À borda do mar ficava o mosteiro, erguido em peanha de granitos erriçados de arestas e cobertos na base de tufos de algas verdenegras. Nascera no dia em que um dos nossos velhos reis alcançara de infiéis um triunfo, conseguindo arrojá-los bem para lá das carairas. Com o tempo, aquela casa, tosca de origem, guerreiramente dentada de seteiras profundas, entrou a merecer pelas suas virtudes a proteção de prelados e infantas. Os cavaleiros que partiam para as conquistas, os príncipes que voltavam das batalhas carregados de despojos, as infantas que iam em Espanha e na Áustria ligar a sua vida à vida aventureira dos grandes capitães e senhores, antes de deixarem a pátria ou ao chegar a ela, entravam a profunda arcaria álgida do templo, a depor no tabernáculo o penhor da sua fé, do seu reconhecimento ou da sua saudade. Nada mais severo que semelhante edificação, por cada raça aumentada e refundida, nas formas arquitetónicas do tempo.
Penetrava-se na igreja por um portal esguio e baixo em ogiva, posto no cimo de uma escadaria de balaústres curvos, onde se engalfinhavam monstros exóticos no mármore das eflorescências poluídas da idade. Sobre o portal e à altura do coro, três rosáceas de vidros corados deixavam jorrar no santuário a púrpura sanguinolenta do sol; por cima, era o coruchéu limoso, entre as duas flechas das torres negras, encimadas de cata-ventos rangentes. À altura da rosácea central, um poste sustentava os dez fios condutores do telégrafo — e dava uma comoção indefinida ver assim ligados, como dois reóforos de pilha voltaica, aqueles dois polos de mundos diversos e separados por dezenas e dezenas de séculos — a casa dos monges e o zinco transmissor da eletricidade. Dentro do templo, parte gótico, parte bárbaro, e no fundo das capelas sombrias em que perpetuamente arfava a luz soturna dos lampadários de bronze, viam-se deitadas em sarcófagos, de volutas multíplices, figuras de bispos e eremitas, cavaleiros e santos, toscas esculturas terríficas, de capacete ao lado e espada aos pés, em cujas lápides se podia coligir e ler, como numa velha crônica fiel, a história completa da nação. Os santos eram ainda mais toscos que as estátuas dos mortos. Tinham as formas hirtas, a expressão feroz e os bárbaros perfis atônitos, desses ídolos que ainda hoje se encontram mutilados nas ruínas dos pagodes indostânicos, sob palmeirais colossos.
As Virgens, revestidas de brocados, cintilantes de incrustações de oiro e pedras e coroadas por diademas do mais singular detalhe, olhavam dos nichos com os olhos de vidro, estendendo as mãos ferozes e grossas, num chuveiro de ameaças.
Em oração, os mártires chagados abriam num espasmo as caras selvagens, flagelando corpos de brutal nudez. Viam-se caindo das paredes, poentos e aluídos pela humidade, painéis de milagres em que Deus era exaltado como um ser feroz e sujeito a caprichos de benevolência, para este ou para aquele, sepultando uns sob as ruínas das casas, roubando a outros as colheitas, fulminando os filhos, matando de fome os pais, e não cedendo nunca da sua raiva faraônica senão à força de procissões e sacrifícios. Naqueles milagres pendentes em galeria das paredes da igreja, uma geração de envilecidos e tristes desfilava, vergada à opressão de senhores, a guerras impiedosas, a fomes, a pestes e terremotos. Alguns tinham ali vindo deixar os cabelos e os vestidos. Muitos, que tinham enfermado de uma perna ou de um seio, ofereciam, experimentando melhores, a imagem em cera ou em prata dessa perna ou desse seio. Mostravam-se, num alpendre da cerca, rumas de lemes, velas e mastaréus, destroços de barcas e ferros de arados, dos miseráveis surpreendidos em perigo de morte que assim tinham comprado a clemência dos santos do mosteiro. Nas aldeias vizinhas, ainda agora se narrava, com fervor místico e secreto medo, a série de prodígios e milagres sucedidos na igreja, em tempos calamitosos.
Por uma fome do ano de 1573 havia aparecido no santuário um braço de fogo sustendo um feixe de espigas. Um físico, que ousara escarnecer de Deus, fora morto por um corisco, ficando negro na mesma hora, nas escadas do altar- mor. E o milagre do pai e do filho, e o das duas cabeças do enforcado... Em tempos del-rei João III nosso senhor, o mosteiro fora entregue aos jesuítas, então no máximo esplendor do seu poderio e fortuna. Era ali que mais de preferência se recolhiam os santos padres de Jesus.
A contemplação do oceano cantando a sua eterna legenda, a linha cáustica entre céu e mar, a solidão e a poesia do sítio, convidavam aqueles homens negros, que a meditação preenchia, como um líquido preenche um vaso. A cerca perdeu nesse tempo uma parte da sua nudez — viram-se os limoeiros e as madressilvas vestir os muros, jorrar água das carrancas dos tanques, e os pomares arredondarem as suas pinhas de verde envernizado. Permitiu-se ao povo que visitasse a horta, os claustros e as grutas de devoção particular. À hora da missa a turba enchia o mosteiro, ávida e devota; as confissões feitas com fervor, mas sem as ameaças do inferno que os antigos monges vociferavam, atraíam simpaticamente os penitentes. E Deus apareceu à terra sob uma face de perdão, que quase se desconhecia.
