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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

terça-feira, 14 de setembro de 2021

Trindade Coelho: "Última Dádiva"

 Distante do rio apenas um tiro de bala ficava o horto do José Cosme, belo horto ainda que pequeno, todo mimoso de frutas e hortaliças, fechado entre velhas paredes musgosas, atufadas em silvedo, comunicando com a estrada por um pequeno portelo mal seguro. E eis ali quanto ao pobre homem restava dos seus antigos haveres: — o horto, a um canto a nora, e perto da nora, sob a umbela tufada e virente da antiga magnólia gigantesca, a mísera casinhola de alpendre, apenas com uma porta e duas janelitas laterais mas toda pitoresca das heras que a revestiam, que lhe pendiam dos beirais enlaçadas com as trepadeiras.

De modo que na Primavera, quando as parasitas abriam serenamente os seus melindrosos cálices sobre esse fundo de verdura reluzente, e a magnólia  toda se toucava de flores fazendo docel à vivenda, aquele pequeno canto de horto, com a sua nora e com a sua água espelhante e límpida, tomava a feição ingênua de uma delicadíssima tela de paisagista, aguarela deliciosa, alegre e idílica, cheia de encantos na poesia rústica da sua simplicidade.

No Verão, às horas de calor, quando o sol caía a pino sobre a larga paisagem adormecida e turva, e as árvores da estrada não davam sombra que aliviasse, aquela tranquilidade com que o José Cosme ressonava sob o alpendre, braços nus e peito nu, o chapeirão de palha grossa resguardando-lhe a cara, fazia inveja aos que por ali passavam, cansados e cheios de poeira, flagelados por aquela estiagem inclemente.

— Ó tio José! — gritavam-lhe do caminho. — Tio José! Ó regalado!

Mas os que entendiam de lavoura, proprietários e maiorais, esses deixavam dormir o José Cosme e ficavam-se a admirar o horto.

Ora na verdade!... Belo horto, sim senhores! Por aquelas redondezas não havia outro que se lhe comparasse, tão esmerada era a sua cultura — tão esmerada e tão completa, pois que de mais a mais nem palmo de terra ficara inculto. Nas leiras, dispostas com simetria agradável, verdejavam cheios de viço, frescos e medrados, legumes de todas as castas — desde a alface muito tenra, de folhas verde-claras, toda acaçapada no chão úmido das regas, até às trepadeiras das vagens que enroscadas ascendiam pela basta «rodriga» de castanho aparada com todo o esmero, formando maciços de verdura sombria que os casulos esguios dos feijões crivavam de alto a baixo. Árvores, apenas as precisas para aformosearem o horto, sem prejudicarem com a sombra a vegetação franca das hortaliças. Mas todas as que havia eram mimosas de frutas nas estações competentes — cerejas, peras, maçãs, pêssegos mesmo.

Poucas flores: uma coisa que todos notavam com estranheza. Mas desde que lhe morrera a mulher mais a filha, o José Cosme deixara-se de as cultivar, e nos canteiros assim devolutos tinha semeado repolhos, que por sinal vinham enfezados. Só teve o cuidado de não deixar morrer os goivos. Uma vez por ano, em fins de Maio, colhia-os todos de uma vez, e ia levá-los em braçado à sepultura rasa das suas defuntas.

Exatamente nessa tarde tinha ele ido ao cemitério fazer a fúnebre visita. Quando se recolheu era já noite. Mal acabou de cear levantou-se bruscamente da mesa e foi-se para o horto, com uma grande vontade de chorar. Estava nas suas horas tristes, nessas horas em que as energias todas da sua alma e até as do seu corpo vergavam sob o flagelo de uma dor violenta, exacerbada agora pela saudade dos que lhe tinham morrido... E para maior desgraça fugira-lhe o bem das lágrimas. De modo que sem esse lenitivo, aquelas medonhas tempestades custavam o dobro a suportar. Abstrato, numa espécie de entorpecimento idiota, percorria sem descanso todas as ruas do horto, cabisbaixo, acabrunhado, autômato. Se por vezes parava, recolhendo-se numa quietação atenta, logo um gesto brusco desmanchava a sua imobilidade de estátua, soltava um fundo gemido, e punha-se de novo a andar.

