Entrevista com Isabel Mateus, autora do livro “Barbatus, Um Abutre Quebra-Ossos e os Outros”, com prefácio da ONG de ambiente Palombar - Conservação da Natureza e do Património Rural
Isabel Mateus. Em Richmond Street Allotments, Stoke-on-Trent, Reino Unido. Fotografia Giuliano Tarì. |
O livro "Barbatus - Um Abutre Quebra-Ossos e os Outros", recém-lançado, é uma novela que tem como protagonista o Barbatus, personagem que faz parte de um trio de quebra-ossos – espécie de abutre europeu com estatuto de ameaça "Regionalmente Extinto" em Portugal – que veio para o território nacional a fim de se estabelecer no Douro Internacional e, assim, contrariar o seu destino. A obra também tem como personagens centrais o abutre-do-Egito, o abutre-preto, o grifo e ainda o grifo-de-Rüppell, uma espécie de abutre africana que tem sido registada com cada vez maior frequência na Península Ibérica nos últimos anos.
Da autoria de Isabel Maria Fidalgo Mateus, esta é a sexta e mais recente novela da coleção “Dos Bichos", que a autora dedica a espécies autóctones ameaçadas de extinção e da qual fazem parte “Farrusco - Um Cão de Gado Transmontano”, “Sultão - O Burreco Que Veio De Miranda”, “Signatus - O Lobo do Fojo de Guende”, “Santiago - O Lince da Herdade das Romeiras” e “Mariana, O Urso-Pardo Sábio dos Saltimbancos”.
Com prefácio da ONG de ambiente Palombar - Conservação da Natureza e do Património Rural, que desenvolve vários projetos dedicados à conservação dos abutres europeus, esta obra é um tributo aos abutres, um grupo de aves essencial para a natureza e para o equilíbrio dos ecossistemas, e uma imersão nos seus périplos, com apontamentos factuais sobre as espécies do Velho Mundo, inseridos numa narrativa ficcional que chega onde deve chegar: na consciência de cada um de nós, ecoando como um grito de alerta para a importância de os conservar e combater as ameaças que sobre eles pairam.
A obra encontra-se à venda nas plataformas Wook, Bertrand e Amazon Espanha, França e Reino Unido. Está ainda disponível no Palheiro Ti Grabulha, em Quintas do Corisco (Torre de Moncorvo), "um palheiro com livros" inaugurado em 2018, como refere a autora, um centro literário-cultural de divulgação da sua obra, e da criação de outros autores transmontanos, com destaque para Miguel Torga. É também possível ler gratuitamente um dos capítulos do livro no site oficial da autora.
Transmontana de nascimento, Isabel Mateus é uma escritora portuguesa radicada no Reino Unido desde 2001. Contando já com uma vasta obra, a autora é mais conhecida por abordar temáticas que incidem sobre a ruralidade e a diáspora.
5 PERGUNTAS À AUTORA
1 - Como surgiu a ideia de escrever sobre os abutres europeus?
Isabel Mateus (IM) O impulso inicial para escrever sobre abutres deve-se ao repto lançado pelo Miguel Nóvoa, da AEPGA – Associação para o Estudo e Proteção do Gado Asinino, durante a atividade “Passeio com Burros”, que desenvolvi a partir do Palheiro Ti Grabulha, em 2019, e na qual pude contar com o apoio da AEPGA. A ideia de escrita não se concretizou de seguida, porque, na altura, o projeto do romance “Anna, A brasileirinha de São Paulo”, que viria a ser publicado na era pré-COVID, já estava em desenvolvimento.
Depois, quando comecei a pesquisa acerca dos abutres, inclinei-me, de imediato, para o abutre quebra-ossos. Atraíam-me nele certas especificidades inerentes a esta espécie, além de ser o único dos quatro abutres europeus que já se havia extinguido no nosso território, em finais do século XIX. Mas, como os restantes abutres europeus também ainda são espécies ameaçadas em Portugal, e não só, decidi chamá-los igualmente para a narrativa, com a intenção de, nesta novela, dar visibilidade a grifos, britangos e abutres-pretos.
Contemplei ainda naquela o grifo-de-Rüppell africano por ser um abutre vítima de envenenamento em massa no Velho Mundo, quer devido a crenças e superstições, quer devido à ganância de alguns. E pelo facto de esta espécie ter vindo, ultimamente, a visitar a Península Ibérica e ainda de existir a possibilidade de vir a acasalar e a estabelecer-se no continente europeu, no futuro.
A escrita acerca dos abutres foi uma paixão que cresceu gradualmente e se alargou a todo o território nacional lado a lado com o trabalho que os conservacionistas estão a desenvolver, intervindo estes no terreno e monitorizando os abutres europeus.
