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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

quarta-feira, 5 de outubro de 2022

O PREÇO DE UMA BOA REPUTAÇÃO

 Por: Luís Abel Carvalho
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)

No Sábado da semana anterior ao casamento – dia de confissões - Custódio chegou cabisbaixo à igreja para se confessar.  Aliás, sem confissão, o padre Antero não casava ninguém. Padre Antero era daqueles padres que trocava – sem qualquer remorso – o Paraíso Celestial pelo Paraíso Terreal. Isto quer dizer que trocava as Celestiais ofertas divinas pelo prazer carnal. Mulher que vacilasse, padre Antero garantia. Tinha a alcunha de “ O Matchutcho” por ser manhoso como a raposa e insinuante como a enguia. Possuía um porte austero que impunha respeito, embora fosse mediano de altura.  No entanto, o semblante de zangado e a sua poderosíssima voz de barítono dramático, associados à sua condição de salvador de almas, incutia receio a qualquer filho do Criador; até mais do que respeito: medo! O seu olhar duro, de abutre preto aliado à crispação dos lábios, fazia tremer todo o temente a Deus. Tinha as sobrancelhas e as pestanas pretas e espessas. Segundo as alcoviteiras da aldeia, era cliente assíduo – embora disfarçado – da viúva Gracinda das eiras e tinha um filho numa aldeia atrás da serra.  Entrava com um capuz na cabeça à hora combinada durante a confissão. Então para a borga, onde metesse comer e beber, lá estava o padre Antero.( Não havia festa nem festança onde não fosse a Constança) . Não virava a cara à luta a nenhum bom pedaço de  gula ou de pecado venial ou mortal. Quando morria uma criança - coisa que acontecia frequentemente -, tanto ênfase punha nas condolências aos Pais pela perda, como nos parabéns pelo anjinho que subira aos céus e estaria junto de Deus Pai à espera deles!
        Não se sabe bem porquê, mas Custódio e o padre Antero não eram muito chegados. Havia uma espécie de ódio de estimação entre eles. Isto talvez, porque se tivesse constado – sem a mínima prova credível, diga-se em abono da verdade -,  que o padre Antero andou a rondar as saias da Lucinda. (Qual o  homem casado que não andou?!). Nunca Custódio convidou o padre para nenhuma das muitas patuscadas que fazia em sua casa. Logo desde o início que não houve “química” entre os dois. Talvez a explicação esteja no facto de Custódio sentir ameaçada a sua preponderância que, aliás, nunca Custódio teve sobre os demais. Padre Antero sim, desde  a sua chegada começou a traçar nítida e vincadamente o seu espaço. Nisso era um homem determinado , sem nhãs nem meios nhãs – justiça seja feita. Era um homem sem meias tintas. De olhos de um preto retinto, raiados de sangue, olhava sempre o seu interlocutor de frente, com o queixo um pouco retraído e de maçãs do rosto salientes e quase sempre coradas.   
        Quando chegou a sua vez,  Custódio ajoelhou-se, fez o sinal da cruz e disse:
      - Boas tardes, Sôr padre. Banho-me a confessar.
      - Pois não, meu filho. E quais são os teus pecados?
     Através dos orifícios do confessionário, Custódio só via os olhos avermelhados de abutre preto do padre. Este, por sua vez, via um pouco mais, pois o confessado não estava no escuro. A luz coada e tonalizada pelos vitrais das janelas, derramava-se transparente , diáfana e vítrea e deixava ver o confessado.  O padre, com os seus olhos de abutre preto perscrutava o rosto macilento e bexigoso do Custódio. Padre Antero tinha-o atravessado na garganta pois, além de nunca o ter convidado para as muitas farras que Custódio organizava e, além de ser das pessoas mais ricas da aldeia, era dos que menos dava para a igreja. Nas festas, na Visita Pascal, no beijar do Menino, na colecta das missas era um autêntico sovina: apenas dava  tostões. Padre Antero provavelmente gostava mais de uma farra bem bebida do que de Cristo Salvador; vivia, acima de tudo, para o estômago! Entre o cálice e a hóstia... ia um mundo inteiro de patifarias.
         Custódio lá confessou então uns pecadilhos – os mais leves e os que o não punham de mal com Deus  como, aliás, todos nós . Limitou-se a expor os veniais, porque os mortais, não é qualquer mortal que tem coragem para tal – como a Igreja bem saberá. Arrojou-se, depois, num pedido no mínimo arriscado e insólito.
    -  Ó Sôr Padre! Era capaz de me fazer um grande fabor?
    - Diz lá, meu filho. Qual é?
    - É um fabor que le pago bem.
   - Se estiver ao meu alcance, faço-o com todo o gosto.
    - É o Sôr padre que me bai casar, no é?
    - Sou, pois! A não ser que queiras outro sacerdote.
    - Não, não. Bomecê serbe bem. O qu´eu qu´ria é que na altura da palestra o Sôr padre dissesse umas palabrinhas bonitas em relação à minha pessoa.
  - Posso não dizer mal de ti, mas por que é que hei-de dizer bem? Queres que te transforme num Santo?
   - Num Santo tamãe não, mas que num me faça em ninhum demónio. Que diga que sou bô rapaz, temente a Deus e cumpridor das minhas obrigações com Cristo. Dába-le dez contos de réis pra mandar arranjar o Nosso Senhor dos Passos que, coitadinho , ´stá tcheio de caruntcho e quase ´scabacado.
     Uma luz celestial brilhou nos olhos de abutre preto do padre Antero.
   - Lá isso é verdade, meu filho. Isso é uma realidade que até me tira o sono. E tu estás disposto a fazer isso? 
   - ´Stou sim, Sôr padre. À minha salbação.
   - Pois muito bem, mas olha meu filho que eu já em tempos falei a um restaurador profissional de Bragança  e pediu-me doze contos, já nessa altura! Estás disposto a chegar aos quinze contos?
   - Quinze contos é munto dinheiro, Sôr padre!!
   - Concordo que sim, mas o que me pedes também não é simples. Deus irá perdoar-me porque sabe que só faço isso para bem da nossa Santa Igreja.
        Custódio franziu o sobrolho, torceu os lábios e decidiu-se:
    - Pois... assim c´má sim, atão ´stamos acertados.
    - Está bem, então. Logo vens cá e trazes-me os quinze contos.
    - Atão ´stamos entendidos. Lá por as cinco banho cá.
   - Mas olha, meu filho. Não podes dizer isto a ninguém. Isto é segredo de confissão, ouviste?
   - Pode ficar descansado, ca minha boca é um túmulo.
   - Tu vê lá. É segredo de confessionário. E não o podes revelar a ninguém que seja. A ninguém e nunca,  ouviste?
  - Nisso pode o Sôr padre ficar descansado. É um segredo que lubarei comigo prá coba.
     Efectivamente, por volta das cinco horas Custódio foi ter com o padre Antero e deu-lhe quinze notas de conto dobradas e presas por um baraço de apertar os sacos da amêndoa, que imediatamente as meteu no bolso interior da batina preta.  Custódio saiu da sacristia convicto de que tinha pago todos os pecados passados e os pretéritos e de que,  doravante, viveria para sempre nas graças de Deus. ( Também, quem manda a igreja prometer o que não há  e enganar os incautos e os simples?!) . “  Ao rico não devas e ao pobre não prometas “ . Na sua habitual e secular submissão, o lavrador e o camponês despejavam a tulha, a salgadeira e o galinheiro para comprar saúde e um lugar no Céu. 
    Depois do Custódio ter ido embora, o padre  fechou a porta da sacristia e tirou as notas do bolso. Pôs-se a apreciá-las contra a luz policromática, filtrada pelos vitrais da janela. Admirava entusiasmado a bela figura da jovem Rainha D. Maria II, com uma blusa em tons de azul, com decote redondo e o cabelo apanhado em “ carrapito “.  Mais admirava ainda  o “ um e os três zeros “ escritos nos quatro cantos de cada nota. Beijou as notas e logo se benzeu: “ Perdoai-me Senhor por esta blasfémia. É tudo pela Vossa Santa Madre Igreja”.
    Padre Antero tinha três inimigos na vida:  o mundo, o diabo e a carne. Só não conseguia vencer este último.

