sábado, 25 de fevereiro de 2023

No dia 15 de Setembro de 1946, o semanário “Mensageiro de Bragança” era dedicado a Macedo de Cavaleiros

 A minha arenga de hoje vai dedicada aos meus Amigos FB naturais ou oriundos de Macedo de Cavaleiros e aos que, não sendo nenhuma dessas coisas, dedicam ainda assim alguma simpatia à minha terra. Isto não quer dizer que os restantes Amigos a quem o nome de Macedo de Cavaleiros não diz nada, ou diz muito pouco, não possam achar algum sainete naquilo que vou escrever.
No dia 15 de Setembro de 1946, o semanário “Mensageiro de Bragança” era dedicado a Macedo de Cavaleiros. Trazia os habituais textos dos figurões políticos da época, pequenas reportagens sobre as potencialidades da terra e — para mim mais importante — uma página inteira de publicidade comercial. 
Os meus Amigos FB não fazem ideia da sedução que esses anúncios exercem sobre mim. Posso não ler os encómios do jornalista nem os oxalás dos políticos. Mas a página dos anúncios, essa leio-a de cabo a rabo. Porque nela é que encontro o verdadeiro pulsar de Macedo de Cavaleiros em 1946. É como se percorresse ainda uma vez aquelas ruas que calcorreei mil vezes e onde brinquei outras tantas. Ou como se entrasse uma última vez naqueles sotos — em Macedo de Cavaleiros chamava-se soto (com o tónico bem aberto) a um estabelecimento comercial, antes de se tornar moda chamar-lhe loja —, a fazer um recado de Pai ou Mãe, ou a gastar alguma moeda de cinco coroas que adregasse avezar.
Mostro-lhes uma fracção dessa página, para que evoquem comigo a pacata vila de há aproximadamente 75 anos. E, se algum desses anúncios me for particularmente grato, direi sobre ela duas chalaças.
No canto superior esquerdo, é publicitada a Alfaiataria Roque, do Sr. Jorge Augusto Mascarenhas, que me talhou alguns dos fatos que era de regra estrear no dia de Páscoa. Era irmão do Sr. Manuel Joaquim Mascarenhas, talvez o maior comerciante da vila, cujo soto também vem publicitado um pouco mais abaixo. Era para todos o Sr. Manuel Roque. Os dois irmãos estavam estabelecidos perto um do outro, na Rua Pereira Charula, defronte da famosa Pensão Prazeres e partilhavam o mesmo telefone. Era o n.º 25, coisa que muito nos admira hoje que os telefones têm no mínimo nove algarismos. 
 O Sr. Manuel Mascarenhas e sua Esposa Dona Maria Aurélia, eram os pais de três filhos: José Adriano, já falecido, Manuel Alberto e Fernando Jorge. Este último, o mais novo, descobriu aos 64 anos uma serôdia vocação de romancista. Começou em 2008 com um extenso romance que tem o bonito e sugestivo título de “O sabor da marmelada fresca”, cuja apresentação tive o gosto de fazer, e leva já seis romances publicados, por sinal em português escorreito e em estilo fluente e envolvente ao mesmo tempo.
O Sr. José Joaquim da Fonseca tinha a sua loja de latoeiro muito perto da farmácia do meu Pai. Era uma figura muito curiosa: era gago e surdo. Mas estes ‘handicaps’ não o impediam de ser criatura folgazona, que todos os anos, no dia 1 de Abril, pregava sempre a mesma peça. Que era como se segue: soldava verticalmente um prego numa moeda de um escudo e espetava o prego no chão, em lugar bem visível. Ficava, pois, a moeda bem à vista, mas também bem presa. Quando algum transeunte desprecatado via a moeda, esforçava-se por apanhá-la, porque um escudo na altura era dinheiro. Claro que não ea possível colher a moeda, porque o prego a mantinha inamovível. Após algumas tentativas infrutíferas, o Sr. Fonseca (chamávamos-lhe Zé Gago), que da porta da latoaria observava os esforços da criatura, gritava-lhe ‘Larga!’ 
A vizinhança ria-se a bom rir. A vóitima compreendia então que tinha sido lograda e das uma: ou engrossava o coro de risos com o seu próprio riso, ou afinava, seguindo o seu caminho a mascar malo-hajas ao latoeiro e a dizer cobras e lagartos da mãe do latoeiro. Assisti talvez um dúzia de vezes a este “poisson d’Avril’, e ainda hoje abro um sorriso só de o recordar. Numa terra parada como era Macedo de Cavaleiros na altura, qualquer coisa que quebrasse a pacatez habitual era bem-vinda. 
Termino já este evocar de um passado que tem mais de setenta anos. Mas não o farei sem um comentário a outro estabelecimento que consta da página: a Pensão Restaurante Corina. Corina era a proprietária. Era casada com o Sr. Eduardo Gonçalves, um dos diversos indivíduos com a alcunha de ‘Batato’ que havia na vila. Tinham um filho único, chamado José. Mas para nós, crianças da mesma idade, era o Zé Batato. Era o meu melhor amigo. Brincávamos juntos na varanda da pensão. Mas um dia, teria o Zé Batato os seus oito anos, foi-lhe diagnosticada uma doença tremenda: o mal de Pott. Sem medicação eficaz, o Zé foi definhando, degradando-se, até que a morte o levou após dois ou três anos de sofrimento  intenso.
Às vezes ainda penso nele, que levou consigo, na sua urnazinha de criança, o melhor da minha infância.

A. M. Pires Cabral

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