De modo que na Primavera, quando as parasitas abriam serenamente os seus melindrosos cálices sobre esse fundo de verdura reluzente, e a magnólia toda se toucava de flores fazendo docel à vivenda, aquele pequeno canto de horto, com a sua nora e com a sua água espelhante e límpida, tomava a feição ingênua de uma delicadíssima tela de paisagista, aguarela deliciosa, alegre e idílica, cheia de encantos na poesia rústica da sua simplicidade.
No Verão, às horas de calor, quando o sol caía a pino sobre a larga paisagem adormecida e turva, e as árvores da estrada não davam sombra que aliviasse, aquela tranquilidade com que o José Cosme ressonava sob o alpendre, braços nus e peito nu, o chapeirão de palha grossa resguardando-lhe a cara, fazia inveja aos que por ali passavam, cansados e cheios de poeira, flagelados por aquela estiagem inclemente.
— Ó tio José! — gritavam-lhe do caminho. — Tio José! Ó regalado!
Mas os que entendiam de lavoura, proprietários e maiorais, esses deixavam dormir o José Cosme e ficavam-se a admirar o horto.
Ora na verdade!... Belo horto, sim senhores! Por aquelas redondezas não havia outro que se lhe comparasse, tão esmerada era a sua cultura — tão esmerada e tão completa, pois que de mais a mais nem palmo de terra ficara inculto. Nas leiras, dispostas com simetria agradável, verdejavam cheios de viço, frescos e medrados, legumes de todas as castas — desde a alface muito tenra, de folhas verde-claras, toda acaçapada no chão úmido das regas, até às trepadeiras das vagens que enroscadas ascendiam pela basta «rodriga» de castanho aparada com todo o esmero, formando maciços de verdura sombria que os casulos esguios dos feijões crivavam de alto a baixo. Árvores, apenas as precisas para aformosearem o horto, sem prejudicarem com a sombra a vegetação franca das hortaliças. Mas todas as que havia eram mimosas de frutas nas estações competentes — cerejas, peras, maçãs, pêssegos mesmo.
Poucas flores: uma coisa que todos notavam com estranheza. Mas desde que lhe morrera a mulher mais a filha, o José Cosme deixara-se de as cultivar, e nos canteiros assim devolutos tinha semeado repolhos, que por sinal vinham enfezados. Só teve o cuidado de não deixar morrer os goivos. Uma vez por ano, em fins de Maio, colhia-os todos de uma vez, e ia levá-los em braçado à sepultura rasa das suas defuntas.
Exatamente nessa tarde tinha ele ido ao cemitério fazer a fúnebre visita. Quando se recolheu era já noite. Mal acabou de cear levantou-se bruscamente da mesa e foi-se para o horto, com uma grande vontade de chorar. Estava nas suas horas tristes, nessas horas em que as energias todas da sua alma e até as do seu corpo vergavam sob o flagelo de uma dor violenta, exacerbada agora pela saudade dos que lhe tinham morrido... E para maior desgraça fugira-lhe o bem das lágrimas. De modo que sem esse lenitivo, aquelas medonhas tempestades custavam o dobro a suportar. Abstrato, numa espécie de entorpecimento idiota, percorria sem descanso todas as ruas do horto, cabisbaixo, acabrunhado, autômato. Se por vezes parava, recolhendo-se numa quietação atenta, logo um gesto brusco desmanchava a sua imobilidade de estátua, soltava um fundo gemido, e punha-se de novo a andar.
— Vens ou não vens? — perguntava ele, evocando com dorido esforço a imagem da mulher ou da filha. Não vinha; e quando aparecia era como se fosse um relâmpago, apagava-se logo.
Nesta lua com a sua dor as horas iam passando longas. Era já tarde, talvez a uma da noite. Luz, apenas a das estrelas, pois que o luar nascia tarde. Pesava sobre toda a paisagem o largo silêncio da noite, apenas cortado, ao longe, pela melopeia sonolenta do rio.
Um rapaz que ia na estrada olhou por acaso para o horto do José Cosmo e viu um vulto perpassar de repente e de repente sumir-se num recanto onde a sombra era mais densa.