Cem anos depois, apesar de se guardarem com a maior fidelidade as santas relíquias e milagres do mosteiro, as vetustas tradições estavam esquecidas entre o povo, e poucos se lembravam de ter ouvido aos avós a narrativa das duas cabeças do enforcado, do pai e do filho, e da morte do físico-mor.
Mas eis que o Marquês expulsa os jesuítas, cujo poder e argúcia arcavam com os seus.
Do pórtico escancarado vê-se sair uma procissão de padres negros e fonte pálida, de cruz à frente. As santas mulheres ajoelharam na passagem para lhe beijar os vestidos e receber a última bênção. De novo o mosteiro fica deserto, sem o caráter hospitaleiro de uma casa de conselho e oração consoladora. Os negros fantasmas dos monges ascetas lívidos e frios, pregando abstinências e flagícios, volvem a percorrer os claustros lúgubres e a rezar nas capelas, em que os olhos dos ídolos ameaçam o mundo e proclamam a aniquilação dos povos. Uma treva enluta os espíritos e flutua de em torno às muralhas. Em baixo, o escárnio da vaga que alui pelas cavernas o alicerce de rochas do templo, é como um rir de diabo aos pés de um deus inanimado! De noite, a lua que lança flechas pálidas pelas seteiras profundas para dentro do mosteiro ilumina estranhos conclaves de espectros. O vento segreda nos nichos e à roda dos mausoléus, e baixinho parece orar aos pés do santuário. A chuva infiltra-se nas abóbadas e umedece os cimentos. Dentre as junturas das pedras irrompem gramíneas e zambujais. Ninguém vai ver o mosteiro e o pórtico está fechado. E aquela mole de pedra, emburelada em musgos e erguida à beira do mar, lembra um suicida ajoelhado fazendo a última oração.
No Verão de 1880, o conde F., meu amigo, lembrou-me que poderíamos fazer na sua propriedade uma estação agradável. Tinham acabado nela uma chalé elegantíssimo em tijolo vermelho, com tetos de cortiça apainelada, à beira-mar. O parque de eucaliptos, enorme e cruzado de áleas, que uma areia negra polvilhava, oferecia já troncos de grande espessura e beleza, soberbos e direitos, sacudindo aos ventos salgados da costa os seus molhos de folhas em cutelo. Para o interior a vinha era tão exuberante que subia pelos troncos das árvores, os pomares alastravam-se túrgidos de frutos numa distância de milhas, e nas colinas que demarcavam o domínio imobilizava-se o verde fúnebre dos pinhais, cujos filamentos pareciam cabelos verdes de antigos deuses áricos. Na mata, a caça abundava, coelhos, raposas, perdizes e galinholas. Para obtermos a melhor pesca, bastava que, debruçados na amura de rochedos, lançássemos as redes à água. O calor em Lisboa apertava; imagine-se o que seria no Alentejo, na casa dos meus pais! Decididamente vale a pena ir com F., valia decididamente a pena. E partimos. Antes de penetrar na quinta dei com o mosteiro, em que nunca ouvira falar. Veio-me naturalmente a curiosidade de o ver por detalhe, e passar numa noite, até, com as sombras legendárias e romanescas que tamanho medo faziam às aldeias circunvizinhas.
Por baixo do edifício, o mar tinha escavado profundíssimas cavernas que as algas mais finas tapizavam traiçoeiramente. Estalactites cônicas desciam da abóbada a encontrar estalagmites, em que os moluscos arrastavam mosaicos de incrustações excêntricas. Por entre as colunatas o fragor da ressaca, nas noites de temporal, era de instrumentação titânica, e reboava no templo, como a evocação bíblica do Vale de Josafat.
As grutas prolongavam-se nas trevas em todas as direções, e íamos de gatas, escorregando nas babugens que a maré deixava na dentadura das penedias. de uma vez o archote apagou-se-nos, e o fantástico palácio do mar não tinha termo — galerias sobre galerias, colunas truncadas e janelas abertas sobre a treva fétida e sepulcral!
Visitadas as criptas, penetramos no mosteiro. Tão pesada e ampla construção fez-me ver que a base perdia pouco a pouco a solidez à medida que por baixo a onda ia limando o granito. Aqui e além até, as abóbadas fendiam sorrateiramente; em cada Inverno chuvoso, se sucediam os desabamentos parciais, e o lajedo dos calustros abaulava-se abrindo bocas nas junturas, de que uma respiração pútrida parecia exalar-se. Tínhamos chegado à quinta nos fins de Maio, e em Julho ainda lá estávamos. Mas fatigados já, o conde, especialmente, que o retinham ali negócios de dinheiro, porque dizia sentir o mais autêntico desprezo. Visitado o mosteiro, caçadas todas as perdizes, galinholas e betardas do sítio, ferido nos viveiros naturais da costa um bom golpe de pesca, as nossas duas imaginações impuseram-se o trabalho de descobrir diversão que nos garantisse a estada na quinta até meados de Agosto — tempo de Cascais e do jogo forte.