Isabel Mateus. Em Richmond Street Allotments, Stoke-on-Trent, Reino Unido. Fotografia Giuliano Tarì. |
2 - Porque escolheu esse grupo de aves para encerrar a coleção “Dos Bichos”?
IM Acima de tudo, porque são aves ameaçadas. Aliás, o lema desta coleção é debruçar-se sobre espécies autóctones ameaçadas de extinção, e, nalguns casos, já extintas em Portugal, a começar pelo cão de gado transmontano, o burro de Miranda, o lobo-ibérico, o lince-ibérico e o urso-pardo. Mas, mormente, pela função essencial que estas aves necrófagas desempenham no meio natural. Não são os abutres considerados “agentes sanitários dos ecossistemas” pelos entendidos? E que melhor exemplo disso do que o quebra-ossos, sendo o último da hierarquia alimentar a certificar-se de que vai engolir até ao derradeiro osso do cadáver. E disso nos dá notícia o primeiro capítulo da novela intitulado precisamente “O festim dos abutres”.
Contudo, temos ainda a responsabilidade de antever a vertente espiritual destas criaturas no seu papel sublime de mediadoras entre a vida terrestre e o outro mundo. Esta é a fama que os persegue desde a antiguidade greco-latina e que penso que foi capturada, de forma menos explícita é certo, tanto no já referido episódio “O festim dos abutres”, como no episódio “À descoberta de Ossifragus”, aqui já, explicitamente, quando a fêmea de abutre fez ascender a alma da velha escocesa na última etapa da sua viagem em direção aos céus. Mas este papel mais transcendente e igualmente nobre de toda a atuação dos abutres no planeta Terra foi muito bem capturado por Uliana de Castro no texto que consta da contracapa da novela “Barbatus, Um abutre quebra-ossos e os outros”. Basta que o leiam para que compreendam bem o que acabei de afirmar. Para parafrasear a Uliana, que melhor forma de acabar do que perseguindo a imortalidade nas asas livres de um abutre?!
Incidindo de novo na pergunta que me fez, sinto que devo considerar, neste contexto, o significado do verbo “encerrar” como forma de incluir e não de rematar a coleção Dos Bichos. E porquê? Infelizmente, há tantos bichos em vias de extinção que, em breve (esperemos!), surgirá mais um.
3 - Considera que o cruzamento entre a ficção e a realidade é mais eficaz para sensibilizar as pessoas para as questões relacionadas com a conservação da natureza, em geral, e das espécies ameaçadas, em particular?
IM Penso que sim. A narrativa ficcional consegue captar, talvez de uma forma mais apelativa, a atenção e a curiosidade dos leitores em relação ao meio envolvente, em geral, e das espécies ameaçadas, em particular, do que outras modalidades de escrita, tais quais artigos científicos ou trabalhos de teor mais académico, apesar de estes documentos serem essenciais para quem quiser conjugar na sua escrita Ciência e Arte. Ao conhecerem essa mesma realidade, os leitores e o público em geral interessados nesta temática criam uma certa empatia que se manifesta numa vontade premente de intervir e de ajudar a modificar uma situação que, muitas vezes, desconhecem e que passaram a conhecer. Logo, perante espécies ameaçadas, a sensibilidade de quem lê ainda se torna maior, imputando-lhe inclusive uma certa responsabilidade moral e mesmo de empenhamento social.
Tenho verificado que, por exemplo, após a leitura da novela “Sultão, O Burreco que Veio de Miranda”, com texto da contracapa da autoria da AEPGA, os leitores me informam que desconheciam a associação, mas que querem saber mais acerca dela e das suas intervenções no terreno. O passo seguinte é tornarem-se pró-ativos das mais diversas formas, desde apadrinhamento de “burrecos” a ficarem sócios da associação, etc. Tenho a certeza de que o mesmo irá acontecer no que diz respeito a “Barbatus, Um abutre Quebra-Ossos e os Outros”. Para terminar, cito Miguel Geraldes da Liga para a Proteção da Natureza – LPN, no texto que este elaborou, por sua vez, para a contracapa do meu livro “As Árvores com que Crescemos – Poemas da Natureza”: É rica a relação entre Cultura e Natureza, a própria Convenção para a Diversidade Biológica a menciona expressamente e protege como forma de promover a defesa de ecossistemas e da sua ligação ao Bem-Estar Humano. Considero que a Literatura também seja uma forma de agir numa realidade que pertence a todos.
