Podia pensar-se que este modo de ver a noite é coisa de hoje, destes tempos em que um erotismo assanhado e desinibido é por assim dizer uma das bandeiras que mais alto drapejam nos mastros do Zeitgeist. Mas não. Vejamos, ao desenfado, alguns exemplos do passado que me acodem ao teclado do computador.
Desde logo, o do notório connoisseur Públio Ovídio Nasão. Na Arte de Amar, um manual de sensualidade para uso deles e também delas, espécie de versão light do Kamasutra, menos cru do que este (mas ainda assim apimentadinho q. b.) e adaptado às margens do Tibre, ensina (na tradução de Carlos Ascenso André): «De noite, ficam disfarçados os defeitos e desculpam-se todos os vícios, / essa é a hora que torna formosa qualquer uma.» Verdade seja dita, contudo, que Ovídio parece perfilhar uma concepção diurna do amor, em que o sentido da visão, contemplando as belezas do corpo e suas manobras, comunga do festim geral dos sentidos.
Também o puritano John Milton — esse mesmo que nos deixou o severo Paraíso Perdido —, numa mascarada com o título Comus, faz a personagem epónima perguntar à virtuosa dama que tenta seduzir: “What hath night to do with sleep?” («Que tem a noite a ver com o sono?»), subentendendo-se que a noite foi feita para coisas mais urgentes ou mais interessantes do que dormir. Para Comus, o libertino, a noite é o domínio por excelência do amor, subalternizando o sono em detrimento das capitosas manobras de alcova. Equivale esta pergunta, mais coisa menos coisa, à citação supra de Aquilino Ribeiro.
Bocage, talvez o mais erotizado (pelo menos da fama não se livra) dos nossos poetas anteriores ao século XX, começa um soneto com a quadra:
Desde logo, o do notório connoisseur Públio Ovídio Nasão. Na Arte de Amar, um manual de sensualidade para uso deles e também delas, espécie de versão light do Kamasutra, menos cru do que este (mas ainda assim apimentadinho q. b.) e adaptado às margens do Tibre, ensina (na tradução de Carlos Ascenso André): «De noite, ficam disfarçados os defeitos e desculpam-se todos os vícios, / essa é a hora que torna formosa qualquer uma.» Verdade seja dita, contudo, que Ovídio parece perfilhar uma concepção diurna do amor, em que o sentido da visão, contemplando as belezas do corpo e suas manobras, comunga do festim geral dos sentidos.
Também o puritano John Milton — esse mesmo que nos deixou o severo Paraíso Perdido —, numa mascarada com o título Comus, faz a personagem epónima perguntar à virtuosa dama que tenta seduzir: “What hath night to do with sleep?” («Que tem a noite a ver com o sono?»), subentendendo-se que a noite foi feita para coisas mais urgentes ou mais interessantes do que dormir. Para Comus, o libertino, a noite é o domínio por excelência do amor, subalternizando o sono em detrimento das capitosas manobras de alcova. Equivale esta pergunta, mais coisa menos coisa, à citação supra de Aquilino Ribeiro.
Bocage, talvez o mais erotizado (pelo menos da fama não se livra) dos nossos poetas anteriores ao século XX, começa um soneto com a quadra:
Noite, amiga de Amor, calada, escura,
Eia! Engrossa os teus véus, os teus horrores,
Enquanto vou gozar de mil favores
Sobre o doce teatro da ternura.
O que pede o poeta à noite, «amiga de Amor»? Que seja propícia e encubra com a sua escuridão uma surtida amorosa, em que espera «gozar de mil favores». Isto é: que seja sua alcoviteira. O «doce teatro da ternura» é, com toda a probabilidade, uma outra maneira de dizer cama.
Lembro-me ainda de ter lido em Keats, poeta romântico inglês em cujos versos ronda muitas vezes uma certa sensualidade difusa, o seguinte passo: “[...] upon St. Agnes eve,/ Young virgins might have visions of delight,/ And soft adorings from their loves receive/ Upon the honey’d middle of the night [...]. Aqui, anda o cerne da noite associado ao mel... Quod erat demonstrandum.
Não vou respigar mais exemplos literários da vocação erógena da noite. Era chover no molhado. Faça o Leitor como eu fiz: abra, se quiser, um dicionário de citações no artigo «noite», e encontrará provavelmente dezenas.
(Continua)
III
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