A sociedade tecnológica/industrial, o capitalismo, o mercado, exploram a tendência que temos para acumular, mesmo quando a acumulação já se desviou muito do desejo legítimo de viver condignamente.
Por seu lado, o marxismo cultiva a ideia impraticável de sermos todos iguais, a contrariedade invejosa de haver quem tenha mais do que nós, o direito a ter tudo o que os outros têm. Combinados na mentalidade comum deste tempo, e não opostos como habitualmente se pensa, os ismos dominantes têm sido irmãos siameses a incutir-nos o engano de que o objetivo das nossas vidas reside em obter cada vez mais bens e serviços. Focam-se no corpo e colocam o bem-estar em saciá-lo, porfiam em criar-lhe necessidades para que possam, ou não, ser satisfeitas.
As duas ideologias equivalem-se no que toca a desprezar a outra vertente que nos pertence e define como seres inteligentes: aquilo que emerge da nossa parte física sem ser físico e necessita de um tipo de alimento que não é comida; os sentimentos nascidos de estarmos vivos e conscientes, sobretudo, e mais ainda até, depois de o corpo se encontrar saciado. Reduzem- -nos a uma espécie de autómatos ávidos de alcançar objetos que logo põem de lado para ir a correr à procura de outros. Tubos cegos que absorvem matéria por uma ponta, tirando disso algum prazer momentâneo, e a expelem em forma de dejeções pela outra antes de repetirem todo o processo. A contrariedade é que duzentos anos deste disparate têm vindo a implicar gastos globais incomportáveis, estragos que estão a amarfanhar a vida, canseiras escusadas, sofrimento a rodos.
Não era preciso esperar tanto tempo para o sabermos. Entre outros, já o descortinara no século dezanove o conterrâneo guerra junqueiro ao referir-se à marcha do progresso como um carro sem travões, alertando para o previsível desastre. Uma fraqueza que nos tem acompanhado é deixarmo-nos liderar por gente grosseira. Não elegemos os mais capazes e avisados, preferimos aqueles que vendem o que queremos comprar: a miragem do consumo a aumentar continuamente. Banha de cobra que funcionava bem num mundo que já não existe, antes de começarmos a fazer contas à finitude dos recursos, ao aumento desregrado da população, à degradação do meio. Os raros com a ousadia de nadar contra a corrente têm carreiras curtas, ou nem chegam a tê-las, o que complica a vida de quem geralmente não conhece profissão e precisa de segurar os cargos em que se apanha.
Apesar de tudo os políticos são simples peões da lógica económica que nos cerca e estimula a produzir e adquirir coisas. Ela promete jardins de delícias, enche de sonhos irrealistas, seduz como a feiticeira circe seduzia ulisses e os companheiros.
Nos omnipresentes media, as mercadorias que supostamente nos irão preencher são postas em cenários que giram invariavelmente à volta de beleza, saúde, riqueza, fama, sucesso, liberdade, perfeição. Se eu comprar um par de óculos a conselho da dona dolores aveiro, ao usá-los convenço-me de que levo comigo um pouco da grandeza e prestígio do filho, mecanismo conhecido como reflexo condicionado que parece infantil, e é, mas funciona às mil maravilhas.
Desejando imitar o que vemos no mundo de fantasia dos anúncios caímos numa armadilha que nos incute valores, ideais estéticos, normas de comportamento, objetivos de vida. Faz de nós androides capazes até de comprar e usar vestuário esfarrapado, apenas um entre os efeitos colaterais da nossa exposição à publicidade. Mais nocivo é que através dela somos levados quase desde o berço a pensar que a satisfação é algo existente fora das nossas cabeças, a associar bem e mal-estar àquilo que podemos ou não possuir, a identificar afirmação e realização pessoal com objetos a agarrar a todo o custo, a apostar que o caminho é a luta individualista, que a ganância vale a pena. A panela de pressão em que a humanidade e o planeta visivelmente fervem tem muito a ver com o assédio deste modelo.
Dada a convicção insegura de que nunca se tem que chegue, mesmo quem compra mais ou menos à vontade procura preencher o constante vazio interior acumulando sempre, numa demanda sem fim. E aos excluídos do grande consumo, a imensa maioria, resta-lhes um caminho de frustração, autorrejeição, ansiedade, agitação, competição desenfreada, conflito, agressividade, revolta, violência.
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