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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

quinta-feira, 22 de abril de 2021

Fialho de Almeida: "Dois Primos"

Quando Jorge bateu,  a  Albertina  acabava  de se levantar da  mesa. Era  uma  rapariga alta e fina, com um tipo miudinho e arrebitado, que dá à mulher o ar  canaille da ribalta. A sua elegância formulava a última novidade dos armazéns  de modas,  tinha o chique do dia, a  cor  e a  graça  da  última  revista de Paris.  Vestida  com uma  simples saia,  um  reles  xale e um  cuia  torta,  teria passado  indiferente até à polícia civil, que é quem na. capital rói nos últimos detritos da  fêmea, que o amor escalavrou por essas alcovas e restaurantes noturnos. Sem  o espartilho curasse que lhe dava o ritmo postiço e flexuoso do busto, sem as  meias escarlates luzentes de abelhas de oiro e esticadas acima do joelho, sem  os  sapatos de decote  largo onde  uma  roseta  de cetim se  enroscava  com  volutas de serpe negra, sem o nanquim das pestanas, a veloutine da garganta,  o carmim da boca e a unha crescida dos fados eletrizantes, essa boneca, que  tinha  o ar de parir o  útero  à  força  de comprimir as ancas,  daria  a  simples  fêmea  linfática,  com  folies  de coeur e histerismos alambicados,  ninho de  tubérculos  no peito e uma  genuína  incapacidade para  os  misteres da  sua  condição e da sua classe.

Seria  uma  preguiçosa, uma  gulosa,  uma  estúpida,  incapaz da  maternidade,  incapaz da abnegação, incapaz da luta pelos que amasse, da permanência no dever como  um  tabernáculo  inviolável,  e da  resignação,  tão heroica  e tão  santa, de certas mulheres pobríssimas, na sua labuta tormentosa e quotidiana.
Aquela vida do palco era a única que ela teria podido seguir sem contrariar os seus instintos e satisfazendo todas as suas vaidades.
Em criança  tivera uma educação  apurada  e.  completa  —  diziam os  pais.  Falava as línguas, cantava, tocava, e implantara no pequenino crânio a paixão  do luxo e a  paixão do namoro —  duas lanternas que ao  longe pareciam  iluminar-lhe as fantasias do futuro. de uma vez que a trouxeram a Lisboa e a  levaram ao teatro, um subitâneo clarão se lhe fez dentro — tornara nítida a  aspiração vaga  em que ardia  nas  suas insônias  de virgem provinciana,  descobrira a vereda que, havia muito, as suas tendências tateavam, como um  cego em busca  de uma porta  para  tomar  fôlego.  Tinha sido na  Trindade,  numa noite de  première.  As decorações da  cena  com os  seus cambiantes  tenros,  as suas florescências singulares,  as cascatas de pérolas caídas na  limpidez ideal dos lagos cortados a palmouras de cisnes, as transmutações, os  adereços, os vestuários dos príncipes e das princesas, dos pajens imberbes e  das bailarinas aladas, surgindo em atitudes lascivas das cascas de ostra gigantes  esquecidas  na  gruta  marinha  da  penedia,  galvanizaram-lhe os  nervos e  o  coração,  arrebatando-a  do seu ninho  de senhora  nubente para  a  fantástica  alucinação das libérrimas existências onde se vive em azul, se cingem as carnes  em fotosferas de pedras, e se faz roçagar no mosaico hilariante das alcatifas as  longas caudas dos  vestidos  de quarenta  libras,  amarrotados hoje e amanhã  benevolamente esquecidos a Fanchette, nossa confidente e a nossa criada de  quarto.  Ah!  como seria  bom cantar ali,  quase  nua,  com os  pequenos  pés  inquietos calçados na chinelinha de Cendrillon ou nas botas altas do príncipe  Jasmim, os cabelos polvilhados de oiro, as mãos cobertas de rubis e a garganta  titilante no frêmito  de um  trilo  ou na  petulância  de uma  ária, escarlate de  provocações!. .  