Ainda que a luta pela felicidade e tranquilidade seja uma constante, para trás ficaram alguns anos de várias batalhas e de complicações. Fechou-se, finalmente, a porta ao medo e a cidade, desconhecida até há algum tempo, passou a ser o novo normal, agora com segurança e paz. Chegaram a Bragança no dia 19 de Março de 2021. Estas pessoas estavam a bordo do navio Ocean Viking, da organização SOS Méditerranée, que havia iniciado naquele mês uma nova campanha de resgate de migrantes. Alojados no Colégio de S. João de Brito, onde se criaram umas instalações próprias para os receber com conforto, os migrantes começam a viver a cidade, as pessoas, o quotidiano dos transmontanos e sonham com um futuro de sorrisos, de trabalho e de autonomia.
Sete anos de luta para chegar a sentir o “amor do coração”
Martin Mimbolo Ndongo e Pauline Messina têm ambos 40 anos e são naturais dos Camarões. Casados há 24 anos, são pais de cinco filhos, mas tiveram que os deixar para trás porque a vida, inesperadamente, se complicou. Apesar de terem ficado “bem entregues”, na companhia da avó e de alguns amigos, estes pais não veem os filhos desde 2014, altura em que saíram do país de origem. O mais velho tem 22 anos e o mais pequeno, com apenas sete, nem sequer tem memória de os ver presencilamente. “O meu filho mais novo não me conhece. Quando saí dos Camarões ele era um bebé de colo. Conheço-o por videochamada, quando comunicamos”, contou Martin, que assumiu que quando tiverem uma situação estável, e visto que “o acolhimento dos portugueses é bom”, a ideia é voltarem a estar juntos, como uma verdadeira família deve estar. Agora, por Bragança, o casal quer esquecer o que passou, já que há quase sete anos que vive uma tormenta que parece não ter fim. “Foram conflitos que começaram de forma familiar. Houve um problema na aldeia onde vivíamos, nos Camarões, quando o meu pai morreu. Eu tinha que o substituir nos costumes da aldeia”, começou por explicar Martin, avançando que um amigo, que interveio para apaziguar a situação, acabou por morrer em sua defesa. “O meu pai tinha uma posição notável na aldeia, a nível de costumes e de religião, e eu não queria assumir essa responsabilidade. Além disso, ele também era proprietário de campos de café e como eu não quis assumir o que tinha a assumir, também não iria ter direito aos lucros dessa exploração. Houve grandes conflitos, dos quais não quero falar, que fizeram com que que não quisesse nem pudesse ali voltar”, justificou ainda o migrante. Após a saída dos Camarões, em 2014, Martin Ndongo refugiou-se no Chade, no centro-norte da África, até que a mulher, Pauline, lá pudesse ir ter. Apesar de tudo, aquele país vivia uma situação política difícil e não era ali que iam encontrar a paz que naquele momento sentiam precisar. Assim, por intervenção de uma pessoa que tinha um amigo na Líbia, conseguiram chegar até esse país, em 2017, onde encontraram alguma “estabilidade” e onde Martin trabalhou por três anos. Já Pauline nada podia fazer porque a cultura da Líbia não lhe permitia grande coisa. “Ele (Martin) é que se bate por nós. Naquela altura, enquanto estivemos na Líbia, nem sequer podia sair de casa porque as mulheres são frequentemente sequestradas. Tinha muito medo”, contou a migrante. Depois do Chade e da Líbia o casal ainda passou pela Itália antes de chegar a Portugal. Estiveram um ano e meio em Bari e em Turim, mas o sonho de chegar ao nosso país não os deixou ficar por lá muito mais tempo. “Sempre conheci a história de Portugal, de serem dos primeiros e grandes exploradores, e também admirava a incursão deste povo pelos Camarões, porque foi muito positiva”, explicou Martin. Apesar de na Itália terem sido aconselhados a não rumar a Portugal, por ser um país pequeno e que estaria a atravessar uma crise económica, o casal fez ouvidos moucos e não desistiu da ideia. “O meu coração estava em Portugal. Mesmo não conhecendo aqui ninguém, nós queríamos vir. Além disso é um país multicultural e, assim sendo, eu pensei que faria um melhor acolhimento pela compreensão que tem dos diferentes povos”, assinalou ainda Martin Ndongo. Por Bragança há pouco mais de um mês, o casal renovou esperanças. Pauline, que sente a saudade constante dos filhos, vive mais consciente de que o futuro ainda tem muito para dar. “Aqui sentimo-nos muito bem e seguros. O acolhimento foi óptimo. Agora respiramos e as condições do lugar em que estamos são muito boas.”, vincou a migrante. O marido não podia ter outra opinião. “Estamos verdadeiramente bem. Sentimos o amor do coração e não foi assim até aqui chegar”, esclareceu Martin. Por agora, o casal vive o dia-a-dia, de forma serena, adaptando-se aos poucos aos brigantinos. Depois dos papéis de permanência em Portugal tratados, começaram as aulas de português, uma forma de integração mais rápida. “Começou por ser difícil aprender mas vamos conseguir”, confirmou Pauline, que ambiciona, depois de todo o processo de ambientação, arranjar um trabalho. “Sinto que posso aprender e fazer qualquer coisa. Não me importo de fazer seja o que for”, assinalou. Martin também quer trabalhar, como forma de chegar a ter autonomia. “Fiz uma formação de decoração de interiores, no âmbito da construção civil, e trabalhei nessa área. Tenho 20 anos de experiência. Gostaria de encontrar uma empresa onde fosse integrado e ver melhor como aqui se trabalha, para ir progredindo”, explicou o migrante, que finalmente encontrou a valorização que há muito sentia vontade de ter. “O acolhimento é verdadeiramente caloroso. Encontrei uma família na Cruz Vermelha e encontrei pessoas que me dão valor e que nos compreendem”, terminou Martin Ndongo.