— Temos história... — resmungou consigo o rapaz.
E, rente a uma árvore, quedou-se alapardado, à espreita. Não desconfiou que fosse o José Cosme: aquilo era mariola de larápio que vinha por ali fazer das suas. Agachou-se então, e pôs-se a procurar uma pedra. Apanhou duas, para o caso de não acertar a primeira.
— Cão do diabo! — exclamou baixo o rapaz, pondo-se em posição de jogar a pedra. — Espera que eu te arranjo... — E já ia arremessá-la na direção do canto, quando o vulto saiu da sombra e tomou por um carreiro, direito ao lugar onde o rapaz estava.
— Melhor! Mais a jeito ficas...
E debruçando-se um pouco na parede, pôs-se a fixar o vulto que avançava, para ver se o conhecia. Quem quer que era trazia a jaqueta sobre os ombros, alvejavam-lhe as mangas da camisa. A meio do carreiro, mesmo defronte dele, parou. Foi então que o rapaz se lembrou do José Cosme. O vulto parecia, com efeito, ser o dele; lembrava-se agora de ter ouvido que o pobre homem, quando o ralavam saudades da mulher e da filha, levava noites em claro, a percorrer como doido aqueles carreiros por onde elas tinham andado.
Quando ouviu soluçar, acabou então de se convencer. Insensivelmente, deixou cair as pedras e perguntou:
— Tio José! Ó tio José! Sou eu, o Luís... Vossemecê que tem?
O lavrador não respondeu, parece que nem tinha ouvido. O rapaz insistiu:
— Dói-lhe alguma coisa, ó tio José?
— Não dói, não. Sabes que mais? peço-te pelas alminhas que me deixes. Bem me bondam as minhas aflições. Vai com Deus, vai.
O rapaz ficou surpreendido, triste do tom de súplica dorida que o José Cosme dera àquelas palavras, e retirou-se silencioso, quase aterrado agora com a ideia de que poderia ter matado o pobre homem, caso jogasse a pedrada.
No entanto a noite ia avançando, grave, soturna, sem outro ruído que não fosse o das águas do rio. E o José Cosme, sem despegar do seu fadário, ia e vinha pelas ruas do horto, lembrando um autômato ou um sonâmbulo. Às vezes abeirava-se da porta de casa e punha-se a escutar. Como não sentia nada, voltava de novo ao seu passeio. Nisto, de uma vez que passava em frente do cancelo, pareceu-lhe ouvir passos.
— Ó Tomás!
— Sr. José! — respondeu o que entrava, numa voz que era mesmo voz de barqueiro.
O Cosme sentiu então uma grande vontade de chorar, mas remordendo os beiços dominou-a. Como o barqueiro estranhasse encontrá-lo a pé, ele então redarguiu-lhe que nem se tinha deitado.
— Como tinha de madrugar...
— Pois são horas de largar, Sr. José; isto vai pras duas. Não tarda que comece a amanhecer. — E como estavam à porta de casa: — Será bom acordar já o pequeno: veste, não veste, é tempo que se vai. — Iam à vela se o tempo não mudasse. Era bom aviar, por isso.
Mas à ideia de ter de acordar o pequeno, o José Cosme deixou-se cair sobre o banco que estava debaixo do alpendre, e desatou a chorar violentamente.
O barqueiro tentou animá-lo, constrangido.
— Então, Sr. José?... O chorar é lá para as mulheres. Olhem agora que homem! — E tentava levantá-lo, pô-lo de pé. — Limpe lá essas lágrimas, que vai afligir o pequeno! Ou quer que ele vá a chorar todo o caminho?
O Cosme fez que não com a cabeça, violentamente, e pôs-se a enxugar os olhos com a manga da camisa.
— Pois então levante-se lá. — E segurou-o com força por baixo dos braços. — Assim! Lá porque o pequeno vai para o Brasil não fique vossemecê a pensar que o não torna a ver.
Mas era isso mesmo o que ele pensava...
— Porque não sei que me adivinha que não torno a ver o pequeno — concluiu a chorar o José Cosme.