E  as  paixões desencadeadas com o ímpeto  das procelas  andinas,  as súplicas virginais dos  adolescentes loiros que lhe  devessem  o  primeiro grito do sexo espicaçado, as apoplexias dos banqueiros e as surdas  invejas das mulheres mordidas pela  estranha  auréola  do seu império!...  Não  dormiu nessa  noite.  Era  cerrar os  olhos e encher-se-lhe  logo a  cabeça  de  bailados, coros,  transformações e  esplendores,  cuidando  estar diante  da  multidão, frenética ante a nudez dos bustos e abrasada pelo calor do ambiente. O  expluir das ovações como a  embalava  numa  embriaguez funesta,  que lhe  fazia  latejar as  fontes;  e em círculos  de  diabólicas valsas  vinham-lhe  as  reminiscências da vida de terra pequena, tão insípida de episódios e tão árida  de comoções,  em que a  sua  mocidade  deslizara  até ali,  como  em calmaria  podre.  Operou-se nela  então uma  brusca  metamorfose,  uma  rebelião feroz  contra a pequena roda em que vivia. A tranquila casa burguesa dos pais, cheia  de um  conforto simples e de um  aconchego honrado,  fez-se-lhe  odiosa  e  triste. Entrou a embirrar com os móveis, com os velhos criados, com o jardim  de canteiros oblongos e cheios de magníficas roseiras que o papá cultivava, e   tinham a reputação das mais belas da terra. As suas maneiras eram agora secas,  as suas respostas sacudidas e imperiosas.  Sofria  distrações  profundas,  e  respirava  a  espaços por grandes suspiros  de cansaço.  Aquela tristeza  sem  explicação inquietou os pais e as tias. Que era? Que não era? Depois, a fase de  explosão chegou, período singular de contrastes, ora alegre, ora colérico, ora  sarcástico, em que  nada  parava,  as músicas,  o.  guarda-roupa,  os  criados,  a  reputação e  a  toilette  das ricas e  pretensiosas  herdeiras suas vizinhas.  Tudo  achava banal e indigno da sua atenção.  
Uma  crueza  de palavras entrou a  expluir-lhe  na  boca;  achava  os  homens  pelintras e as mulheres  idiotas,  e reclamou um  dia  asperamente do primo  Jorge as cartas que  lhe escrevera, dizia,  para  gozar  com ele.  E,  como  estranharam, ela bateu o pé, trémula de raiva, gritando que nunca seria esposa  de um homem com tamanho nó de goela.
Um dia  despareceu de casa  para  não voltar lá  mais —  e dali a  um  mês os  cartazes anunciavam o seu debute.
Seis meses que se não viam. Como o tempo passa, bom Deus! Havia três que  ela debutara, e tinham-se passado tantas coisas, tantas!..  Quando ele entrou,  Albertina  sentiu um  frémito pela  espinha dorsal ao encará-lo. Estava  mais  vigoroso e mais bonito, correto no seu veston de grandes botões, sapatos de  bicos curvos e a calça azul-ferrete caindo amplamente sobre as polainas cor de  pérola. Era alto,  nunca  lhe parecera  tão  alto,  realmente.  E  o  vermelho dos  beiços dava-lhe um ar sadio, que a frescura dos dentes justificava. A vida de  Lisboa refundira completamente aquele provinciano tímido, pacato e sincero,  apaixonado pela caça, leitor dos maus romances e cheio de uns acanhamentos  que, realmente.. 
Ela soubera da nova residência de Jorge, e, uma tarde, quando subia o. Chiado  vestida na sua peliça e baixando a cabeça às barretadas dos folhetinistas que  por ali se davam ares principescos, tinha dado com ele, cara a cara.  
Fingiu não o ver. Tinham-se-lhe esgarçado já as primeiras ilusões faiscantes da  vida nova  em que entrara;  sem querer até,  experimentava  às vezes,  naquela  solidão em que se via, mesmo no calor da celebridade que se arrogara, o quer  que era de remorso, tristeza impregnada de torpor, um secreto medo da morte  e a  ternura  para  os  tristes velhos que quase  aniquilara  com os desvarios  daquela  vida  desonesta.  Ria-se  destas pieguices depois.  Realmente,  uma  rapariga como ela era, a  pensar em coisas de tão ridícula sentimentalidade!...