Uma manhã ergui-me antes do dia e fui acordar o conde.
— Achei, venho participar-to.
— O que achaste tu a esta hora?
— Uma distração, cos diabos!
— Da natureza das outras, aposto. Modificaste o feitio dos papagaios, hem?
— Ora adeus ! — disse eu rindo.
— Então diz lá.
— Sabes que me dou um pouco à telegrafia?
— Não tens lucrado muito com isso, não.
— Vais ver que se lucra sempre em saber as coisas. Vou mandar vir o meu transmissor aperfeiçoado e fios condutores.
— E estabeleces um telégrafo entre o chalé e a casa da Palmeira. Estás tolo com toda a certeza.
— Mau! Ouve.
— Bem! Diz.
— Liga o transmissor por meio de fios, aos dez fios telegráficos que se apoiam na rosácea do mosteiro. E recebemos os telegramas fresquinhos e sem pagar nada. Hem?
— Mas — disse o conde encantado —, é preciso que vamos habitar os mosteiro.
— E porque não?
Ele deu um salto na cama.
— Mas é esplêndido!
— Decerto.
— E pode-se alarmar o País.
— Não vejo como.
— Nem eu, cos diabos, mas pode-se alarmar.
— Bem…
— E é como se os telegramas nos fossem enviados diretamente, como se nos obedecessem a agência Havas, os gabinetes da Europa, as grandes capitais, o Oriente e o diabo que te leve, que nos leve e leve todo o mundo!
— Eia!
— E podemos incendiar o orbe.
— Pelo telégrafo? Que ideia fazes do telégrafo.
— Eu, nenhuma. Não morde?
— Conhecendo as pessoas não.
— Tanto melhor! E quando teremos os aparelhos?
— Amanhã.
— Telegrama que passe, hem?..
— Não escapa!
— E grátis, gratuites, sem pagar nada, hem?
— Claríssimo!
— Dá cá um chocho pela ideia.
— Prefiro um cálix de Madeira.
No outro dia o transmissor chegou com o rolo de fios, metemo-nos à obra. Às cinco da tarde recebemos o primeiro telegrama.
«Sampetersburgo, 8, às horas da manhã. — Uma bomba explosiva rebentou junto do czar, quando este se preparava para montar a cavalo. A polícia procede a investigações — Havas.»
— Este diabo escapa sempre. É extraordinário.
— Aí vem outro.
— Vou jurar que é bomba, que ainda desta vez não alcançou o invulnerável.
— Nada. «Paris, oito, à uma hora. — Chegou a embaixada Birman e partiu o Sr. Grévy.»
— Todos para casa do diabo.
Estávamos no coro de mármore branco, com baixos-relevos representando martírios de santos. Das paineluras negras, monges e virgens perdiam-se na penumbra da abóbada deslocada pelo templo com uma vastidão de crepes. As estátuas dos monges e cavaleiros pareciam colossais, de imóveis nos mausoléus, essa austeridade das figuras de Miguel Ângelo no túmulo dos Médicis.
— É triste isto! — disse eu comovido.
A perspetiva do mar, roxo da banda do nascente, tinha irritações animais até à linha rubra do ocaso — dorso de cetáceo ensanguentado pelo arpéu do sol moribundo. A vista, que percorrendo a imensidade líquida sem repousar num ponto, voltava com um desalento de ave ferida, trazia a ideia da morte e a saudade de uma existência menos crua, nesses ditirâmbicos impérios em que as cabeças se coroam de flores.
De repente, na absorção em que tínhamos caído, pareceu-me que um frêmito percorrera o balaústre onde me encostava. E cada vez mais distantes, foram-se sucedendo estalidos secos.
— Não ouviste? — disse eu ao conde. Ele não tinha ouvido.
— O quê?
— Parece que isto tremeu.
— É que tu escutas. E como estás com medo..
Pusemo-nos a rir.
— Sabes que mais? Vamos passar a noite ao chalé.
— Cobarde!
— Tanto melhor! E se esta dança nos caísse em cima?
— Oh, diabo! Podia ser que não ficássemos vivos, não te parece?
— Quase.
— Então vamos. Primeiro a tua saúde.
— Obrigado. Queres que eu tenha medo por nós dois.
— Mas os telegramas?
— Amanhã continuaremos na exploração.
— Olha bem para mim. Isto não é exploração ou roubo, hem?
— Seja roubo. Anda.
— Então dá às coisas os verdadeiros nomes, irra!
Descemos. Aqueles estalidos tinham-me dado calafrios, palavra de honra.
— Como tu vens enfiado! — dizia F., troçando.
— Como tu vens amarelo!
— Qual de nós teve maior susto?
— Foste tu; pois quem?
