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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira..
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

sexta-feira, 21 de outubro de 2022

A morte da Andorinha

Por: Luís Abel Carvalho
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)

Um dia o Ismael ia com o seu inseparável amigo Domingos a caminho do sóto da filha do papagaio comprar petróleo. A Mãe mandara o Domingos comprar um litro de petróleo e comprariam também “cinc´testões “ de rebuçados dos ruins, que a madrinha lhe tinha dado. Quando iam a caminho do sóto ouviram uns gritos penetrantes, esganiçados e estridentes de mulher e um grande alvoroço para os lados do caminho do rio. Ismael reconheceu a voz da Mãe. Teve um mau pressentimento e correu desalvorado imediatamente para lá, sempre acompanhado pelo Domingos. Em frente ao velho casebre, onde tinham a vaca havia um grupo de pessoas cá fora, à porta, todos com ar pesaroso. Lá dentro estava a Mãe e as suas três irmãs e alguns homens, entre eles o Mariano, ajudante do veterinário, Dr. Venâncio D´Almeida. Perguntou a alguém o que se passava.
    - É a tua andorinha que´stá abocada a parir – responderam-lhe.
     Esgueirou-se por entre as saias e as pernas dos adultos e entrou para junto da Mãe e das irmãs. Viu a andorinha deitada de lado, com uma enorme barriga parecendo a abóboda celeste no mês de Agosto, em noite de lua cheia.
     - Bom... bou-le dar a última injecção de permanganato, mas no garanto nada. Talbez se salbe a cria – disse o Mariano com pouca convicção.
      Mariano espetou uma agulha enorme, do tamanho de um palmo, a meio do pescoço, mas a andorinha nem se mexeu, para desespero de todos, principalmente para Deolinda que abraçou os filhos a chorar. Andorinha espumou pela boca uma espuma branca e espessa, que mais parecia a espuma que Deolinda tirava da cozedura dos feijões com a espumadeira. Deolinda estava a ver ali esfumar-se o seu futuro e o dos seus. Daquele vitelo e daquela vaca dependia a sua sobrevivência e a da sua família. Após alguns minutos, sem que ninguém esperasse, a vaca deu um gemido longo, supranatural, transcendente, numa simbiose de espiritual e místico e pousou por completo a cabeça no chão de palha. Deolinda chorou amargamente, como se da morte de mais um filho se tratasse. Chorou profundamente como chorou a morte do filho Leonel. Sentou-se a seu lado e fez-lhe carícias na cabeça, entre os cornos. Aquela vaca era parte da sua vida e do sustento da família que se perdia. A infelicidade não está naquilo que não temos; está naquilo que perdemos. Entretanto Mariano tirou, resoluto, o casaco e arregaçou as mangas da camisa acima dos cotovelos.
    - Dende-me largueza – pediu. -  Bou tantar tirá-lo co as mãos.
   Alguém no grupo lamentou: “ É mesmo c´má baca do pobre, em bez de parir amobe”.
    Mariano meteu fundo a mão na vaca e pediu silêncio. Apalpou concentrado o interior do animal, com as mãos feitas radar.
    - Já ´stá aqui perto. Só tanho que le pôr as patas a jeito. Ó Cacilda – pediu à mulher – Bai num ´stante a casa e trai cá uma bacia d´auga morna e uns farrapos limpos. Bai, amaneia-te.
   Cacilda saiu a correr e Mariano voltou a meter a mão na vaca, fechando os olhos, à medida que ia apalpando concentrado. As mulheres rezavam o responso a Santo António:

   “ Se milagres desejais
Contra os males e o demónio
Recorrei a Santo António
E não falhareis jamais.
Pela sua intersecção
Foge a peste, o erro e a morte
Quem é fraco fica forte
Mesmo o enfermo fica são
“.......................................”

