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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

sexta-feira, 14 de abril de 2023

A Padaria e a alma das coisas

 Aconteceu-nos várias vezes ao longo da vida: indo por um passeio, sermos levados às nuvens diante duma porta. Um vislumbre, um som, aragem fresca numa tarde de Verão? Poderia ser, tudo isso faz parte da alma das coisas e objectos, composta pelas suas formas e cores, vibrações, temperatura. Mas refiro-me a algo mais etéreo e capaz de nos transportar, o aroma, o perfume que se evola e de imediato preenche todos os nossos sentidos, nos permite fechar os olhos e abstrair do ruído envolvente: o cheiro duma padaria.
Quando vivemos no Bairro Alto, a nossa janela da sala no r/c estava a metros, do outro lado da Rua das Gáveas, da loja de vidros quadriculados, azulejos brancos, balcão de mármore sobre uma madeira pintada dum branco-farinha, e vinha de lá, em instantes benfazejos, o sinal do pão fresco a pedir para fazer parte de nós. Na Póvoa de Varzim, há imensos anos, o nosso andar arrendado para férias ficava, nesse Julho e Agosto, por cima duma nuvem encantadora de papo-secos ou moletes, pãezinhos de leite e regueifas, que adivinhávamos nas prateleiras do piso, praticamente por baixo, da Padaria Cadeco, esquina transversal à Junqueira, e fizeram as delícias dessas semanas inesquecíveis de praia em que os trincávamos com fiambre que sabia a fiambre, queijo que sabia a queijo e panados com um pão ralado que hoje em dia não há – e até com chocolate, umas tablettes de comacompão cuja energia de alta tensão ainda agora faz efeito só de as lembrar! Na nossa vida profissional, esquadrinhando aldeias nos recantos menos prováveis, muitas vezes pudemos surpreender as fornadas de trigos e centeios a entrar ou sair dos fornos, acontecimento em que se misturavam os tons vermelhos e escuros do fogo, com os das masseiras e das bolas de pão para cozer, embrulhados em toalhas e panos aos quadrados até ficarem sob a abóbada de barro, em brasa branca do calor, arrumados com uma pá de madeira, manobrada por sombras negras dos lenços à cabeça das mulheres, que rezavam auspícios ou davam graças. Tudo tão especial e tão excepcional, mas que, por fazer parte das nossas rotinas, nem nos dávamos nem damos conta a sério da sua especialidade e excepcionalidade: o podermos trincar um pão. Deveríamos considerá-lo com muito mais importância:  se já existisse no paraíso, Adão e Eva não se teriam deixado levar a troco duma simples maçã! Impor-se-lhes-ia, mais alto, o cheiro do pão cozido, algo que lhes saberia doce e muito mais agradável.
Em Macedo, toda a vida o sortilégio acontece a quem passe na rua que vai do jardim para a estação: numa porta discreta, com apenas um passo num degrau, entra-se num território totalmente diferente. O ar morno, odorizado de farinha com notas de tosta, açúcar, amêndoa e, até, coco, elementos em gradientes leves e ponderados no meio da predominância do de trigos e centeios, com côdeas que apetece logo barrar de manteiga ou comer mesmo assim sem mais, impregna a nossa vontade de um sentimento de dali não sair jamais. E ver tudo, aspirar tudo. Os pães nos cestos de vime e canastras de castanho, as prateleiras com biscoitos e bolos, a decoração, a porta aberta para o aposento mágico onde se misturam os ingredientes, levedam as massas e cozem as obras de arte. Ditas assim mesmo porque nesta padaria deambulou com afã uma peculiar artista portuguesa, a Túlia Saldanha. O ponto do cérebro onde se misturam os déjà vu com reminiscências, saudades e memórias, ganha especial intensidade neste ambiente em que tantas vezes entabulámos conversa com a Clarita e o Eduardo. Como se fosse o aleph de Borges, como se fosse o dia em que tive o meu baptismo de voo num motomotor Cessna descolando da pista de terra de Macedo, com o Eduardo aos comandos, o meu Pai ao lado segurando o meu sobrinho Miguel ao colo porque estava com coqueluche, subindo aos 10000 pés sobre a Serra de Bornes num largo círculo, descendo depois e aterrando com a emoção que me dura até hoje. Que já era lendário na nossa casa, o Eduardo, com as histórias que dele se contavam como piloto da Força Aérea Portuguesa e de quando, no mesmo Cessna, também com o meu Pai ao lado, em passagens rasantes e repetidas, bombardearam, com pacotes de manteiga, açúcar e farinha, um medeiro da casa da Maria Isabel Charula, nos Cortiços – tendo ela que mandar desfazer e refazer a meda de palha para recolher os ingredientes para o seu afamado bolo inglês de nozes! Que, nessa época, era na padaria que havia uma estante luminosa SPAR com a melhor das manteigas Martins & Rebelo, chocolate Lily’s, farinha Triunfo, refrigerantes, iogurtes a sério e coisas afins. O Eduardo tinha uma peculiar perspectiva das coisas, frases de ironia inteligente, mentalidade matemática aplicada à vida quer quando jogava bilhar com o João Pires e o Luís Madeira, a ouvirem Fausto Papetti ou Sinatra, quer quando zarpava para a neve no seu Porsche, sintonizado para as pistas de ski. “Manel, quem te conhecia com esse cabelo?! Pensei que eras uma das tuas irmãs!” e ambos nos ríamos, eu algo embatucado nos meus quinze anos, enquanto ele contava os pãezinhos e os biscoitos de amêndoa que eu tinha ido comprar. O Alcino, irmão do Eduardo, salvou-nos, na nossa pequena cidade, de ficarmos sem a Padaria, gerida pelo seu filho Nuno actualmente. Já com redecorações, arranjos, novidades. Sem perder o encanto. Como a Brasileira, a Benard, a Nacional ou a Versailhes, em Lisboa, todas lojas antigas por onde passou o sopro do progresso mas sem lhes alterar o carácter nem o conforto dos velhos clientes. Curioso e involuntário, este associar mental duma padaria com pastelarias de referência! Coisas do espírito da farinha!
Dir-me-ão que a Padaria resiste porque tem qualidade e a mantém, desde a época do bolo-rei no Natal para a época dos folares na Páscoa, de todo o ano nos pães, biscoitos e pasteis de nata originais. Nos económicos. Nos cocos. Em todos os outros. Resistirá por isso, sim. Mas também por uma razão simples e essencial: a de que é a partir de todos esses produtos, daquelas paredes, dos sacos de papel sobre o balcão, das folhas do vegetal de embrulho, daquelas máquinas e fornos, de todas as pessoas que os manobram, que se desprende e fica a pairar no ar e no tempo o intangível da alma especial das coisas. Intangível que chega até nós pelo cheiro inimitável duma padaria. Que nos arrebata. E bem-aventurados os que se deixam arrebatar pelo cheiro duma padaria!

Manuel Cardoso
Consultor e escritor

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