— E se ficasses na derrocada, ó conde?
— Não tinha pena, palavra.
— Bem, não falemos mais em tal.
— Mas amanhã continuaremos com os telegramas?
— Decerto.
— E eles que chegam como garraios!
No dia seguinte, era meio-dia quando acabamos de almoçar. O conde bebia como um saxônio, para honrar a memória do irmão do seu tio, dizia, honrado comerciante londrino do Cais do Sodré.
— Em plena luz é sob a pressão de quatro garrafórias ninguém tem medo. Vamos ao telegramas?
Deitamos caminho do mosteiro, e entoando o God Save The - Quem aparecemos ante o portal gótico do templo. F. gritou zombeteiramente:
— Adiante! — Era ele quem tinha medo.
Subi ao coro. Na fita de papel, sempre em movimento e desenrolando-se com imperturbável presteza, no cilindro de aço anexo ao aparelho, o punção do recetor tinha escrito, horas antes, este telegrama:
O que dirá
«Paris, 9, às 10 horas da manhã. — Terminou o prazo de 24 horas concedido aos jesuítas de Paris para saírem das casas que ocupavam e fecharem os cursos públicos que regiam. Hoje, às II horas, a polícia fará despejar todos os estabelecimento da Companhia de Jesus. Receiam-se distúrbios. O prazo de 15 dias foi cedido aos estabelecimentos da mesma Ordem, em atividade em toda a França.»
— A padralhada vai ficar fula! — gritou F. — padre Kurpi, respeitado e escanhoado diretor espiritual da minha tia baronesa? Eh! que vai tudo raso!
— Uma hora. Isto enfastia. Vamos às ostras.
— Não vejo inconveniente — disse o conde com um jogo de ombros. — Vamos lá.
— Se passar algum telegrama, o punção deixa na fita escrito o que houver.
Descemos aos rochedos e das rochas à areia. A maré enchia, e uma água cristalina e tépida, do sol no zênite, acariciava lubricamente as barbaças das cariátides de alga que à boca da gruta faziam carantonhas.
— Já fizeste a digestão? — inquiriu F.
— Já, e tu? E o banho está tão patife!. .
— Nesse caso atiremo-nos à água.
— Vá feito.
Em cinco minutos, as nossas cabeças saíam à flor do oceano como a desses tritões alegres que nas estampas rodeiam os carros em concha dos deuses marinhos. Nadávamos a distância em frente da caverna, que vista daquele ponto tinha as mais singulares parecenças com uma boca de réptil descomunal.
— Repara — dizia eu apontando. — Aquele fita de areia clara que forra a entrada é como um beiço estendido. Depois, logo as primeiras pedras aguçadas compõem a porção incisiva e canina da dentadura. Olha para o fundo. Vês as estalactites cônicas que descem do teto? São os dentes do crocodilo com fome. Olha mais para o fundo, aquela arcada incompleta — é a goela. Lá tens a úvula, o céu-da-boca retalhado de sulcos negros. Agora para cima da boca, aquela buracaria em triângulo. Primeiro temos as narinas, ferozes e dilatadas. Nas horas de borrasca a água esguicha por ali, como dos respiros de uma baleia. E os olhos, tão profundos e sem órbita! Depois a cabeça, toucada do barrete gótico do mosteiro.
— É original! — dizia F. reparando.
— É terrível — juntei eu.
Continuamos a nadar. Um zumbido de vida exuberante saía da água. De cabeça estendida, eu olhava a caverna. Parecia-me ter notado um movimento lateral de maxilas, na estranha boca do inferno. O monstro triturava. Diabo!
Ri-me dali a pouco do poder da minha imaginação, irritada ante aquele cenário de titãs.
A faiscação do astro vestia o cetáceo do mar numa couraça de relâmpagos, e uma rede de oiro amoldava-se à ondulação do monstro respirando. Mas então notei que as estalactites oscilavam, e as fauces do antro se uniam numa estrangulação de raiva. Dessa garganta formidável de agonizante, um oceano arremessou contra nós montanhas de água negra, fervilhando em espuma sulfídrica.
A violência do jacto foi tamanha que ambos nós, eu e o conde, fomos morder a areia do fundo, distante da caverna como estávamos. Das entranhas da terra saíram rugidos como se o mundo fizesse derrocada — vimos mexer o convento, abaterem-se as flechas das torres, desabar a abóbada com fracasso indescritível —, a vaga atirou-se raivando de encontro aos destroços como um molosso aos peitos de um vencido. E meia hora depois, no sítio do mosteiro assentava a pirâmide torva dos destroços, sobre que as gaivotas aos gritos descreviam as suas espiras fatídicas.
Chegado à praia e envergando o fato, o meu primeiro cuidado foi ver as horas.
— Três e meia! A derrocada tinha portanto sido às três, no dia nove de Junho de mil oitocentos e oitenta.
O conde chegou a casa sem poder falar. Nunca assistira a espetáculo mais grandioso. Nem o incêndio do Banco.