As crianças até então de olhos arregalados e tendo a noção da gravidade, deram as mãos e fizeram uma roda. Fecharam os olhos e cada uma rezou à sua maneira. Apelavam ao Divino, ao Sobrenatural e ao Desconhecido uma intervenção milagrosa.
    De repente viram assomar uns pequenos cascos castanhos na extremidade de umas patas cinzentas e finas. E da escuridão, um pouco de luz...
   - Ó Graças ó Altíssimo. Salba-m´ó menos o bitelinho – suplicou Deolinda de mãos erguidas ao Céu.
     Em poucos minutos estava cá fora um lindo bezerro – fochinho chapado da mãe, com uma pequena mancha branca na testa e nos quartos.
     - É ´scupido e ´sgarrado à mãe – notou Mariano satisfeito, num sorriso largo.
      Todos bateram palmas de alegria e deram Aleluias ao Senhor Bendito. As crianças pulavam e cantavam de júbilo enquanto Mariano limpava com água morna os restos da placenta. Com a ajuda de outros homens levaram-no para junto das tetas da mãe, que continuava deitada de lado, sem esperança de vida. Em vão! O vitelo não mamava e rejeitava terminantemente as tetas da mãe. Alguém trouxe uma mamadeira cheia de leite e o fim foi o mesmo. A inquietação e o desânimo tomou novamente conta daquela gente solidária e impotente.
     - Se num mamar, morre – diziam uns para os outros.
     - Num morre nada – disse o ti Casimiro. – Ó Cacilda! Arranja-me lá um tolde e bamos lubá-lo prá minha loje.
     Ao tio Casimiro tinha-lhe nascido uma vitelinha havia cinco dias. Quatro homens atravessaram a aldeia com o vitelo no toldo. Percorreram a povoação em passo acelerado e em esforço, pois ainda pesava cerca de três arrobas. Todos se uniram em torno da dor dos seus. Cada membro da comunidade era parte integrante de um todo. A diferença entre a pobreza e a riqueza é que a pobreza une, ao passo que a riqueza cria guerras, conflitos e desune. (É ver inúmeros exemplos de partilhas das heranças!). Na pobreza, não há necessidade de lutar para ser mais pobre do que o outro e na riqueza todos lutam para serem mais ricos do que os outros! Quando não há nada para dividir, o quociente é zero.
     Deolinda ficou agarrada à vaca na companhia dos seus quatro filhos a chorar a dor e as dificuldades futuras que pressentia. Os filhos não a largavam e choravam todos agarrados a ela. Se ao menos estivesse ali o homem..., mas Caetano andava à jeira para os “ ratchões”, que ficavam muito longe. Andorinha era uma vaca fabulosa a dar leite; chegou a dar três remeias de leite, à noite!
     Quando os homens chegaram à loja do ti Casimiro aproximaram o vitelo às mamas da vaca e, para desalento e angústia de todos, não mamou. Abriam-lhe a boca, metiam-lhe a teta dentro e não sugava. Mariano teve uma ideia e saiu apressadamente com um “ já banho”.
      Foi à loja da Deolinda e ordenhou para um caneco azul de esmalte cerca de meio litro de leite da vaca moribunda. Do focinho e das narinas tirou com os dedos um pouco de baba e misturou-a no leite. Mariano sabia como ninguém a importância do colostro naquele momento crítico para o sistema imunitário e para a capacidade de criar anti-corpos do bezerro. Quando chegou novamente à loja, enfiou um funil na boca do bezerro e obrigou-o a beber o colostro, mas pouco bebeu. Depois esfregou o leite misturado com a baba no amojo e nas tetas da vaca. Chegou o vitelo e...milagre!! A Natureza a funcionar na sua plenitude. Segundos depois já dava estucadas firmes e fortes, sugando o leite das mamas, como um bebé esfomeado. Um alívio e uma alegria contagiou todos os presentes, que novamente bateram palmas e agradeceram a Deus. A dor e a apreensão deu novamente lugar à alegria e à esperança.
         - Este já num morre – disse o Domingos, numa explosão de alegria e saiu dali a correr.
         - Ti Dolinda! Ti Dolinda! O bitelinho já num morre. Já ´stá a mamar! – Disse com alguma dificuldade, depois de uma corrida extenuante.
       Em nome da amizade incondicional ao Ismael, Domingos tinha assistido a tudo de olhos abertos e de coração apertado, na curiosidade infantil própria de uma criança da sua idade.
    - Ó Virgem Santíssima! Grande é o Senhor e profundos os seus desígnios. – Balbuciou Deolinda de olhos postos no Céu.
      - Podemos ir ber o bitelinho? – Perguntou Ismael cheio de alegria.
      - Inde, meus filhos. Óspois inde rezar a Sant´ António.
     Saíram todos, menos a Margarida, que não largava as saias da Mãe. Deolinda ficou sentada no chão a ver desaparecer a vida dos olhos da andorinha. O estertor da morte tinha chegado. A tourina encheu os pulmões de ar pelas narinas dilatadas, deu um suspiro profundo e todo o seu corpo vibrou pela última vez. Espumou ainda mais pela boca aberta à morte, uma baba espessa e branca, que mais parecia a espuma que Deolinda tirava da cozedura dos feijões com a “ `scumadeira “. Andorinha cuspiu um grito trágico, temerário mas digno, audível nas trevas do barraco. A pouca energia que lhe restava diluiu-se no vazio. Pelo contrário, Deolinda engoliu um grito mudo, surdo e sem chão onde cair. Deolinda falava com ela, afagava-lhe a testa e recebia daquela alma toda a angústia e, ao mesmo tempo, recebia daquele olhar de despedida, uma força extra. Andorinha esbugalhou os olhos líquidos de alívio e de adeus e cravou, na Deolinda, o último olhar inerte, vítreo, petrificado, sem luz e morreu, como morre a chama de uma candeia por falta de azeite. Morreu serenamente - tal como era em vida – esticando o pescoço e as patas traseiras. A campainha que trazia ao pescoço e que fora oferecida ao Ismael e à Margarida pelo ti Casimiro, tilintou pela última vez. O som daquela campainha que outrora era um símbolo de alegria, de música primaveril e celestial, era agora um som fúnebre, desolador e misterioso. O som da campainha calou-se com o fim do correr do sangue nas veias da andorinha. Deolinda soltou um grito e despediu-se daquela companheira de anos, durante os quais fora a sobrevivência da família e na qual depositava toda a esperança para continuar sendo. Quando Mariano voltou à loja já nada podia fazer. O destino estava consumado de acordo com a natureza e a fragilidade da vida.
   - Prontos. Agora no adianta tchorar. É albantar a cabeça e seguir o caminho. Agora já num se pode fazer nada. Prá frente, qu´atrás bem gente – animou-a o Mariano. – A desgraça bem sem ser tchamada. Temos que seguir abante. Desgraça é termos nascido pobres.
     - Pois, eu sei. À desgraça ninguém fuge – concordou. – Ninguém fuge ó destino que Deus le deu.
      - Quem nasce pobre, pobre há-de morrer. Quem nasceu pra periquito, nunca há-de tchigar a condor. É a sorte que nos calhou; no há nada a fazer. É começar de nobo, porque quem faiz um, faiz dois. – Animou-a com a frieza da verdade. - Além do mais, antes perder um do que dois.
     A vida morreu ali, mas ali renasceu a esperança. O fim de uma vida é o alimento para a continuidade de outra vida? Quantas vidas se alimentam dos cadáveres de outras vidas que já não são? Na vida de um ser vale mais o volátil, o inatingível e o misterioso do que o concreto, a quem conhecemos bem as feições. O desconhecido é o impulso que nos lança para a descoberta, para a vertigem. Por mais seca que seja a vida, há sempre uma maneira ardilosa de a suplantar. Agarramo-nos ao passado que não é mais que o presente projectado no futuro. Sem passado não há raízes para lançar ao solo em que nos segurarmos quando estamos prestes a resvalar para o abismo. E as memórias são sempre uma saída de emergência.
     Deolinda assoou o nariz à ponta do avental e saiu abraçada à filha. A tarde morria também em tons descoloridos e desbotados de lilás e laranja suave.