— Cismas! lembranças que vêm à gente quando está aflita. Mas há de vê-lo que o não há-de conhecer, digo-lho eu. Mais ano menos ano, aparece-lhe aí rico...
Rico! bem lhe importava a ele que o pequeno viesse rico. O que desejava era que voltasse e que ele ainda fosse vivo só para o abraçar.
Pois sim, mas era preciso aviar, que tivesse paciência: o José Cosme que se animasse para animar o pequeno — recomendava o barqueiro.
— Sim... sim... — tartamudeava o Cosme. — Vamos lá com Deus! Com'assim.
E num profundo ai dolorosíssimo, foi-se direito à porta para chamar a pequeno. Não havia remédio, tinha nascido em má hora, havia de ser desgraçado até que o levassem para a cova... Sobre a estreita e humilde cama o filho dormia profundamente. Que dor, ter de o acordar! Vieram-lhe tentações de mandar embora o Tomás e deixar dormir a criança. Quem sabe se a sua sorte futura, se toda a sua vida, valeria a boa tranqüilidade daquele sono! Não tinha coragem para o acordar, fazê-lo vestir: era quase um pecado quebrar aquele último sono dormido sob o teto paterno... O último sono! o último sono!
— Ainda se o deixássemos acordar... — aventurou-se a dizer o triste.
Mas o Tomás que estava com pressa, lembrou secamente que eram horas de pôr o barco a andar.
O José Cosme acendeu então a candeia, receoso de que a luz o acordasse, e achegando-se do filho pôs-se a escutar-lhe a respiração. Dormia!... Mas brandamente pousou-lhe a mão sobre a cabeça e chamou baixinho, quase ao ouvido, beijando-o, sobressaltado como se fosse praticar um grande crime:
— Filho, olha que são horas, meu filho...
Quando o pequeno se sentou na cama, estremunhado, ainda sob o estonteamento do sono, cerrando os olhos àquela hostilidade viva da luz, o pai agarrou-se a ele num abraço, e ambos romperam a chorar.
— Adeus, pai!
— Adeus, filho!
Confrangido, o Tomás que se deixara ficar à porta, avançou para desatar aquele abraço.
— Olhe que é tarde, Sr. José. Perdoe, mas olhe que é tarde!
O pai vestiu o pequeno, beijou-o ainda muito, e saíram. Debaixo do alpendre, o Joaquinzito ficou-se um instante a olhar o teto.
— A andorinha, filho? — perguntou o José Cosme. — Deixa que eu hei de olhar por ela, mais pelos filhos quando os tiver. Vai sossegado.
Mas o pequeno quis vê-la, pediu ao pai que o erguesse, era só um instante. Lá estava ela, coitadinha! sentiu-a estremecer quando lhe tocou com as pontas dos dedos...
— Adeus! — disse-lhe o pequeno afagando-a.
A esta palavra, o pai retraiu os braços e tomando o filho no colo seguiu. Atrás, o barqueiro levava ao ombro a mísera arca de pinho: toda a bagagem do Joaquim.
Ao transpor o cancelo o José Cosme deteve-se um pouco e perguntou soluçando:
— Quando voltarás ao horto, meu filho?
O pequeno não respondeu. Chorava constantemente de ver que o separavam de tudo o que adorava — a andorinha, depois da andorinha o horto, as árvores, a velha nora, o cancelo, tudo enfim.
Atravessaram então a estrada e tomaram para a banda do rio. Quando o sentiram murmurar, aperraram mais o abraço, deram-se um longo beijo, úmido das lágrimas que ambos derramavam. Ah, como o triste pai desejava que o rio ficasse ainda longe, mui longe, que fugisse diante deles, de modo que nunca o alcançassem! Mas eis que a areia principiava, divisava-se já perto o vulto escuro do barco onde os da tripulação falavam alto.
— Pronto? — perguntou ainda de longe o Tomás.
Do barco responderam que era só marchar, de mais a mais ia romper a lua.