Dias depois, um criado da quinta veio trazer-nos intacto o recetor que pudera salvar nas ruínas, e um bocado de papel onde estava escrito a punção o seguinte telegrama:
«Paris, 9) às 3 da tarde. Completou-se em Paris a expulsão dos jesuítas. O povo assistiu sem protesto ao cumprimento dos decretos da República. Reina sossego.»
Pois que o povo era indiferente, a pedra quisera protestar, derruindo, contra essa lei que afugentava, implacável, as tristes ovelhas do Senhor!
Penetrava-se na igreja por um portal esguio e baixo em ogiva, posto no cimo de uma escadaria de balaústres curvos, onde se engalfinhavam monstros exóticos no mármore das eflorescências poluídas da idade. Sobre o portal e à altura do coro, três rosáceas de vidros corados deixavam jorrar no santuário a púrpura sanguinolenta do sol; por cima, era o coruchéu limoso, entre as duas flechas das torres negras, encimadas de cata-ventos rangentes. À altura da rosácea central, um poste sustentava os dez fios condutores do telégrafo — e dava uma comoção indefinida ver assim ligados, como dois reóforos de pilha voltaica, aqueles dois polos de mundos diversos e separados por dezenas e dezenas de séculos — a casa dos monges e o zinco transmissor da eletricidade. Dentro do templo, parte gótico, parte bárbaro, e no fundo das capelas sombrias em que perpetuamente arfava a luz soturna dos lampadários de bronze, viam-se deitadas em sarcófagos, de volutas multíplices, figuras de bispos e eremitas, cavaleiros e santos, toscas esculturas terríficas, de capacete ao lado e espada aos pés, em cujas lápides se podia coligir e ler, como numa velha crônica fiel, a história completa da nação. Os santos eram ainda mais toscos que as estátuas dos mortos. Tinham as formas hirtas, a expressão feroz e os bárbaros perfis atônitos, desses ídolos que ainda hoje se encontram mutilados nas ruínas dos pagodes indostânicos, sob palmeirais colossos.
As Virgens, revestidas de brocados, cintilantes de incrustações de oiro e pedras e coroadas por diademas do mais singular detalhe, olhavam dos nichos com os olhos de vidro, estendendo as mãos ferozes e grossas, num chuveiro de ameaças.
Em oração, os mártires chagados abriam num espasmo as caras selvagens, flagelando corpos de brutal nudez. Viam-se caindo das paredes, poentos e aluídos pela humidade, painéis de milagres em que Deus era exaltado como um ser feroz e sujeito a caprichos de benevolência, para este ou para aquele, sepultando uns sob as ruínas das casas, roubando a outros as colheitas, fulminando os filhos, matando de fome os pais, e não cedendo nunca da sua raiva faraônica senão à força de procissões e sacrifícios. Naqueles milagres pendentes em galeria das paredes da igreja, uma geração de envilecidos e tristes desfilava, vergada à opressão de senhores, a guerras impiedosas, a fomes, a pestes e terremotos. Alguns tinham ali vindo deixar os cabelos e os vestidos. Muitos, que tinham enfermado de uma perna ou de um seio, ofereciam, experimentando melhores, a imagem em cera ou em prata dessa perna ou desse seio. Mostravam-se, num alpendre da cerca, rumas de lemes, velas e mastaréus, destroços de barcas e ferros de arados, dos miseráveis surpreendidos em perigo de morte que assim tinham comprado a clemência dos santos do mosteiro. Nas aldeias vizinhas, ainda agora se narrava, com fervor místico e secreto medo, a série de prodígios e milagres sucedidos na igreja, em tempos calamitosos.
Por uma fome do ano de 1573 havia aparecido no santuário um braço de fogo sustendo um feixe de espigas. Um físico, que ousara escarnecer de Deus, fora morto por um corisco, ficando negro na mesma hora, nas escadas do altar- mor. E o milagre do pai e do filho, e o das duas cabeças do enforcado... Em tempos del-rei João III nosso senhor, o mosteiro fora entregue aos jesuítas, então no máximo esplendor do seu poderio e fortuna. Era ali que mais de preferência se recolhiam os santos padres de Jesus.
A contemplação do oceano cantando a sua eterna legenda, a linha cáustica entre céu e mar, a solidão e a poesia do sítio, convidavam aqueles homens negros, que a meditação preenchia, como um líquido preenche um vaso. A cerca perdeu nesse tempo uma parte da sua nudez — viram-se os limoeiros e as madressilvas vestir os muros, jorrar água das carrancas dos tanques, e os pomares arredondarem as suas pinhas de verde envernizado. Permitiu-se ao povo que visitasse a horta, os claustros e as grutas de devoção particular. À hora da missa a turba enchia o mosteiro, ávida e devota; as confissões feitas com fervor, mas sem as ameaças do inferno que os antigos monges vociferavam, atraíam simpaticamente os penitentes. E Deus apareceu à terra sob uma face de perdão, que quase se desconhecia.