— Vens ou não vens? — perguntava ele, evocando com dorido esforço a imagem da mulher ou da filha. Não vinha; e quando aparecia era como se fosse um relâmpago, apagava-se logo.

Nesta lua com a sua dor as horas iam passando longas. Era já tarde, talvez a uma da noite. Luz, apenas a das estrelas, pois que o luar nascia tarde. Pesava sobre toda a paisagem o largo silêncio da noite, apenas cortado, ao longe, pela melopeia sonolenta do rio.

Um rapaz que ia na estrada olhou por acaso para o horto do José Cosmo e viu um vulto perpassar de repente e de repente sumir-se num recanto onde a sombra era mais densa.

— Temos história... — resmungou consigo o rapaz.

E, rente a uma árvore, quedou-se alapardado, à espreita. Não desconfiou que fosse o José Cosme: aquilo era mariola de larápio que vinha por ali fazer das suas. Agachou-se então, e pôs-se a procurar uma pedra. Apanhou duas, para o caso de não acertar a primeira.

— Cão do diabo! — exclamou baixo o rapaz, pondo-se em posição de jogar a pedra. — Espera que eu te arranjo... — E já ia arremessá-la na direção do canto, quando o vulto saiu da sombra e tomou por um carreiro, direito ao lugar onde o rapaz estava.

— Melhor! Mais a jeito ficas...

E debruçando-se um pouco na parede, pôs-se a fixar o vulto que avançava, para ver se o conhecia. Quem quer que era trazia a jaqueta sobre os ombros, alvejavam-lhe as mangas da camisa. A meio do carreiro, mesmo defronte dele, parou. Foi então que o rapaz se lembrou do José Cosme. O vulto parecia, com efeito, ser o dele; lembrava-se agora de ter ouvido que o pobre homem, quando o ralavam saudades da mulher e da filha, levava noites em claro, a percorrer como doido aqueles carreiros por onde elas tinham andado.

Quando ouviu soluçar, acabou então de se convencer. Insensivelmente, deixou cair as pedras e perguntou:

— Tio José! Ó tio José! Sou eu, o Luís... Vossemecê que tem?

O lavrador não respondeu, parece que nem tinha ouvido. O rapaz insistiu:

— Dói-lhe alguma coisa, ó tio José?

— Não dói, não. Sabes que mais? peço-te pelas alminhas que me deixes. Bem me bondam as minhas aflições. Vai com Deus, vai.

O rapaz ficou surpreendido, triste do tom de súplica dorida que o José Cosme dera àquelas palavras, e retirou-se silencioso, quase aterrado agora com a ideia de que poderia ter matado o pobre homem, caso jogasse a pedrada.

No entanto a noite ia avançando, grave, soturna, sem outro ruído que não fosse o das águas do rio. E o José Cosme, sem despegar do seu fadário, ia e vinha pelas ruas do horto, lembrando um autômato ou um sonâmbulo. Às vezes abeirava-se da porta de casa e punha-se a escutar. Como não sentia nada, voltava de novo ao seu passeio. Nisto, de uma vez que passava em frente do cancelo, pareceu-lhe ouvir passos.

— Ó Tomás!

— Sr. José! — respondeu o que entrava, numa voz que era mesmo voz de barqueiro.

O Cosme sentiu então uma grande vontade de chorar, mas remordendo os beiços dominou-a. Como o barqueiro estranhasse encontrá-lo a pé, ele então redarguiu-lhe que nem se tinha deitado.

— Como tinha de madrugar...

— Pois são horas de largar, Sr. José; isto vai pras duas. Não tarda que comece a amanhecer. — E como estavam à porta de casa: — Será bom acordar já o pequeno: veste, não veste, é tempo que se vai. — Iam à vela se o tempo não mudasse. Era bom aviar, por isso.

Mas à ideia de ter de acordar o pequeno, o José Cosme deixou-se cair sobre o banco que estava debaixo do alpendre, e desatou a chorar violentamente.

O barqueiro tentou animá-lo, constrangido.

— Então, Sr. José?... O chorar é lá para as mulheres. Olhem agora que homem! — E tentava levantá-lo, pô-lo de pé. — Limpe lá essas lágrimas, que vai afligir o pequeno! Ou quer que ele vá a chorar todo o caminho?

O Cosme fez que não com a cabeça, violentamente, e pôs-se a enxugar os olhos com a manga da camisa.

