(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")
No passado dia 07, escrevi um texto que por razões que me surpreenderam teve alguns comentários que me sensibilizaram e que agradeço penhoradamente!
Reparo que os que me leem têm também uma grande nostalgia pelas recordações e que ao fazerem a leitura das minhas "aventuras" comparam com as vividas por eles próprios e assim recordam com mais clareza o seu tempo que coincidente ou não com aquele vivido por mim, não é de forma alguma muito diverso daquele que eu relato.
Acredito que a maioria, como eu próprio, viveram e partilharam as mais variadas peripécias com os seus condiscípulos e igualmente com adultos que forçosamente inscreveram na sua memória atos de coragem, esclarecimento e humor e também outros de egoísmo e má fé, também de presunção e convencimento que em nada os dignificou.
A questão que hoje eu pretendo colocar aos meus amigos e a mim mesmo é simples mas pertinente. Cabe num espaço reduzido da folha onde escrevo e não deixarei de dar opinião pois revelará o que verdadeiramente se passa quando na infância e juventude retemos na memória as recordações do tempo vivido. Porque guardamos mais facilmente o que é "Bem" e temos dificuldade em reter o que é "Mal"?
Ora aqui vou socorrer-me do comentário do meu amigo Estácio de Araújo que me diz: - .... Recordo-me de ti no Verbo, onde aparecias à noite e "filosofávamos". Repare-se que se usa aqui o verbo filosofar e o tempo a que o Estácio se refere não era de grande abertura a filosofias e muito menos feita por jovens, sem grande Escola e pobres, o que para a petulância de alguns, era uma afronta ao seu pedantismo e convencimento. Mas a verdade é que nós filosofávamos no Verbo e o Verbo era um caso à parte. Era um caso de uma certa irreverência, de uma capacidade de comunicar única e que no meio de muitas meias verdades ele era capaz de dizer algumas verdades inteiras. Depois o discurso era inclusivo, falavam os estudantes, mas sem que os operários fossem impedidos de o fazerem ou sequer intimidados.
O paradigma era a IGUALDADE. E eu e os meus condiscípulos fomos aprendendo a sentirmo-nos parte do todo e a praticarmos, o que me parece, hoje, ter voltado a não ser prática corrente, o elemento mais nivelador de todos, o diálogo só possível quando nos sentimos iguais aos outros, em dignidade e em direito que não provenha das designações titulares mas sim do princípio igualitário de que todo o homem é meu irmão!
No Verbo daquele tempo discutia-se Gorky, Tolstoy e Heminghway, John dos Passos e Milan Kundera e outros que a geração anterior à minha, do mesmo extrato social pura e simplesmente desconhecia. Falávamos de Jean Paul Sartre com alguma discordância nas várias apreciações e fazíamo-nos gente que transpôs o hiato de séculos de Real Academia para os Nobres em uma geração e apenas porque aprendeu a ser igual. E deixem-me dizê-lo, havia um espaço pequeno que ia muito para lá das histórias facetas que hoje ouvimos repetidas até à náusea e que eram apenas a cortina que impedia que os frustrados das Legiões e outras de igual teor, percebessem a luz que punha um Barbeiro a criar espaço e condição aos novos e aos velhos para poderem dar opinião livremente porque como no primeiro dia da Criação (Génesis-1/-3) alguém disse: -Haja Luz, e realmente houve.
Sei porque com onze anos já eu diariamente ia ao Verbo levar os pastéis, 2 dúzias de pastéis sortidos e 1 dúzia de bolos de arroz, em regra, que o ideal deste homem não se realizou, simplesmente porque a vida é realmente imprevisível e se não se acompanha o progresso técnico fica-se atrás e a saúde quando nos abandona dificilmente regressa sem deixar mazelas.
É necessário que alguém com saber bastante e ocorrem-me tantos nomes, escreva coisa que se veja sobre este homem que se chamou Cipriano Augusto Lopes, O Verbo, de maneira sóbria, e que vá à raiz que deu bom fruto, mas à qual o clima cerceou o renovo que foi estiolando até que se finou já quase no olvido dos homens e do tempo!
Um dia, teria eu onze anos entrei com a caixa dos pastéis. O Verbo quando me viu, quedou-se sério a olhar para mim. Pousei a caixa no balcão dei as boas horas e oiço o Verbo perguntar-me: -Quem te cortou o cabelo? Sério, como que zangado, a sua face era a imagem impressa do que será a indignação. Respondi, foi o barbeiro da Rua Direita. Pegou-me num braço e disse: -anda comigo. E eu fui ! Chegados, disse ao Barbeiro: -Você não tem vergonha de cortar o cabelo ao garoto e deixar esta vergonha que o seria na cara de qualquer rústico das aldeias? O Barbeiro quis responder, mas de novo o Verbo, zangadíssimo lhe ordena: -Deixe sentar o garoto e ponha uma tesoura e a navalha da barba, limpas e desinfetadas na bancada que vou tentar minimizar este crime! Com as vozes exaltadas desceu a mulher as escadas, pois viviam por cima do Soto. Quis saber o que se passava mas o Verbo ripostou de navalha na mão: -Suba as escadas que isto não é assunto de mulher e faça-o rápido senão rapo-lhe o cabelo a si. Ela virou costas e galgou-as duas a duas.
O Barbeiro estava como o soldado na formatura, hirto nem tugia nem mugia, quiçá incrédulo do que se passava. Começou então a tarefa de nivelar o cabelo, primeiro com a tesoura e no final com a navalha rapou-me o pescoço e quando terminou eu parecia de novo o "Garoto do Bombadas" como escrevia o Malã na folha de papel com a medida das botas. Levantei-me e o Verbo falou de novo para o Fígaro desnaturado: -Amanhã escrevo uma carta ao Sindicato, conto o que fizeste e peço para te cassarem a Carteira Profissional. Saímos ambos e depois de colocar os pastéis num tabuleiro em cima do frigorífico, Phillips de cor vermelha, pagou-me e disse-me: Diz ao teu pai que não te mande mais a esse camelo de duas bossas que é a vergonha dos Barbeiros de Bragança.
Esta era a maneira de ser de um homem que se chamava Verbo, (porquê?), foi aluno, foi Barbeiro, taberneiro, marido, pai e auto didata com um coração onde cabia o mundo e tinha lugar privilegiado a gente da sua terra. E mais, músico e amante de tangos Argentinos, tendo -me ensinado as letras de El Choclo e Corrientes 3-4-8 (Tango à Média Luz.
V. N. de Gaia, 09 de Outubro de 2019
A.O. dos Santos
(Bombadas)
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