Cem anos depois, apesar de se guardarem com a maior fidelidade as santas relíquias e milagres do mosteiro, as vetustas tradições estavam esquecidas entre o povo, e poucos se lembravam de ter ouvido aos avós a narrativa das duas cabeças do enforcado, do pai e do filho, e da morte do físico-mor.
Mas eis que o Marquês expulsa os jesuítas, cujo poder e argúcia arcavam com os seus.
Do pórtico escancarado vê-se sair uma procissão de padres negros e fonte pálida, de cruz à frente. As santas mulheres ajoelharam na passagem para lhe beijar os vestidos e receber a última bênção. De novo o mosteiro fica deserto, sem o caráter hospitaleiro de uma casa de conselho e oração consoladora. Os negros fantasmas dos monges ascetas lívidos e frios, pregando abstinências e flagícios, volvem a percorrer os claustros lúgubres e a rezar nas capelas, em que os olhos dos ídolos ameaçam o mundo e proclamam a aniquilação dos povos. Uma treva enluta os espíritos e flutua de em torno às muralhas. Em baixo, o escárnio da vaga que alui pelas cavernas o alicerce de rochas do templo, é como um rir de diabo aos pés de um deus inanimado! De noite, a lua que lança flechas pálidas pelas seteiras profundas para dentro do mosteiro ilumina estranhos conclaves de espectros. O vento segreda nos nichos e à roda dos mausoléus, e baixinho parece orar aos pés do santuário. A chuva infiltra-se nas abóbadas e umedece os cimentos. Dentre as junturas das pedras irrompem gramíneas e zambujais. Ninguém vai ver o mosteiro e o pórtico está fechado. E aquela mole de pedra, emburelada em musgos e erguida à beira do mar, lembra um suicida ajoelhado fazendo a última oração.
No Verão de 1880, o conde F., meu amigo, lembrou-me que poderíamos fazer na sua propriedade uma estação agradável. Tinham acabado nela uma chalé elegantíssimo em tijolo vermelho, com tetos de cortiça apainelada, à beira-mar. O parque de eucaliptos, enorme e cruzado de áleas, que uma areia negra polvilhava, oferecia já troncos de grande espessura e beleza, soberbos e direitos, sacudindo aos ventos salgados da costa os seus molhos de folhas em cutelo. Para o interior a vinha era tão exuberante que subia pelos troncos das árvores, os pomares alastravam-se túrgidos de frutos numa distância de milhas, e nas colinas que demarcavam o domínio imobilizava-se o verde fúnebre dos pinhais, cujos filamentos pareciam cabelos verdes de antigos deuses áricos. Na mata, a caça abundava, coelhos, raposas, perdizes e galinholas. Para obtermos a melhor pesca, bastava que, debruçados na amura de rochedos, lançássemos as redes à água. O calor em Lisboa apertava; imagine-se o que seria no Alentejo, na casa dos meus pais! Decididamente vale a pena ir com F., valia decididamente a pena. E partimos. Antes de penetrar na quinta dei com o mosteiro, em que nunca ouvira falar. Veio-me naturalmente a curiosidade de o ver por detalhe, e passar numa noite, até, com as sombras legendárias e romanescas que tamanho medo faziam às aldeias circunvizinhas.
Por baixo do edifício, o mar tinha escavado profundíssimas cavernas que as algas mais finas tapizavam traiçoeiramente. Estalactites cônicas desciam da abóbada a encontrar estalagmites, em que os moluscos arrastavam mosaicos de incrustações excêntricas. Por entre as colunatas o fragor da ressaca, nas noites de temporal, era de instrumentação titânica, e reboava no templo, como a evocação bíblica do Vale de Josafat.
As grutas prolongavam-se nas trevas em todas as direções, e íamos de gatas, escorregando nas babugens que a maré deixava na dentadura das penedias. de uma vez o archote apagou-se-nos, e o fantástico palácio do mar não tinha termo — galerias sobre galerias, colunas truncadas e janelas abertas sobre a treva fétida e sepulcral!
Visitadas as criptas, penetramos no mosteiro. Tão pesada e ampla construção fez-me ver que a base perdia pouco a pouco a solidez à medida que por baixo a onda ia limando o granito. Aqui e além até, as abóbadas fendiam sorrateiramente; em cada Inverno chuvoso, se sucediam os desabamentos parciais, e o lajedo dos calustros abaulava-se abrindo bocas nas junturas, de que uma respiração pútrida parecia exalar-se. Tínhamos chegado à quinta nos fins de Maio, e em Julho ainda lá estávamos. Mas fatigados já, o conde, especialmente, que o retinham ali negócios de dinheiro, porque dizia sentir o mais autêntico desprezo. Visitado o mosteiro, caçadas todas as perdizes, galinholas e betardas do sítio, ferido nos viveiros naturais da costa um bom golpe de pesca, as nossas duas imaginações impuseram-se o trabalho de descobrir diversão que nos garantisse a estada na quinta até meados de Agosto — tempo de Cascais e do jogo forte.
Uma manhã ergui-me antes do dia e fui acordar o conde.
— Achei, venho participar-to.
— O que achaste tu a esta hora?
