Mas não habituou, nem o lavrador quis passar por aquela desonra. E, poucos dias depois, tinha comprado um boi vivo ao Zeca de Veiga de Lila. Apesar de alto era esguio, o «Lila», assim foi baptizado, diziam que mais parecia um gato por ser delgado. E provocava animadas conversas nos adjuntos do Terreiro da aldêa.
- Cá! Não é semente do Marelo – opinou o Chico Maria.
O Eugenho dizia que era um bei bô e com o Castanho ainda se fazia melhor. Apesar do semblante carregado e relado, o Manel lá se foi habituando à nova junta. Aos poucos foi esquecendo o provérbio, «homes de Santa Maria (de Émeres), beis de Valpaços e mulheres de Valtelhas, quem os meter em casa torce as orelhas». Aproximando-se o fim de Maio era preciso segar o feno do lameiro de Vale das Mós, perto da Ponte da Formigosa. Como sempre, era o Ti Manel Maria (dos Eixes) que segava o feno. Era um dos melhores gadanheiros que por ali havia e amigo da minha casa e dos meus avós maternos, Manel Deimãos (Martins) e Maria Rosa (Ribeiro). Nas segadas dos lameiros tinha-se comida e bebida quanta queriam, binho sempre na cabaça e dez escudos ao fim do dia… Era uma desfeita se não fosse ele e deixava o feno cortado rentinho pelo terrão, rapadinho como uma ovelha na tosquia. A jeira era de sol a sol e à medida que o feno ficava em baranhos ia-se espalhando com as forcadas para secar melhor. Como ainda não andava na escola, acompanhei a faina da segada do lameiro e bebia os movimentos ritmados do Ti Manel Maria, com contorções da direita para a esquerda e o vaivém da gadanha, acompanhado de pequenos gemidos. De quando em vez, parava para picar o gume da gadanha e afiá-la com a pedra bicuda. Esta paragem anunciava que estava na hora de molhar a garganta, tocando a cabaça do tintol. Trabalho feito, há que regressar, e os anos a pesarem ao Manel Maria, o meu Pai, desviou-se da Ladeira do Arrebentão, escolhendo o caminho manhoso da Merigadeira que mais tarde foi alargado para caminho municipal de veículos. Ainda em Vale das Mós deu para todos matarmos a sede na pôça da horta do Luís Meireles. Todos, menos o Ti Manel Maria que de gadanha ao ombro prosseguiu com passo vagoroso, fazendo bailar o copo e a pedra na cintura. Copo? Um corno de boi bem asadinho, que os meus seis anos nunca tinham visto. E lá continuamos a vencer a légua e mêa de lonjura, com as estrelas a contarem-nos os passos e o pio agourento de uma ou outra coruja a aguilhoar o silêncio sepulcral. A última subida foi a da Ladeira da Pereira, o caminho velho, ali era mais uma canelha, tornou-se mais custoso para o gadanheiro. O Ti Manel Maria arrastou-se um pouco e as pernas fraquejavam e torciam-se. Não me contive:
- Já entortas as patas co binho!
- Ó meu corno, patas tem-jas tu!
Começaram os cumprimentos elogiosos entre mim e ele. Depois de algum diálogo vivo entre os dois, o meu Pai ralhou-me e ficamo-nos por ali, porque, entretanto na curva, avistamos os pobos de Chelas e dos Eixes. Chegados a casa, a nha Mãe tínha-nos de cêa, umas batatas das novas cheirosas e umas bogas miúdas do rio Rabaçal fritadas e estaladiças que comprou ao Ti Grilo peixeiro. Um mimo divinal em que a minha Mãe, na arte de fritar, rivalizava com a
Maria Ruça do Grilo. As batatas na mesa corrida, na grande fonte de gemalte esverdeada e as bogas a nadarem em molho de escabeche noutra azulada, ao chamamento do meu Pai todos nos sentámos nos bancos corridos e, depois de partidos os carolos de pão, começámos a tasquinhar. Com o garfo tridente de ferro na mão, ao espetar a primeira boga, pô-la em cima do carolo e levá-la à boca apercebi-me que não tinha malagueta. E disparei:
- Ó Mãe esqueceu-se de botar malagueta aos peixes!
- Não esqueci! Não lha pus por causa do Ti Manel Maria não gostar dos peixes com malagueta!
Contrariado e quebrado no meu orgulho de imitar o meu Pai, que punha malagueta em muitos pratos, respondi:
- Éh! Por causa do «Merda» não como eu os peixes!
- Oh! Meu «Corno»!... «Merda» és tu!...
O meu Pai repôs a ordem e o respeito e eu fiquei-me, por birra, pelas batatas.
(Continua...)
Jorge Lage
in:atelier.arteazul.net
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(Henrique Martins)
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COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite, Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues, João Cameira e Rui Rendeiro Sousa.
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