— Pois então levante-se lá. — E segurou-o com força por baixo dos braços. — Assim! Lá porque o pequeno vai para o Brasil não fique vossemecê a pensar que o não torna a ver.

Mas era isso mesmo o que ele pensava...

— Porque não sei que me adivinha que não torno a ver o pequeno — concluiu a chorar o José Cosme.

— Cismas! lembranças que vêm à gente quando está aflita. Mas há de vê-lo que o não há-de conhecer, digo-lho eu. Mais ano menos ano, aparece-lhe aí rico...

Rico! bem lhe importava a ele que o pequeno viesse rico. O que desejava era que voltasse e que ele ainda fosse vivo só para o abraçar.

Pois sim, mas era preciso aviar, que tivesse paciência: o José Cosme que se animasse para animar o pequeno — recomendava o barqueiro.

— Sim... sim... — tartamudeava o Cosme. — Vamos lá com Deus! Com'assim.

E num profundo ai dolorosíssimo, foi-se direito à porta para chamar a pequeno. Não havia remédio, tinha nascido em má hora, havia de ser desgraçado até que o levassem para a cova... Sobre a estreita e humilde cama o filho dormia profundamente. Que dor, ter de o acordar! Vieram-lhe tentações de mandar embora o Tomás e deixar dormir a criança. Quem sabe se a sua sorte futura, se toda a sua vida, valeria a boa tranqüilidade daquele sono! Não tinha coragem para o acordar, fazê-lo vestir: era quase um pecado quebrar aquele último sono dormido sob o teto paterno... O último sono! o último sono!

— Ainda se o deixássemos acordar... — aventurou-se a dizer o triste.

Mas o Tomás que estava com pressa, lembrou secamente que eram horas de pôr o barco a andar.

O José Cosme acendeu então a candeia, receoso de que a luz o acordasse, e achegando-se do filho pôs-se a escutar-lhe a respiração. Dormia!... Mas brandamente pousou-lhe a mão sobre a cabeça e chamou baixinho, quase ao ouvido, beijando-o, sobressaltado como se fosse praticar um grande crime:

— Filho, olha que são horas, meu filho...

Quando o pequeno se sentou na cama, estremunhado, ainda sob o estonteamento do sono, cerrando os olhos àquela hostilidade viva da luz, o pai agarrou-se a ele num abraço, e ambos romperam a chorar.

— Adeus, pai!

— Adeus, filho!

Confrangido, o Tomás que se deixara ficar à porta, avançou para desatar aquele abraço.

— Olhe que é tarde, Sr. José. Perdoe, mas olhe que é tarde!

O pai vestiu o pequeno, beijou-o ainda muito, e saíram. Debaixo do alpendre, o Joaquinzito ficou-se um instante a olhar o teto.

— A andorinha, filho? — perguntou o José Cosme. — Deixa que eu hei de olhar por ela, mais pelos filhos quando os tiver. Vai sossegado.

Mas o pequeno quis vê-la, pediu ao pai que o erguesse, era só um instante. Lá estava ela, coitadinha! sentiu-a estremecer quando lhe tocou com as pontas dos dedos...

— Adeus! — disse-lhe o pequeno afagando-a.

A esta palavra, o pai retraiu os braços e tomando o filho no colo seguiu. Atrás, o barqueiro levava ao ombro a mísera arca de pinho: toda a bagagem do Joaquim.

Ao transpor o cancelo o José Cosme deteve-se um pouco e perguntou soluçando:

— Quando voltarás ao horto, meu filho?

O pequeno não respondeu. Chorava constantemente de ver que o separavam de tudo o que adorava — a andorinha, depois da andorinha o horto, as árvores, a velha nora, o cancelo, tudo enfim.

Atravessaram então a estrada e tomaram para a banda do rio. Quando o sentiram murmurar, aperraram mais o abraço, deram-se um longo beijo,  úmido das lágrimas que ambos derramavam. Ah, como o triste pai desejava que o rio ficasse ainda longe, mui longe, que fugisse diante deles, de modo que nunca o alcançassem! Mas eis que a areia principiava, divisava-se já perto o vulto escuro do barco onde os da tripulação falavam alto.

— Pronto? — perguntou ainda de longe o Tomás.