— Uma distração, cos diabos!
— Da natureza das outras, aposto. Modificaste o feitio dos papagaios, hem?
— Ora adeus ! — disse eu rindo.
— Então diz lá.
— Sabes que me dou um pouco à telegrafia?
— Não tens lucrado muito com isso, não.
— Vais ver que se lucra sempre em saber as coisas. Vou mandar vir o meu transmissor aperfeiçoado e fios condutores.
— E estabeleces um telégrafo entre o chalé e a casa da Palmeira. Estás tolo com toda a certeza.
— Mau! Ouve.
— Bem! Diz.
— Liga o transmissor por meio de fios, aos dez fios telegráficos que se apoiam na rosácea do mosteiro. E recebemos os telegramas fresquinhos e sem pagar nada. Hem?
— Mas — disse o conde encantado —, é preciso que vamos habitar os mosteiro.
— E porque não?
Ele deu um salto na cama.
— Mas é esplêndido!
— Decerto.
— E pode-se alarmar o País.
— Não vejo como.
— Nem eu, cos diabos, mas pode-se alarmar.
— Bem…
— E é como se os telegramas nos fossem enviados diretamente, como se nos obedecessem a agência Havas, os gabinetes da Europa, as grandes capitais, o Oriente e o diabo que te leve, que nos leve e leve todo o mundo!
— Eia!
— E podemos incendiar o orbe.
— Pelo telégrafo? Que ideia fazes do telégrafo.
— Eu, nenhuma. Não morde?
— Conhecendo as pessoas não.
— Tanto melhor! E quando teremos os aparelhos?
— Amanhã.
— Telegrama que passe, hem?..
— Não escapa!
— E grátis, gratuites, sem pagar nada, hem?
— Claríssimo!
— Dá cá um chocho pela ideia.
— Prefiro um cálix de Madeira.
No outro dia o transmissor chegou com o rolo de fios, metemo-nos à obra. Às cinco da tarde recebemos o primeiro telegrama.
«Sampetersburgo, 8, às horas da manhã. — Uma bomba explosiva rebentou junto do czar, quando este se preparava para montar a cavalo. A polícia procede a investigações — Havas.»
— Este diabo escapa sempre. É extraordinário.
— Aí vem outro.
— Vou jurar que é bomba, que ainda desta vez não alcançou o invulnerável.
— Nada. «Paris, oito, à uma hora. — Chegou a embaixada Birman e partiu o Sr. Grévy.»
— Todos para casa do diabo.
Estávamos no coro de mármore branco, com baixos-relevos representando martírios de santos. Das paineluras negras, monges e virgens perdiam-se na penumbra da abóbada deslocada pelo templo com uma vastidão de crepes. As estátuas dos monges e cavaleiros pareciam colossais, de imóveis nos mausoléus, essa austeridade das figuras de Miguel Ângelo no túmulo dos Médicis.
— É triste isto! — disse eu comovido.
A perspetiva do mar, roxo da banda do nascente, tinha irritações animais até à linha rubra do ocaso — dorso de cetáceo ensanguentado pelo arpéu do sol moribundo. A vista, que percorrendo a imensidade líquida sem repousar num ponto, voltava com um desalento de ave ferida, trazia a ideia da morte e a saudade de uma existência menos crua, nesses ditirâmbicos impérios em que as cabeças se coroam de flores.
De repente, na absorção em que tínhamos caído, pareceu-me que um frêmito percorrera o balaústre onde me encostava. E cada vez mais distantes, foram-se sucedendo estalidos secos.
— Não ouviste? — disse eu ao conde. Ele não tinha ouvido.
— O quê?
— Parece que isto tremeu.
— É que tu escutas. E como estás com medo..
Pusemo-nos a rir.
— Sabes que mais? Vamos passar a noite ao chalé.
— Cobarde!
— Tanto melhor! E se esta dança nos caísse em cima?
— Oh, diabo! Podia ser que não ficássemos vivos, não te parece?
— Quase.
— Então vamos. Primeiro a tua saúde.
— Obrigado. Queres que eu tenha medo por nós dois.
— Mas os telegramas?
— Amanhã continuaremos na exploração.
— Olha bem para mim. Isto não é exploração ou roubo, hem?
— Seja roubo. Anda.
— Então dá às coisas os verdadeiros nomes, irra!
Descemos. Aqueles estalidos tinham-me dado calafrios, palavra de honra.
— Como tu vens enfiado! — dizia F., troçando.
— Como tu vens amarelo!
— Qual de nós teve maior susto?
— Foste tu; pois quem?
— E se ficasses na derrocada, ó conde?
— Não tinha pena, palavra.
— Bem, não falemos mais em tal.
— Mas amanhã continuaremos com os telegramas?
— Decerto.
— E eles que chegam como garraios!
No dia seguinte, era meio-dia quando acabamos de almoçar. O conde bebia como um saxônio, para honrar a memória do irmão do seu tio, dizia, honrado comerciante londrino do Cais do Sodré.
— Em plena luz é sob a pressão de quatro garrafórias ninguém tem medo. Vamos ao telegramas?