Um dia escreveu-lhe; queria ser perdoada, amada outra vez com aquele amor  tão sincero e tão simples, de homem forte e cheio de mansidão benévola dos  sãos. O egoísmo da gente com quem tratava fizera-lhe sentir a necessidade de  ter como defesa  um  amigo leal. Estimá-lo-ia  simplesmente,  vertendo-lhe no  seio as pequenas amarguras da sua vida caprichosa. Amá-lo não, talvez não.  Além de que, Jorge podia lá amar uma mulher de teatro, que ia cear ao José  Augusto com atores  e jornalistas,  dava  beijos  nas faces  oleosas dos  empresários,  e era forçada a  pagar generosidades de joias  com generosidade  de'  alcova..   amá-lo não,  ai  não!  Conhecia-lhe bem a  linha de carácter, escrupulosa e séria. Sentira a adoração daquele homem, ardente e balbuciante,  com uma espécie de misticismo estranho. Que dedicação e que lealdade! Ah!  tivesse ela conservado a sua linha casta de filha única, reclusa na paz da casa  paterna, e seria agora a esposa daquele rapaz de ombros redondos e epiderme  fina,  sob que  um  sangue generoso em retículos  circulava.  Que vida teriam  feito  juntos às noites,  de serão,  sob  a  luz do mesmo  globo e em torno da  mesma  banca de trabalho, os  pequenitos  adormecidos num canto do sofá,  caídos os reposteiros  e uma  paz celeste abrindo as asas sobre o  dulcíssimo  grupo das duas cabeças sonhadoras! Que de asneiras se fazem na vida, bom  Deus! ainda se ele a quisesse como amante..  Àquela ideia, uns restos de pudor  afogueavam-na, erguia-se frenética amarrotando as bordaduras da robe, uma  vontade amarga de morrer.
Encararam-se por um instante,  ela  com  um  sorriso contraído,  ele de  imperturbável seriedade e muito pálido. Quando Albertina lhe tocou na mão  sentiu-a abandonada, como a que se dá aos indiferentes. Seis meses antes, que  diferença!.. 
—  Senta-te aqui — disse ela.  
E passado um instante:  
—  E o meu pai, e a mamã?  
Jorge encolheu os ombros.  
—   Que tens tu com essa gente?  
—  E   verdade,  esquecia-me  —tornou  ela  baixinho,  com  um  estrangulamento de lágrimas.  Eram sete horas,  e não havia espetáculo  nessa  noite. O gabinete tinha uma claridade velada, que, esbatida do globo fosco do  candeeiro,  amaciava  os  aspetos  num penumbra  vaga  de entrevista.  Comas  janelas cerradas —  era  no Inverno  —  os perfumes  dos enormes  bouquets  sufocavam,  tépidos e  langorosos.  Nas jardineiras,  em pinhas  de  pequeninos  vasos  branco e oiro,  as begônias espalmavam as suas folhas decorativas —  Tordas,  bronze raiado de escarlate e cobertas  de um  delicio  crochet.  Caíam  pesadamente das galerias os reposteiros amarelos, destacando no fundo claro  das paredes.  Pelos fauteuils, na  otomana  e sobre as  étageres douradas esqueciam-se as partituras em voga e os papéis, trasladados pela grossa letra  enfadonha dos copistas. Num ângulo de mármore, jazia a cinza do charuto de  um  outro,  que estivera  antes e se  fora.  Jorge pôs-se  a  mirar em  torno.  Era  luxuoso aquilo,  cheirando a  fêmea.  em frente  da  otomana  e por uma  porta  aberta, via-se um canto de toilette na penumbra; formas albas de cortinados  de rendas, uma luzerna de espelho e ao canto a psyché de mármore branco,  em forma de concha. Quem pagava aquilo tudo? dizia Jorge para si.
—  Mas fala,  pelo amor  de Deus! —  disse  ela  puxando-lhe o braço  e  forçando-o a sentar-se. E febrilmente, com a voz um pouco trêmula:
—  Foi uma desgraça, bem sei. Tinha porém de ser, não há remédio já. É o  destino, que queres? Fui bem má contigo. Uma mulher como eu era indigna  de um homem como tu. Sabia lá fazer-me do teu tamanho!... — Atirou-lhe os  braços ao pescoço: — Mas fala, fala!. .. — dizia entre beijos.  