Fontes de Carvalho

Excerto adaptado do romance " Por entre a solidão das fragas", a editar.

Fontes de Carvalho
, pseudónimo de Luís Abel Carvalho, nasceu no Larinho, uma aldeia transmontana do Concelho de Torre de Moncorvo, Distrito de Bragança. É o filho do meio de três irmãos.
Estudou em Moncorvo, Bragança e no Porto, onde se formou em Engenharia Geotécnia. É casado e Pai de três filhos.
Viveu no Brasil, onde passou por momentos dolorosos e de terror, a nível económico e psicológico. Chegou a viver das vendas de artesanato nas ruas e a dormir debaixo de Viadutos.
No ano de 1980 e 1981 foi Professor de Matemática em Angola, na Província de Kwanza Sul, em Wuaku-Kungo. Aí aprendeu a desmistificar certos mitos e viveu uma realidade muito diferente da propagandeada.
Em Portugal deu aulas de Matemática em diversas cidades, nomeadamente em São Pedro da Cova, Ponte de Lima, Cascais (na Escola de Alcabideche, onde deu aulas aos presos da cadeia do Linhó), Alcácer do Sal, Escola Francisco Arruda e Luís de Gusmão, em Lisboa. Frequentou durante quatro anos, como trabalhador-estudante, o curso de Engenharia Rural, no Instituto Superior de Agronomia.
Em 1995 fundou a empresa Bioprimática – Reciclagem de Consumíveis de Informática, onde trabalha até hoje como sócio-gerente.

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