Chegaram enfim. Num leve silêncio de acaso ouviam-se os soluços dos dois, parece que prolongados infinitamente, na sua expressão de angústia, pelo deslizar monótono das águas... Aquilo confrangia o barqueiro, ele também era pai... Por isso, mal chegaram à beira do rio, apressou-se a dizer para o pequeno:
— Ora bem, Joaquinzinho, beija a mão a teu pai e dize-lhe adeus.
Ouviu-se um chorar lancinante, a voz do pobre José Cosme a querer animar o filho:
— Então, meu filho?... Deus te abençoe, meu amor... Nossa Senhora te veja ir. — E fez-lhe prometer que havia de rezar sempre a Nossa Senhora, ele também lhe rezaria, pois era ela quem dava saúde, quem fazia a gente feliz.
— Não te esqueças dela mais da alminha de tua mãe e de tua irmã...
Mas o pequeno chorava cada vez mais, agarrado ao pescoço do pai, beijando-o sofregamente, acarinhando-o, sem forças para dizer palavra. Então o José Cosme, perdida a esperança de animar o filho, só exclamava desvairado:
— Valha-me Deus! O Senhor me valha pela sua infinita misericórdia!
E o Joaquim sempre agarrado a ele, beijava-o na cara, na cabeça, nas mãos. Até que o Tomás teve de intervir, era preciso despegar dali por uma vez.
— Com'assim, Sr. José, isto tem de ser... — E segurando o pequeno com força puxou-o para ele. Quando já o tinha nos braços, ouviu-se o José Cosme que suplicava de mãos postas:
— Só um instante, só um quase-nadinha, Tomás! — E o pobre pai caía de joelhos na areia, numa atitude de súplica.
Mas nesse momento, o barqueiro saltou de um pulo para o barco, levando ao colo a criança.
— Rema! — intimou em voz rápida.
O barco recuou então subitamente, ao mesmo tempo que os remos fizeram “plhau”! sobre a água.
Então o choro do José Cosme tornou-se de uma violência desesperada, ao ouvir a voz lacrimosa do pequeno dizendo-lhe adeus lá do barco.
— Adeus, Joaquim, adeus!
— Adeus, pai!
— Adeus!
Mas repentinamente, com voz resoluta e firme, o José Cosme gritou na direção do barco:
— Tomás! ó Tomás! por alma de teu pai faz lá alto um instante.
Acabou-se! custara-lhe tomar aquela resolução, mas já agora era melhor ficar sozinho de todo. E segurando nos dentes um pequeno objeto, arremessou a jaqueta ao areal e de um lance deitou-se a nado. O Tomás que ouvira o mergulho do corpo, fez recuar o barco; mas o José Cosme, velho nadador destemido, com meia dúzia de braçadas ganhou-lhe de pronto a quilha. O filho tinha-se debruçado, na ânsia de esperar o pai, de o ver ainda outra vez. Num movimento rápido, o José Cosme entregou ao pequeno o que levava entre os dentes, dizendo-lhe a chorar:
— É a medalha, Joaquim; é a medalhinha de tua mãe, meu filho!... Reza-lhe, sim?!
E chorando cada vez mais, o pobre José Cosme pediu ao barqueiro que lhe chegasse o pequeno para o último beijo...
Dado o último beijo, o barco pôs-se de novo em marcha. Vinha a romper a lua, enorme, torva, afogueada, como se viesse de algum banho de sangue em região misteriosa de lágrimas... E no silêncio agoireiro da noite, apenas cortado pelo bater monótono dos remos e pelo bracejar desalentado do triste nadador, à voz do filho que chamava respondia cada vez de mais longe — longe como se fora do Infinito! a voz lacrimosa do pai — com o seu fúnebre “adeus”! que ele bem sabia ser eterno...
*****
...Só quando o eco do último adeus do Joaquim, perdido na distância, diluído no luar que surgia, desfeito no lugente murmúrio das águas, fundido no derradeiro suspiro da brisa matinal, deixou de chegar à praia, é que o pobre abandonou o areal e se foi, sempre a chorar, tiritando ao frio da sua desgraça, como a um vento agudíssimo do Pólo, na direção do horto silencioso...
Trindade Coelho: "Os Meus Amores" (1891)
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