Deitamos caminho do mosteiro, e entoando o God Save The - Quem aparecemos ante o portal gótico do templo. F. gritou zombeteiramente:
— Adiante! — Era ele quem tinha medo.
Subi ao coro. Na fita de papel, sempre em movimento e desenrolando-se com imperturbável presteza, no cilindro de aço anexo ao aparelho, o punção do recetor tinha escrito, horas antes, este telegrama:
O que dirá
«Paris, 9, às 10 horas da manhã. — Terminou o prazo de 24 horas concedido aos jesuítas de Paris para saírem das casas que ocupavam e fecharem os cursos públicos que regiam. Hoje, às II horas, a polícia fará despejar todos os estabelecimento da Companhia de Jesus. Receiam-se distúrbios. O prazo de 15 dias foi cedido aos estabelecimentos da mesma Ordem, em atividade em toda a França.»
— A padralhada vai ficar fula! — gritou F. — padre Kurpi, respeitado e escanhoado diretor espiritual da minha tia baronesa? Eh! que vai tudo raso!
— Uma hora. Isto enfastia. Vamos às ostras.
— Não vejo inconveniente — disse o conde com um jogo de ombros. — Vamos lá.
— Se passar algum telegrama, o punção deixa na fita escrito o que houver.
Descemos aos rochedos e das rochas à areia. A maré enchia, e uma água cristalina e tépida, do sol no zênite, acariciava lubricamente as barbaças das cariátides de alga que à boca da gruta faziam carantonhas.
— Já fizeste a digestão? — inquiriu F.
— Já, e tu? E o banho está tão patife!. .
— Nesse caso atiremo-nos à água.
— Vá feito.
Em cinco minutos, as nossas cabeças saíam à flor do oceano como a desses tritões alegres que nas estampas rodeiam os carros em concha dos deuses marinhos. Nadávamos a distância em frente da caverna, que vista daquele ponto tinha as mais singulares parecenças com uma boca de réptil descomunal.
— Repara — dizia eu apontando. — Aquele fita de areia clara que forra a entrada é como um beiço estendido. Depois, logo as primeiras pedras aguçadas compõem a porção incisiva e canina da dentadura. Olha para o fundo. Vês as estalactites cônicas que descem do teto? São os dentes do crocodilo com fome. Olha mais para o fundo, aquela arcada incompleta — é a goela. Lá tens a úvula, o céu-da-boca retalhado de sulcos negros. Agora para cima da boca, aquela buracaria em triângulo. Primeiro temos as narinas, ferozes e dilatadas. Nas horas de borrasca a água esguicha por ali, como dos respiros de uma baleia. E os olhos, tão profundos e sem órbita! Depois a cabeça, toucada do barrete gótico do mosteiro.
— É original! — dizia F. reparando.
— É terrível — juntei eu.
Continuamos a nadar. Um zumbido de vida exuberante saía da água. De cabeça estendida, eu olhava a caverna. Parecia-me ter notado um movimento lateral de maxilas, na estranha boca do inferno. O monstro triturava. Diabo!
Ri-me dali a pouco do poder da minha imaginação, irritada ante aquele cenário de titãs.
A faiscação do astro vestia o cetáceo do mar numa couraça de relâmpagos, e uma rede de oiro amoldava-se à ondulação do monstro respirando. Mas então notei que as estalactites oscilavam, e as fauces do antro se uniam numa estrangulação de raiva. Dessa garganta formidável de agonizante, um oceano arremessou contra nós montanhas de água negra, fervilhando em espuma sulfídrica.
A violência do jacto foi tamanha que ambos nós, eu e o conde, fomos morder a areia do fundo, distante da caverna como estávamos. Das entranhas da terra saíram rugidos como se o mundo fizesse derrocada — vimos mexer o convento, abaterem-se as flechas das torres, desabar a abóbada com fracasso indescritível —, a vaga atirou-se raivando de encontro aos destroços como um molosso aos peitos de um vencido. E meia hora depois, no sítio do mosteiro assentava a pirâmide torva dos destroços, sobre que as gaivotas aos gritos descreviam as suas espiras fatídicas.
Chegado à praia e envergando o fato, o meu primeiro cuidado foi ver as horas.
— Três e meia! A derrocada tinha portanto sido às três, no dia nove de Junho de mil oitocentos e oitenta.
O conde chegou a casa sem poder falar. Nunca assistira a espetáculo mais grandioso. Nem o incêndio do Banco.
Dias depois, um criado da quinta veio trazer-nos intacto o recetor que pudera salvar nas ruínas, e um bocado de papel onde estava escrito a punção o seguinte telegrama:
«Paris, 9) às 3 da tarde. Completou-se em Paris a expulsão dos jesuítas. O povo assistiu sem protesto ao cumprimento dos decretos da República. Reina sossego.»
Pois que o povo era indiferente, a pedra quisera protestar, derruindo, contra essa lei que afugentava, implacável, as tristes ovelhas do Senhor!
Fialho de Almeida - Contos (1881)
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