“Sinto-me bem acolhido”
MD Alamgir tem 38 anos, é natural do Bangladesh e é um terceiro migrante que encontrou em Bragança uma nova forma de encarar a vida. Saiu do país de origem pelas mesmas razões que Martin deixou os Camarões: problemas e conflitos familiares. Ainda assim, os contornos da história são diferentes e, claro, as angústias sentidas de outra forma. No Bangladesh, MD Alamgir era responsável por cuidar da mãe e da irmã viúva. Competia-lhe gerir todo o seio familiar mas, como as condições económicas “não eram favoráveis”, foi contraindo vários empréstimos que não conseguiu pagar. “À medida que os empréstimos iam sendo acumulados, a pressão era cada vez maior. Num determinado momento exigiram que a casa fosse hipotecada e, assim, não teríamos onde viver. Foi nessa altura que decidi tomar uma atitude mais drástica, até porque estava tudo cada vez pior, havia conflitos com alguns primos, a quem pedi dinheiro emprestado e sofri ameaças de morte”, contou o migrante, justificando a sua “fuga” para a Líbia. Naquele novo país de acolhimento, onde esteve dois anos, começou a trabalhar numa empresa, sugerida por uns amigos do Bangladesh. O trabalho era feito mas o dinheiro não chegava, não havia pagamentos. Com o desenrolar daquela situação, o migrante não teve como resolver nada e “a pressão emocional era cada vez maior”. Após se aconselhar novamente com alguns amigos rumou à Itália, através da via marítima do mediterrâneo, e depois da Itália a escolha, ainda que bastante ao acaso, foi Portugal. Parecendo estranho, foi o afamado CR7 o responsável por tudo isto. “Os profissionais da Organização das Nações Unidas e da Cruz Vermelha, que nos acompanhavam na Itália, perguntaram-me qual era o destino final que queria ter e, porque no Bangladesh se fala muito de Portugal, por causa do Cristiano Ronaldo, já tinha esta ideia. Além disso, algumas pessoas que conheciam outros nacionais do Bangladesh, que estavam a viver em Portugal, disseram-me que o acolhimento e o país eram óptimos”, explicou MD Alamgir. Neste momento, o migrante também frequenta as aulas de português, que resultam de uma parceria com a Cruz Vermelha de Coimbra, e já está a fazer um estágio pré-laboral. “A minha intenção, a médio-longo prazo, é continuar em Bragança. Sinto-me bem acolhido. É um sitio muito tranquilo e toda a gente que me recebeu, que está à minha volta, está a trabalhar muito para me ajudar. Quero encontrar uma portuguesa com quem fazer vida ou encontrar alguém no Bangladesh que possa trazer comigo”, vincou ainda. Quanto à mãe e à irmã, não pensa em trazê-las para junto de si, até porque no Bangladesh é tradição que os mais velhos ali permaneçam. “É algo que respeito, mas claro que lá quero voltar para as ver”, explicou o migrante, que avançou ainda que a situação familiar continua mais ou menos nos mesmos moldes de fragilidade económica.
Bragança será esperança renovada para mais três migrantes
O programa de acolhimento dos migrantes é de 18 meses, mas volvido apenas um e poucos dias, Duarte Soares, presidente da delegação de Bragança da Cruz Vermelha, faz já um balanço satisfatório. “Conseguimos acolhe-los bem, em segurança, com muita participação da comunidade local”, vincou o presidente da entidade, que assinalou que a experiência tem sido “trabalhosa e pioneira”, mas era algo que faltava em Bragança e que “valoriza a cidade”. Para já, umas prioridades é ajudar os migrantes a falar português. Além das lições dadas através da delegação de Coimbra, também estão a ser ensinados no Instituto Politécnico de Bragança e, brevemente, começaram na Escola Secundária Emídio Garcia. Assinalando que “os refugiados, migrantes e nacionais de países terceiros vêm acrescentar, não vêm subtrair”, Duarte Soares avançou que, no âmbito deste programa, Bragança vai acolher, brevemente, mais três refugiados, todos eles vindos do Egipto.
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