Por: Fernando Calado
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)
Hoje estou de férias, na ausência das rotinas que nos plasmam a vida e o tempo. Lembrei-me de ti e senti vontade de te abraçar, dar-te a mão para nos perdermos na cidade, como tu gostavas, sem falar de amor… só da amizade que fica. O Verão fez-se azul e o sol desenha sombras nos quintais cheios de sede. Adivinho-te imaterial como a penumbra do teu último sorriso.
A cidade sufoca na imensidão de todos os desertos. As férias me estranham e sobra-me o tempo, no vermelho das cerejas e na doçura dos pêssegos. Despi o fato, levantei-me tarde e como um rapaz vou até à esplanada do café, onde casais ainda felizes namoram, os homens falam de futebol e política e as mulheres mal arrumadas, no abandono das férias, tomam o pequeno-almoço e fumam ávidas imensos cigarros. São elas as habitantes dum bairro de prédios em altura, que vieram para a cidade mas continuam a sentir a nostalgia dos grandes largos e das fontes da aldeia.
Uma idosa fala sozinha e cisma no desconsolo dum estar sem esperança, nem afectos. No abandono do estar, chega uma mulher pálida, de olhar sombrio. Óculos escuros. Ao lado comentam que o marido lhe bate. Empurrou-a, bateu com a cabeça na esquina da cama. Foi ao hospital. Sem querer, revivo as memórias trágicas de outro hospital envolto na sombra. Ela disse que tinha caído nas escadas. O médico não acreditou. Era um caso de polícia. Mas ela não quis falar. E aqui estava eu partilhando infelicidades, mas ao mesmo tempo sentindo uma satisfação estranha e sem motivo, vivendo este falso anonimato, este estar ausente numa cidade onde toda a gente se conhece. Comprei o jornal, pedi uma água com sabor a limão e sentia-me bem, com um ar fresco, como se tivesse regressado ao passado sem preocupações, nem responsabilidades, onde só era preciso deixar o tempo correr e dizer um bom dia muito afectuoso e cúmplice aos conhecidos de circunstância.
Entretanto chegou um professor da Faculdade de Filosofia, meu amigo, que já não via há muitos anos. É um homem sábio e experiente em interpretar o mundo e a precariedade da natureza humana. Falamos de muitas coisas, de questões filosóficas, de política, de mulheres bonitas, de mulheres que deixam a casa e a domesticidade bem portuguesa e fazem doutoramentos porque o mundo está a mudar, rumo a uma nova ética e à afirmação científica da sociedade matriarcal.
Também tu tinhas feito o doutoramento e a tua presença cristalina desenhou-se nas longas sebes de roseiras que perfumam a cidade. E não me esqueci de ti! - Gostei de te ver meu amigo, tu pensas bem e pensas doce, como se tivesses medo de magoar o outro na diversidade precária das ideias. Disse o meu amigo. Não soube o que dizer. Já noutro tempo um Deputado Municipal me tinha dito o mesmo: - O teu discurso é sempre tão positivo que quando argumentas e o debate aquece, quase dizes como um enfermeiro: - desculpe mas vou ter de lhe dar uma injecção! Eu sou um pouco assim e muitas vezes e sem querer trauteio a canção do Godinho: “(…) que força é essa amigo que te põe de bem com os outros e de mal contigo?” - Vim baptizar a filha de um amigo meu. Tu sabes que eu sou padre? Vocação tardia.
Disse o meu amigo, quase como quem pede desculpa pelo conflito possível ao nível das ideias entre a ciência, o profano e o religioso. - Ainda bem que tenho um amigo padre e sábio, pois acho que estou em pecado mortal mas preciso dum passaporte para o Céu. O meu amigo sorriu e sem grandes certezas disse somente que o céu, ou o inferno, está no coração dos homens. Tão perto.
Fiquei aliviado e com a esperança que um dia o meu coração inquieto repousará ao lado de Deus Pai todo-poderoso. Não havia nuvens no céu.
De seguida trocamos os números do telemóvel e email e o meu amigo levantou-se, deixando-me a convicção que o céu esta muito mais perto do que nós pensamos. Em jeito de despedida ainda disse: - Quando escreves outro livro?! - Sobre o quê?! Lembrei-me do teu sorriso. - Olha, as pessoas andam muito triste… fala de coisas bonitas… fala das rosas… é tempo das rosas! Sem pressa, apertou-me demoradamente a mão e fez um sinal em jeito de bênção.
Talvez os anjos pousem nos beirais das casas. E foi-se embora!
Fernando Calado nasceu em 1951, em Milhão, Bragança. É licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto e foi professor de Filosofia na Escola Secundária Abade de Baçal em Bragança. Curriculares do doutoramento na Universidade de Valladolid. Foi ainda professor na Escola Superior de Saúde de Bragança e no Instituto Jean Piaget de Macedo de Cavaleiros. Exerceu os cargos de Delegado dos Assuntos Consulares, Coordenador do Centro da Área Educativa e de Diretor do Centro de Formação Profissional do IEFP em Bragança.
Publicou com assiduidade artigos de opinião e literários em vários Jornais. Foi diretor da revista cultural e etnográfica “Amigos de Bragança”.
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(Henrique Martins)
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Parabéns, Fernando Calado. Muito bem escrito, com belas imagens e figuras de estilo, como tu tão bem sabes fazer. Adorei ler. Um abraço.
ResponderEliminarCaro colega Fernando Calado: Lindo texto. Orgulho-mede tê-lo no mesmo blog.
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