Menti. Menti com quantos dentes tenho na boca, aqui mesmo, nesta coluna semanal, duas crónicas atrás. Não foi distracção, foi mentira deliberada, porque me convinha ao que vinha demonstrando. Nós, que temos sobre os ombros o pesado ónus de debitar semanalmente umas lérias sobre isto e mais aquilo, não temos remédio às vezes senão ser, digamos, menos exactos — eufemismo que o Leitor perdoará. Menti, pois. Mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa.
Disse eu, a propósito da serra do Alvão, isto textualmente: ‘Nenhuma poluição, nenhum ruído, tudo puro e bom como no primeiro dia.’ Compreenda-me a fraqueza, amigo Leitor. Eu estava a tentar pintar de cores paradisíacas a natureza, para melhor a contrastar com a demoníaca metrópole. Precisava pois de a apresentar com uma imagem de pureza original (como no primeiro dia, dizia eu), e o silêncio e a limpeza convinham singularmente a esta imagem. E aí é que eu menti.
Lá enquanto a silêncio, menos mal. Ouve-se, é verdade, roncar o tráfego na estrada que serpenteia na base da serra. Mas, em compensação, também se ouve a cotovia, no seu canto vibrante enquanto se sustenta altíssimo, adejando as asas no frio ar matinal. E uma coisa dá para a outra.
Mas limpeza, senhores! A tal nenhuma poluição de que eu falava! Aí é que a porca torce o rabo. Porque, se eu fosse um cronista isento e amigo da verdade, alheio às ‘mundanais afeições’ que já Fernão Lopes repudiava, o que devia dizer é que, logo ao abandonar a estrada que segue para a Samardã e ao meter no estradão que dá para o Fojo do Lobo, logo aí, à entrada, deparamos com uma sórdida lixeira. Entretanto, ainda antes de chegar a esse local, olhando dum alto para nascente vemos um cemitério de automóveis, uma dúzia de carcaças que enferrujam ali ao deus-dará. Deve ser o vazadouro de alguma oficina de reparações que, depois de comer a carne aos carros, entende impunemente que aquele é o lugar ideal para cuspir os ossos. O cemitério vai crescendo à medida que nova sucata, sem préstimo já para nada senão desfear a natureza, é para ali trazida. Impunemente, disse eu. Ninguém vai à mão do responsável. Tão-pouco lhe deve ir à mão a sua consciência, incómodo adereço do qual aliás já deve ter nascido privado ou de que já se terá desembaraçado há muito.
Infelizmente, estes não são — quem dera! — casos isolados. As lixeiras e os cemitérios de sucata invadem e cercam por todos os lados os nossos campos.
Outro dia fui dar uma volta pelo pinhal, a ver se os cogumelos já apontavam. Pois saiba o Leitor que apontava tudo, menos os ditos cogumelos: apontavam as carcaças de fogões e frigoríficos, velhas roupas em farrapos, destroços de móveis, detritos da sociedade de consumo, latas de spray e de cerveja, caixas disto e daquilo, plásticos de todo o tipo, entulhos vários, fraldas descartáveis de bebé e pensos higiénicos post usum, etc., etc. O mais inofensivo e aberrante de tudo, no fim de contas, ainda eram os preservativos, também eles post usum, naturalmente.
A certa altura deparei mesmo com uma quantidade prodigiosa de garrafas plásticas de óleo alimentar. Vazias, claro está. Raciocinei: algum mixordeiro, depois de consumar as mixordices no armazém, não se deu ao trabalho de queimar as garrafas. Depositou-as terna, cuidadosamente na floresta — onde ficarão como eterno monumento à desonestidade e à sordidez.
E que admira que a natureza esteja sendo transformada numa imensa lixeira, se as cidades vão pelo mesmo caminho? Tome-se a minha cidade para exemplo, relativamente benigno, aliás. Quantos embriões de futuros cemitérios de automóveis se não vêem aqui e ali? Quantas centenas de sacos plásticos a escorrer, feder e enojar se não vêem em todos os cantos, desde manhã até á noite, à espera que passe o carro do lixo, e constituindo uma tentação irresistível para os cães vadios que os esgadanham gulosamente, à cata de osso ou resto de cozinhado, e espalham pela rua os detritos não comestíveis?
Eu sei, eu sei: a culpa é, antes de tudo, do cidadão. O português traz esse aleijão congénito da imundície agarrado a si, como o pintainho traz a casca do ovo agarrada ao rabo, e tarde se há-de desembaraçar dele.
Não sei se a CEE terá sabão com que lave esta mascarra. Mas também não podemos cruzar os braços diante deste defeito de fabrico. Há que fazer alguma coisa, no plano pedagógico. Senhor Ministro da Educação: depressa essa disciplina da Educação Cívica cá para fora! Sacrifique uns pozinhos de Matemática, Inglês, Geografia, etc., se preciso for. Porque é muito útil e muito bom saber quantos são dois mais dois, saber o to be, was, been e onde nasce o Tejo, etc. e tal. Mas melhor e mais útil e mais urgente do que tudo isso é ensinar os portugueses a distinguir entre uma rua de cidade ou um pinhal e um caixote de lixo.