Do barco responderam que era só marchar, de mais a mais ia romper a lua.

Chegaram enfim. Num leve silêncio de acaso ouviam-se os soluços dos dois, parece que prolongados infinitamente, na sua expressão de angústia, pelo deslizar monótono das águas... Aquilo confrangia o barqueiro, ele também era pai... Por isso, mal chegaram à beira do rio, apressou-se a dizer para o pequeno:

— Ora bem, Joaquinzinho, beija a mão a teu pai e dize-lhe adeus.

Ouviu-se um chorar lancinante, a voz do pobre José Cosme a querer animar o filho:

— Então, meu filho?... Deus te abençoe, meu amor... Nossa Senhora te veja ir. — E fez-lhe prometer que havia de rezar sempre a Nossa Senhora, ele também lhe rezaria, pois era ela quem dava saúde, quem fazia a gente feliz.

— Não te esqueças dela mais da alminha de tua mãe e de tua irmã...

Mas o pequeno chorava cada vez mais, agarrado ao pescoço do pai, beijando-o sofregamente, acarinhando-o, sem forças para dizer palavra. Então o José Cosme, perdida a esperança de animar o filho, só exclamava desvairado:

— Valha-me Deus! O Senhor me valha pela sua infinita misericórdia!

E o Joaquim sempre agarrado a ele, beijava-o na cara, na cabeça, nas mãos. Até que o Tomás teve de intervir, era preciso despegar dali por uma vez.

— Com'assim, Sr. José, isto tem de ser... — E segurando o pequeno com força puxou-o para ele. Quando já o tinha nos braços, ouviu-se o José Cosme que suplicava de mãos postas:

— Só um instante, só um quase-nadinha, Tomás! — E o pobre pai caía de joelhos na areia, numa atitude de súplica.

Mas nesse momento, o barqueiro saltou de um pulo para o barco, levando ao colo a criança.

— Rema! — intimou em voz rápida.

O barco recuou então subitamente, ao mesmo tempo que os remos fizeram “plhau”! sobre a água.

Então o choro do José Cosme tornou-se de uma violência desesperada, ao ouvir a voz lacrimosa do pequeno dizendo-lhe adeus lá do barco.

— Adeus, Joaquim, adeus!

— Adeus, pai!

— Adeus!

Mas repentinamente, com voz resoluta e firme, o José Cosme gritou na direção do barco:

— Tomás! ó Tomás! por alma de teu pai faz lá alto um instante.

Acabou-se! custara-lhe tomar aquela resolução, mas já agora era melhor ficar sozinho de todo. E segurando nos dentes um pequeno objeto, arremessou a jaqueta ao areal e de um lance deitou-se a nado. O Tomás que ouvira o mergulho do corpo, fez recuar o barco; mas o José Cosme, velho nadador destemido, com meia dúzia de braçadas ganhou-lhe de pronto a quilha. O filho tinha-se debruçado, na ânsia de esperar o pai, de  o ver ainda outra vez. Num movimento rápido, o José Cosme entregou ao pequeno o que levava entre os dentes, dizendo-lhe a chorar:

— É a medalha, Joaquim; é a medalhinha de tua mãe, meu filho!... Reza-lhe, sim?!

E chorando cada vez mais, o pobre José Cosme pediu ao barqueiro que lhe chegasse o pequeno para o último beijo...

Dado o último beijo, o barco pôs-se de novo em marcha. Vinha a romper a lua, enorme, torva, afogueada, como se viesse de algum banho de sangue em região misteriosa de lágrimas... E no silêncio agoireiro da noite, apenas cortado pelo bater monótono dos remos e pelo bracejar desalentado do triste nadador, à voz do filho que chamava respondia cada vez de mais longe — longe como se fora do Infinito! a voz lacrimosa do pai — com o seu fúnebre “adeus”! que ele bem sabia ser eterno...

*****

...Só quando o eco do último adeus do Joaquim, perdido na distância, diluído no luar que surgia, desfeito no lugente murmúrio das águas, fundido no derradeiro suspiro da brisa matinal, deixou de chegar à praia, é que o pobre abandonou o areal e se foi, sempre a chorar, tiritando ao frio da sua desgraça, como a um vento agudíssimo do Pólo, na direção do horto silencioso...

Nota:
Trindade Coelho: "Os Meus Amores" (1891)

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