Jorge repeliu-a  devagar,  com  esforço.  Pensava,  nem sabia em que estava  a  pensar. Estava magnífica, a priminha — era tudo.
—  Há  seis  meses não usarias dessa  frieza  comigo —  murmurou ela,  deixando-lhe a cabeça no ombro.
—  Eras honesta.  
—  És cruel, também.  
—  Ouve —  exclamou Jorge violentamente,  tomando-a  pelos pulsos  —, para que te pintas? Para quê?
—  Eu?
—  Tu. Nos olhos, na boca, nos ombros. E esta casa, quem paga? E este  luxo? Não respondas. Paga quem entra, bem se vê.
— Oh,  Jorge!  —  gritou  ela  em soluços.  E um pouco dobrada  deixava  escancarar com abandono provocante a fenêtre do roupão de veludo, orlada  de rendazinhas sobrepostas.
—  É claro, bem claro — dizia ele com uma cintila de cão cioso na vista. E  mais baixo, num tom de repreensão amiga:
— Foi para isto que deixaste Leiria, a nossa casa, o tio Arsénio e as famílias  das nossas relações, não? Pensas que poderás viver sempre cantando,  tendo  celebridade e reclames nos jornais?
—   E porque não? — dizia ela ingenuamente.
—  Olha que é uma vida de encher olho, não tem dúvida. Foi então para  enriquecer uma cocotte que o teu pai trabalhou quarenta anos sem descanso,  não vendo outra coisa senão a filha, e não se importando com outra coisa que  não fosse um  teu capricho? Educaram-te  nas virtudes  burguesas,  que na  mulher  preparam  a  mãe,  simplesmente para  que  um  belo dia  fugisses  roubando a casa dos teus?
— Estás doido?  
— Seria melhor que o estivesse. E agora? Em que ponto ficam as nossas  relações, não me dirás?  
Ela quis atraí-lo a si:  
—  No ponto em que as interrompemos em Leiria. Porque não?  
O primo Jorge riu com uma casquinada brutal.
—   Tudo estás tola, priminha. Eu namorar-te? Tem graça, palavra.
E com ares de cínico:  
— As mulheres do teatro não se namoram.  
Albertina estava atônita do que ouvia.  
—  Então? — disse ela sem saber, ao acaso.
— É simples — ia dizendo Jorge. — Primeiro cercam-se como as cidades  sem víveres. Depois compram-se. Entendeste?  
Ela  ergueu-se com os  lábios  brancos  e as mãos  crispadas.  Estendeu-lhe  secamente a mão.
— Adeus.
Voltou-lhe as costas com um ar de rainha e entrou na alcova.  
Jorge não se  perturbou lá  muito  com aquela  despedida  formal,  e deixou-se  ficar sossegadamente  ao canto do  sofá, fumando o seu charuto.  Só quando  ouviu os soluços da prima se resolveu a entrar devagarinho na alcova. Havia  um cheiro de Ylang-Ylang e pó-de-arroz de Lubin; formas brancas caíam na  penumbra,  de  cassas  apanhadas efauteuils muito  baixos,  de casimira  pérola.  Os pés afogavam-se numa pele de urso, macia e branca, com garras douradas.  Primo Jorge respirava alto, caminhando às escuras, entontecido de perfumes,  um baque nas fontes. E muito baixo:
—  Albertina! — disse ele. Voejavam-lhe diante dos olhos abelhas de oiro,  em círculos febris. Os seus dedos tocavam nuns cabelos, depois um bocado  de pele cetinosa. Ergueu-lhe carinhosamente a cabeça pelo queixo, ajoelhara-lhe aos pés, apoiando-lhe os braços nos joelhos. E, num tom de voz em que  havia o uivo do desejo refreado, dizia-lhe:
—  Pateta! ouve.  
E aos beijos, com palavras entrecortadas:  
—   Como dantes, minha filha, como dantes...