Fontes de Carvalho

(Excerto do romance “ Por entre a solidão das fragas “, a publicar)

Fontes de Carvalho
, pseudónimo de Luís Abel Carvalho, nasceu no Larinho, uma aldeia transmontana do Concelho de Torre de Moncorvo, Distrito de Bragança. É o filho do meio de três irmãos.
Estudou em Moncorvo, Bragança e no Porto, onde se formou em Engenharia Geotécnia. É casado e Pai de três filhos.
Viveu no Brasil, onde passou por momentos dolorosos e de terror, a nível económico e psicológico. Chegou a viver das vendas de artesanato nas ruas e a dormir debaixo de Viadutos.
No ano de 1980 e 1981 foi Professor de Matemática em Angola, na Província de Kwanza Sul, em Wuaku-Kungo. Aí aprendeu a desmistificar certos mitos e viveu uma realidade muito diferente da propagandeada.
Em Portugal deu aulas de Matemática em diversas cidades, nomeadamente em São Pedro da Cova, Ponte de Lima, Cascais (na Escola de Alcabideche, onde deu aulas aos presos da cadeia do Linhó), Alcácer do Sal, Escola Francisco Arruda e Luís de Gusmão, em Lisboa. Frequentou durante quatro anos, como trabalhador-estudante, o curso de Engenharia Rural, no Instituto Superior de Agronomia.
Em 1995 fundou a empresa Bioprimática – Reciclagem de Consumíveis de Informática, onde trabalha até hoje como sócio-gerente.

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