4 - O facto de ter nascido no interior do país e de estar mais intrínseca e teluricamente ligada ao mundo rural/natural influencia a sua produção literária? De que forma?
IM Sim, a minha matriz rural tem, sem dúvida, uma grande influência na temática da ruralidade que eu privilegio na minha escrita. Na verdade, costumo dizer que sou uma escritora da ruralidade e da emigração. De resto, este último tropo encontra(va)-se profundamente ligado ao primeiro. Foi sobretudo a partir do Portugal rural que, desde a segunda metade do século XIX, mais portugueses migraram. E, mesmo que eu própria só tenha passado a meninice e parte da juventude nesse mundo rural, atrever-me-ia a parafrasear Miguel Torga para afirmar que também em mim a paisagem transmontana é algo fisiológico. Está entranhada em mim. Daí, essa atração igualmente pela sua fauna e pela sua flora. A busca dessa identidade que mergulha as raízes em solo transmontano e que consiste no recurso recorrente a esse último reduto. Mesmo residindo no Reino Unido há duas décadas, é aquele pedaço de chão nativo que me norteia o percurso literário e, em grande parte, o da vida. Afinal, não sou mais do que um torna-viagem que anseia pelo regresso. Por enquanto, esse regresso é apenas possível através da escrita. Mas, recorrendo de novo a Torga, não há outro caminho possível: “Lá diz o ditado: infeliz pássaro que nasce em ruim ninho. Tanto monta correr, como saltar: as asas puxam-no sempre para onde aprendeu a voar”.
5 - Com que propósito escreveu a coleção “Dos Bichos”?
IM O meu primeiro e último propósito tem apenas a ver com a pergunta que me coloca na questão 3 e, evidentemente, com a minha resposta à mesma. Mostrar os bichos em plena natureza e como personagens reais, ou seja, “reais protagonistas” da sua própria história e embrenhados no seu habitat natural como espécies endémicas que são ou que eram, pois, nalguns casos, há espécies que ainda não regressaram ao território nativo. Trato desse facto na quinta novela da coleção, “Mariana, O Urso-pardo Sábio dos Saltimbancos”. Os animais por mim abordados não falam, nem pensam como o “bicho-homem”. No entanto, é importante e fundamental a coexistência pacífica entre o Homem e o animal. Neste domínio, tenho de realçar que considero ser este o melhor meio que encontrei – a coleção “Dos Bichos” – para fazer a ponte entre uns e outros a fim de que possam viver em harmonia num chão que lhes é comum por direito.
Por outro lado, em termos estritamente literários, e sem me exceder nas minhas pretensões, posso dizer que pretendo quebrar, de certa forma, uma tradição literária em que os animais assumem características humanas e que as suas lições sejam diretamente uma aprendizagem para o Homem. Para elucidar melhor o meu ponto de vista, ocorrem-me, neste âmbito, as Fábulas de Esopo e de La Fontaine. Afasto-me neste sentido inclusive de “Bichos”, de Miguel Torga, em que os animais assumem comportamentos e atitudes de pessoas e também o contrário. Inclusivamente, Aquilino Ribeiro na sua obra “Romance da Raposa” dá voz humana aos seus animais, ainda que já revele explicitamente a sua preocupação por determinadas espécies em vias de extinção. É dado esse alerta na primeira metade do século XX, altura em que escreve a referida obra, em 1924, dizendo que o lince está a desaparecer por ser vítima de maus comportamentos humanos. Quanto ao urso-pardo, que encontramos nas páginas da referida obra, só ainda existe em Portugal porque é um urso amestrado, que fugiu ao “húngaro de má-morte”.
Com a coleção “Dos Bichos”, pretendo transpor essa tradição para me mover em direção a uma nova forma de abordagem literária que hoje é, em grande parte, possível devido a uma nova atitude do Homem perante a preservação dos ecossistemas e a reintrodução de determinadas espécies em Portugal, na Península Ibérica, na Europa e no mundo. Afinal de contas, esta coleção tem o desejo de aliar a Literatura a projetos ambientais, sendo, neste sentido, intencional essa relação de aproximação entre a narrativa ficcional e as medidas ambientais para a educação e a cidadania. Penso que será devido a esta singularidade que dois volumes da coleção – “Santiago, O lince da Herdade das Romeiras” e “Mariana, O Urso-pardo Sábio dos Saltimbancos” – fazem parte da lista de livros recomendados pelo Plano Nacional de Leitura. Esperemos que o Barbatus tenha a mesma sorte!
Bom dia,
ResponderEliminarEspero que se encontre bem.
Uma vez mais, agradeço a divulgação das minhas obras.
Um abraço,
Isabel Mateus