Retesados, os seus braços enlaçavam-na pelo busto, com uma ânsia que fazia  medo.
Dali a  nada, Albertina  terminava  com voz  plangente  o romance do último  semestre  da  sua  vida.  Era  pura  como  outrora,  apesar de tudo, jurava  ela,  expondo pelo quebramento da postura na otomana o onduloso desenho dos  quadris e a  linha elástica  do colo todo abotoado nas costas,  cingido num  corpete de veludo bronze e aberto  no  seio em femêtre,  donde  espumava  a  gargantilha, numa alvura de ninfeia.
Se ele soubesse!..   No teatro e na  cidade  sentia-se flutuar num  abandono  glacial.  A adulação e os  bouquets com  que lhe atapetavam  o caminho  causavam-lhe a  nostalgia  da  sua  pequena  cidade  natal.  Quem se  interessava  agora  por  ela,  quem? Às vezes,  olhando  a  gente que passava  nas ruas,  acotovelando-se  com pressa  de chegar  cedo,  e não querendo saber  dos  que  paravam no  caminho,  sentia  um  medo fúnebre invadi-la  toda.  Se morresse,  quem lhe fecharia piedosamente os olhos e acompanharia ao cemitério? Que  olhasse pelas janelas daquele segundo andar a cidade, viva em baixo e à roda — transeuntes caquéticos e ruas tenebrosas, mesmo à claridade do gás. Que  triste era tudo! O primo Jorge deixava-a à vontade, aninhado junto dela, como  sob a tepidez de uma asa de cisne, e tendo uma das mãos em viagem touriste  pelas colinas, de que o decote triangular patenteava o sopé, de uma amenidade  inteiramente grega.
—   E que mais, que mais? — dizia ele, gaguejando.  
Albertina mirava-o com esses olhos velados de réptil que exercem em certas  organizações  nervosas invencível  fascinação.  A curva  do  queixo era  redondinha e branca, e subia num espraiamento suave até ao lóbulo escarlate  da orelha, onde um diamante faiscava como pupila ciumenta. Parecia bonita  sob  aquela  excitação,  com os olhos  fendidos  a  nanquim, as olheiras  ensombradas a bistre, e verniz labial do mais caro. Todo debruçado, o primo  Jorge inalava os perfumes tépidos da sua carne, olhando-lhe, nas penugens da  face encarada  de perfil,  os corpúsculos  suspensos da  veloutine que  a  alabastrizava.  Aquela  absorção letárgica  e a  excitabilidade excessiva  que lhe  viera  deram-lhe  um  quebramento dorsal,  numa lassidão de músculos e o  desejo incoerente de  se  abandonar,  num  espreguiçamento eterno,  sobre a  flacidez ebúrnea das espáduas. Sentia um peso de pálpebras langoroso e febril,  que não era o sono.
—  Que horas são?  
—  Oito.
Eram dez e meia dadas. Albertina falava baixinho, como receando acordar um  baby,  e a  sua  voz  de  estranha doçura  vinha, filtrada  por  um  secreto medo,  anestesiá-lo como esse insidioso gás hilariante que traz a morte entre risos.  
—   Amava-o,  tinha-o sempre  amado como  em criança. Por nenhum  homem mais sentia aquela atração, aquela confiança e a íntima alegria de lhe  falar sem receio. Porque fugira ela de casa, e se afastara da profunda ventura  de ser  dele,  mediante  os  latins de  um  padre?  Mas  não se  separariam nunca  mais, não era verdade? Nunca mais! Seriam como um irmão com uma irmã,  ela dizendo-lhe a sua vida sem omitir o episódio mais vulgar, ele contando-lhe  também au jour, le jour, as suas esperanças e os seus desalentos. E seria ela  quem lhe faria  tudo,  quem o trataria  se estivesse  doente,  quem lhe daria  conselhos e lhe engomaria  as camisas,  obscuramente,  sinceramente,  sem o  menor  resquício de  pecado entre os  dois.  Os perfumes que pelo decote  vinham do seio dela embriagavam-no; sentia-se penetrado por aqueles olhos  de salamandra, como velados por uma nictitante subtil. Havia dois meses que  tinha  entrado na  chamada  grande vida,  vida  realmente bem pequena,  que  consiste  num  sujeito  estragar o estômago  nos hotéis, dizer asneiras numa  tabacaria, num café ou no camarim de um ator e arranjar, pelo atrito das solas  duras e das convivências safadas, ao mesmo tempo uma coleção de calos e um  museu de vícios pelintras.
