda a razão. Porque soaria quase como uma provocação, em face da ineficácia dos Scuds, o brado da mãe, sobrepondo-se ao rumor do acampamento, ao cair das tardes do deserto, a gritar o equivalente a isto:  
− Ó Scudiiiinho!  Anda jantar!
 Já entenderia melhor que um americano baptizasse o seu filhote com o nome de Patriot. Que diabo, os Patriot têm excelentemente dado conta do recado, mereciam uma homenagem desta polpa. Patriot Smith — que belo chamadoiro para um pequeno ianque! E não sei se não haverá já uns quantos nascituros a quem o nome está prometido.
 Nós, portugueses, que nesta guerra não metemos a colher, é mais que certo que fiquemos indiferentes a ela. Onomasticamente, digo. Os nossos herdeiros, nascidos e nascituros durante a crise, continuarão a chamar-se Brunos e Tiagos, Cátias e Andréias, todos esses nomes finos, porque hoje em dia é uma vergonha, quase um escândalo, pôr Manuel a um filho e Maria a uma filha. Que querem? O novo-riquismo forçou a sua entrada nas conservatórias do Registo Civil e dita a sua lei. Com toda a carga de grotesco que todo o novo-riquismo sempre traz agarrada a si, como uma craca a casco de barcaça.  
 Ainda outro dia, no café... Eu conto: outro dia, no café, andava uma petiza dos seus três anitos, linda como os amores, a cirandar por entre as mesas, solta da vigilância dos pais, enquanto estes conversavam com os amigos. A certa altura, a miúda sumiu-se. Quando deu pela sua falta, a mamã levantou-se aflita e perguntou:
 − A Vanessa Soraia? Vocês não viram onde se meteu a Vanessa Soraia?
 A Vanessa Soraia acabou felizmente por aparecer. Mas juro que a aflição da senhora — que era naturalmente muita e muito respeitável — tinha o seu quê de caricato só por obra e graça do estafermo do nome da criança linda como os amores. E eu não pude deixar de pensar para com os meus botões: ‘Coitadinha da menina! Tão pequenina — e já se chama Vanessa Soraia!’

Apostila:
 Na altura ainda não se cantava o “Maria Albertina,/ como foste nessa/ de chamar Vanessa/ à tua menina”, com que em boa hora António Variações resolveu satirizar esses nomes abstrusos. Não sei — só um estudo aturado o poderá dizer — se a canção de Variações terá desmobilizado uns quantos pais e mães que tinham o nome de Vanessa na ideia para os seus rebentos femininos. E que pena que António Variações já não tenha tido tempo de escrever uma canção que podia ter por estribilho os versos “Maria Albertina,/ inda vai dar raia/ por chamares Soraia/ à tua menina”. Inspiração para isso e muito mais tinha o malogrado barbeiro-compositor-cantor.
 O Leitor sabe muito bem a origem dos nomes Vanessa e Soraia, mas não se perde nada em recordar. 
 Vanessa é o nome de um género de borboletas que foi transformado em nome próprio, primeiro no inglês (lembram-se da prodigiosa actriz Vanessa Redgrave) e daí passou ao português, e não sei se também a outras línguas. 
 Proveniência diferente tem o nome Soraia. Soraia era o nome da segunda mulher do xá Maomé Reza Pahlevi, do Irão, arredado do trono em 1979 pela insurreição dos aiatolas. Mas nessa altura já Soraia, uma mulher lindíssima, tinha sido repudiada, por ser estéril e não poder dar um herdeiro ao xá — que é a primeira obrigação das esposas reais. Foi substituída no tálamo por uma estudante de arquitectura, também lindíssima, chamada Farah Diba, que, essa sim, tinha um ventre fecundo e deu quatro filhos ao marido e à pátria.
 Como chalaça, não resisto a contar que, numa latada (cortejo académico em que os caloiros transportavam cartazes com piadas à actualidade) na Coimbra do meu tempo, apareceu um cartaz que dizia: “O Xá com a Soraia não fez nada. E com esta, Farah?” 
Fez, como fica dito acima.

(Repórter do Marão, 15 de Fevereiro de 1991)

A. M. Pires Cabral

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