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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

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COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

sábado, 24 de abril de 2021

NOSTALGIA

Por: António Orlando dos Santos (Bombadas)
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")


No passado dia 07, escrevi um texto que por razões que me surpreenderam teve alguns comentários que me sensibilizaram e que agradeço penhoradamente!
Reparo que os que me leem têm também uma grande nostalgia pelas recordações e que ao fazerem a leitura das minhas "aventuras" comparam com as vividas por eles próprios e assim recordam com mais clareza o seu tempo que coincidente ou não com aquele vivido por mim, não é de forma alguma muito diverso daquele que eu relato.
Acredito que a maioria, como eu próprio, viveram e partilharam as mais variadas peripécias com os seus condiscípulos e igualmente com adultos que forçosamente inscreveram na sua memória atos de coragem, esclarecimento e humor e também outros de egoísmo e má fé, também de presunção e convencimento que em nada os dignificou. 
A questão que hoje eu pretendo colocar aos meus amigos e a mim mesmo é simples mas pertinente. Cabe num espaço reduzido da folha onde escrevo e não deixarei de dar opinião pois revelará o que verdadeiramente se passa quando na infância e juventude retemos na memória as recordações do tempo vivido. Porque guardamos mais facilmente o que é "Bem" e temos dificuldade em reter o que é "Mal"?
Ora aqui vou socorrer-me do comentário do meu amigo Estácio de Araújo que me diz: - .... Recordo-me de ti no Verbo, onde aparecias à noite e "filosofávamos". Repare-se que se usa aqui o verbo filosofar e o tempo a que o Estácio se refere não era de grande abertura a filosofias e muito menos feita por jovens, sem grande Escola e pobres, o que para a petulância de alguns, era uma afronta ao seu pedantismo e convencimento. Mas a verdade é que nós filosofávamos no Verbo e o Verbo era um caso à parte. Era um caso de uma certa irreverência, de uma capacidade de comunicar única e que no meio de muitas meias verdades ele era capaz de dizer algumas verdades inteiras. Depois o discurso era inclusivo, falavam os estudantes, mas sem que os operários fossem impedidos de o fazerem ou sequer intimidados. 
O paradigma era a IGUALDADE. E eu e os meus condiscípulos fomos aprendendo a sentirmo-nos parte do todo e a praticarmos, o que me parece, hoje, ter voltado a não ser prática corrente, o elemento mais nivelador de todos, o diálogo só possível quando nos sentimos iguais aos outros, em dignidade e em direito que não provenha das designações titulares mas sim do princípio igualitário de que todo o homem é meu irmão!
No Verbo daquele tempo discutia-se Gorky, Tolstoy e Heminghway, John dos Passos e Milan Kundera e outros que a geração anterior à minha, do mesmo extrato social pura e simplesmente desconhecia. Falávamos de Jean Paul Sartre com alguma discordância nas várias apreciações e fazíamo-nos gente que transpôs o hiato de séculos de Real Academia para os Nobres em uma geração e apenas porque aprendeu a ser igual. E deixem-me dizê-lo, havia um espaço pequeno que ia muito para lá das histórias facetas que hoje ouvimos repetidas até à náusea e que eram apenas a cortina que impedia que os frustrados das Legiões e outras de igual teor, percebessem a luz que punha um Barbeiro a criar espaço e condição aos novos e aos velhos para poderem dar opinião livremente porque como no primeiro dia da Criação (Génesis-1/-3) alguém disse: -Haja Luz, e realmente houve.
Sei porque com onze anos já eu diariamente ia ao Verbo levar os pastéis, 2 dúzias de pastéis sortidos e 1 dúzia de bolos de arroz, em regra, que o ideal deste homem não se realizou, simplesmente porque a vida é realmente imprevisível e se não se acompanha o progresso técnico fica-se atrás e a saúde quando nos abandona dificilmente regressa sem deixar mazelas.
É necessário que alguém com saber bastante e ocorrem-me tantos nomes, escreva coisa que se veja sobre este homem que se chamou Cipriano Augusto Lopes, O Verbo, de maneira sóbria, e que vá à raiz que deu bom fruto, mas à qual o clima cerceou o renovo que foi estiolando até que se finou já quase no olvido dos homens e do tempo!
Um dia, teria eu onze anos entrei com a caixa dos pastéis. O Verbo quando me viu, quedou-se sério a olhar para mim. Pousei a caixa no balcão dei as boas horas e oiço o Verbo perguntar-me: -Quem te cortou o cabelo? Sério, como que zangado, a sua face era a imagem impressa do que será a indignação. Respondi, foi o barbeiro da Rua Direita. Pegou-me num braço e disse: -anda comigo. E eu fui ! Chegados, disse ao Barbeiro: -Você não tem vergonha de cortar o cabelo ao garoto e deixar esta vergonha que o seria na cara de qualquer rústico das aldeias? O Barbeiro quis responder, mas de novo o Verbo, zangadíssimo lhe ordena: -Deixe sentar o garoto e ponha uma tesoura e a navalha da barba, limpas e desinfetadas na bancada que vou tentar minimizar este crime! Com as vozes exaltadas desceu a mulher as escadas, pois viviam por cima do Soto. Quis saber o que se passava mas o Verbo ripostou de navalha na mão: -Suba as escadas que isto não é assunto de mulher e faça-o rápido senão rapo-lhe o cabelo a si. Ela virou costas e galgou-as duas a duas.


O Barbeiro estava como o soldado na formatura, hirto nem tugia nem mugia, quiçá incrédulo do que se passava. Começou então a tarefa de nivelar o cabelo, primeiro com a tesoura e no final com a navalha rapou-me o pescoço e quando terminou eu parecia de novo o "Garoto do Bombadas" como escrevia o Malã na folha de papel com a medida das botas. Levantei-me e o Verbo falou de novo para o Fígaro desnaturado: -Amanhã escrevo uma carta ao Sindicato, conto o que fizeste e peço para te cassarem a Carteira Profissional. Saímos ambos e depois de colocar os pastéis num tabuleiro em cima do frigorífico, Phillips de cor vermelha, pagou-me e disse-me: Diz ao teu pai que não te mande mais a esse camelo de duas bossas que é a vergonha dos Barbeiros de Bragança.
Esta era a maneira de ser de um homem que se chamava Verbo, (porquê?), foi aluno, foi Barbeiro, taberneiro, marido, pai e auto didata com um coração onde cabia o mundo e tinha lugar privilegiado a gente da sua terra. E mais, músico e amante de tangos Argentinos, tendo -me ensinado as letras de El Choclo e Corrientes 3-4-8 (Tango à Média Luz.




V. N. de Gaia, 09 de Outubro de 2019
A.O. dos Santos
(Bombadas)

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