Estava  no primeiro  andar do Alliance,  quarto e saleta  com porta  independente, frequentava os teatros e batia em tipoia pelo Chiado às quatro  da  tarde,  mostrando no  assento dianteiro  os  bicos  dos enormes sapatos de  polimento e a seda cor de pérola das meias esticadas. De resto, fazia um gasto  decente no elemento  espanhol,  sem indagar se lhe  vinha diretamente  das  Caldas ou da agência de criadas. E à noite, descendo o Chiado com a gola do  carrick  levantada, sentia-se  apetecido  pelas  senhoras pálidas  que iam pelo  braço dos maridos caquéticos ou condescendentes, com o adultério nos olhos.  O seu ar de campônio de bom sangue fazia impressão: era desejado. E como  tinha dinheiro...
Extinta a fase nevrótica com que é uso iniciar-se um bourgeois gentil-homem  na  roda  galante da  juventude oiro  e azul,  o primo Jorge entrou a  ver  um  pouco nesse  como  encandeamento  em que se deslumbrara.  Mesmo  entre  vadios é forçoso ter posição. Já hoje se começa a penetrar um pouco pela vida  íntima de cada qual. A Jorge bastaria o ser rico ou parecê-lo — uma amante  sempre dá  outro ar,  outro tom e outra  consideração.  Foi quando recebeu a  carta de Albertina. Que diabo! Já lhe tinha feito a corte, demais a mais. Eram  três da manhã quando se despediram.
Ela, envolta num grande penteador de cauda, tremia de frio, oferecendo-lhe a  testa ao último beijo, pés nus sobre a felpa cariciosa e fofa do tapete. Falavam  muito baixo, com singulares fulgores na pupila e uma meiguice de termos que  lhes vinha do orgasmo nervoso em que estavam.  
—  Mas és  lindíssima assim —  dizia-lhe  Jorge cingindo-a  pela  cinta  e  beijando-a na boca.
Albertina  tinha um  riso  delicioso, gulosamente  recortado pela  dentadura,  de  gata irascível. E mordaz:
—  E aquela tua tirada de há pouco..  — disse ela surpreendendo-o vencido  e batendo-lhe na face com o ar petulante que tantos aplausos lhe rendia no  palco.
—  Moralista! — dizia zombeteira. — Todos o mesmo.  
Cantavam galos pela cidade, quando ele saiu. Desenhados em negro, ora no  clarão baço dos lampiões batidos pela ventania do Inverno, ora alongados na  penumbra das ruas e lembrando arganaças estropeadas, os varredores desciam  de vassoura  ao ombro,  batendo galegamente  os  tamancos.  Primo Jorge ia contente, cérebro lúcido, um bom charuto na boca.  
Ao entrar no quarto do Alliance, não se conteve que não dissesse:  
— O que ela sabe, senhores, o que ela sabe! — Despia o carrick de pêlo  fulvo. — Esplêndida! E que artista...
Viu sobre a mesa uma carta. Era da mãe de Albertina, dizendo ao sobrinho  que estava viúva, e suplicando-lhe instasse com a filha para ela abandonar a  vida má que empreendera. Encontrá-la-ia de braços abertos, cheia de perdão  no seu luto, e pronta a adorá-la como outrora. O primo Jorge riu-se. Estava  um pouco bêbedo, e passara sempre por isto que se chama — um bom rapaz.  
—        Está tola, a velhota — disse ele.  
E queimando a carta:
—        Afinal, se não for eu, é outro. Ao menos fica tudo em família.  
E dali por diante acompanhou a prima todas as noites ao teatro, e ficou com  ela por amante.
Acrescentando com ares devassos:  
—        Até aparecer coisa melhor.

Fialho de Almeida - Contos (1881)

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