Disse eu, a propósito da serra do Alvão, isto textualmente: ‘Nenhuma poluição, nenhum ruído, tudo puro e bom como no primeiro dia.’ Compreenda-me a fraqueza, amigo Leitor. Eu estava a tentar pintar de cores paradisíacas a natureza, para melhor a contrastar com a demoníaca metrópole. Precisava pois de a apresentar com uma imagem de pureza original (como no primeiro dia, dizia eu), e o silêncio e a limpeza convinham singularmente a esta imagem. E aí é que eu menti.
Lá enquanto a silêncio, menos mal. Ouve-se, é verdade, roncar o tráfego na estrada que serpenteia na base da serra. Mas, em compensação, também se ouve a cotovia, no seu canto vibrante enquanto se sustenta altíssimo, adejando as asas no frio ar matinal. E uma coisa dá para a outra.
Mas limpeza, senhores! A tal nenhuma poluição de que eu falava! Aí é que a porca torce o rabo. Porque, se eu fosse um cronista isento e amigo da verdade, alheio às ‘mundanais afeições’ que já Fernão Lopes repudiava, o que devia dizer é que, logo ao abandonar a estrada que segue para a Samardã e ao meter no estradão que dá para o Fojo do Lobo, logo aí, à entrada, deparamos com uma sórdida lixeira. Entretanto, ainda antes de chegar a esse local, olhando dum alto para nascente vemos um cemitério de automóveis, uma dúzia de carcaças que enferrujam ali ao deus-dará. Deve ser o vazadouro de alguma oficina de reparações que, depois de comer a carne aos carros, entende impunemente que aquele é o lugar ideal para cuspir os ossos. O cemitério vai crescendo à medida que nova sucata, sem préstimo já para nada senão desfear a natureza, é para ali trazida. Impunemente, disse eu. Ninguém vai à mão do responsável. Tão-pouco lhe deve ir à mão a sua consciência, incómodo adereço do qual aliás já deve ter nascido privado ou de que já se terá desembaraçado há muito.
Infelizmente, estes não são — quem dera! — casos isolados. As lixeiras e os cemitérios de sucata invadem e cercam por todos os lados os nossos campos.
Outro dia fui dar uma volta pelo pinhal, a ver se os cogumelos já apontavam. Pois saiba o Leitor que apontava tudo, menos os ditos cogumelos: apontavam as carcaças de fogões e frigoríficos, velhas roupas em farrapos, destroços de móveis, detritos da sociedade de consumo, latas de spray e de cerveja, caixas disto e daquilo, plásticos de todo o tipo, entulhos vários, fraldas descartáveis de bebé e pensos higiénicos post usum, etc., etc. O mais inofensivo e aberrante de tudo, no fim de contas, ainda eram os preservativos, também eles post usum, naturalmente.
A certa altura deparei mesmo com uma quantidade prodigiosa de garrafas plásticas de óleo alimentar. Vazias, claro está. Raciocinei: algum mixordeiro, depois de consumar as mixordices no armazém, não se deu ao trabalho de queimar as garrafas. Depositou-as terna, cuidadosamente na floresta — onde ficarão como eterno monumento à desonestidade e à sordidez.
E que admira que a natureza esteja sendo transformada numa imensa lixeira, se as cidades vão pelo mesmo caminho? Tome-se a minha cidade para exemplo, relativamente benigno, aliás. Quantos embriões de futuros cemitérios de automóveis se não vêem aqui e ali? Quantas centenas de sacos plásticos a escorrer, feder e enojar se não vêem em todos os cantos, desde manhã até á noite, à espera que passe o carro do lixo, e constituindo uma tentação irresistível para os cães vadios que os esgadanham gulosamente, à cata de osso ou resto de cozinhado, e espalham pela rua os detritos não comestíveis?
Eu sei, eu sei: a culpa é, antes de tudo, do cidadão. O português traz esse aleijão congénito da imundície agarrado a si, como o pintainho traz a casca do ovo agarrada ao rabo, e tarde se há-de desembaraçar dele.
Não sei se a CEE terá sabão com que lave esta mascarra. Mas também não podemos cruzar os braços diante deste defeito de fabrico. Há que fazer alguma coisa, no plano pedagógico. Senhor Ministro da Educação: depressa essa disciplina da Educação Cívica cá para fora! Sacrifique uns pozinhos de Matemática, Inglês, Geografia, etc., se preciso for. Porque é muito útil e muito bom saber quantos são dois mais dois, saber o to be, was, been e onde nasce o Tejo, etc. e tal. Mas melhor e mais útil e mais urgente do que tudo isso é ensinar os portugueses a distinguir entre uma rua de cidade ou um pinhal e um caixote de lixo.
Repórter do Marão, 25 de Outubro de 1991
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