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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

segunda-feira, 5 de maio de 2014

Os Caretos de Podence: o Renascer de uma Cultura Popular e Tradicional.

Segundo Tiza, em Portugal, as terras do interior, que durante muito tempo estiveram isoladas e imunes às influências exteriores, não excluíram as suas vivências carnavalescas; pelo contrário, tentaram preservar as suas características mais ancestrais recriando o imaginário das tradições carnavalescas.
Um exemplo desta realidade é o caso, bem presente nos nossos dias, da aldeia de Podence, que não deixa perder a sua identidade, renovando-a ano após ano.
Os Caretos despedem-se do Inverno e saúdam a Primavera.
Como muito bem nos lembra Tiza (2004), é em Fevereiro, que os homens vestem os seus trajes coloridos e escondem a cara entre a máscara, colocam à cintura uma enfiada de chocalhos com campainhas e aí vão eles pela rua fora, dependendo só da sua energia, comunicar ao povo os dias maiores que estão a chegar, louvando com todo o fervor o deus Sol.
Toda esta folia, segundo alguns autores, antecede o início da Quaresma.
A Quaresma representa, no calendário religioso, um período, de calma, reflexão e contenção, não esquecendo o ditado popular “cansar no Carnaval para acalmar até à Páscoa”. (Pereira: 1973, p.71).
As festas tradicionais carnavalescas, imergem das antigas festas da Natureza, ou seja, as saturnais romanas e as lupercais celebradas em honra do deus Pan – uma divindade da mitologia grega – sendo, como refere Tiza, o “Deus dos pastores e do rebanho” (Tiza: 2004, p.255). Em sua honra celebram-se as festividades agrárias do início da Primavera, com o intuito de acalmar a ira dos céus e garantir favores de uma boa colheita.
De acordo com o mesmo autor, é neste mundo que o Homem cria formas mágicas, míticas, ritualistas e lúdicas escondendo-se nos seus disfarces que se chamam máscaras, adaptando-as a vários aspectos das forças naturais e demoníacas.
Importa antes de mais lembrar que Podence é uma localidade que faz parte da zona demarcada como “terra quente”, onde a principal actividade da população é a agricultura e a criação de gado. É da terra que se extraem os cereais, e sobretudo a castanha, em grande quantidade, que contribui decisivamente para o sustento das gentes.
É esta aldeia que não deixa morrer as suas tradições, assim permitindo que estejam bem presentes na nossa mente e lembrando aos mais novos todo o seu encanto e beleza.
Em Podence, não se concebe o Carnaval sem as enigmáticas figuras dos Caretos. Segundo Pereira (1973), e de acordo com outros autores, são os Caretos que animam toda a ritualidade destes dias de folia, dando cor e vida às ruas de Podence. Esta tradição vai crescendo ano após ano, sem que se perca no tempo, apesar de ter estado adormecida nos anos 70, isto em consequência de estarmos num período político caracterizado por uma ditadura e uma democracia nascente e, ainda, em resultado do fenómeno de emigração, tendo começando a ser recuperada na década de 80.
Nesta localidade do Nordeste Transmontano, a máscara é, de acordo com a opinião de Tiza (2004) – consonante com a de outros autores – rudimentar, feita de lata, condicionada por ser realizada com um material rígido e pobre, sendo por isso muito modesta. Este material é recuperado de velhas latas, com símbolos e marcas de fabrico, e apresenta o rosto de um ser humano; é pintado de vermelho ou preto, tem um nariz pontiagudo, o que prefigura um aspecto fantástico.
Os seus fatos vistosos são de fabrico caseiro, constituídos por calça e casaco com capuz de espessas franjas, que são talhados de colchas vermelhas, com aplicações de franjas de lã de carneiro tingida e bastante colorida, onde predominam as cores laranja, verde, vermelho, amarelo, muito parecidas com as do ciclo de Inverno. Actualmente, a lã tradicional, que era fiada e tingida pelas artesãs, foi substituída por lã sintética com vários tons.
O mesmo autor refere que trazem a tiracolo coleiras de gado com campainhas e, a toda a volta da cintura, uma enfiada de chocalhos. Os chocalhos produzem o som bem característico dos Caretos. Apoiam-se num pau ou numa bengala, para fazer as suas correrias, e colocam no ombro uma pele de coelho e uma bexiga de porco cheia de ar, que representa o símbolo da fecundidade.
Segundo Pereira (1973), a actuação e a personalidade dos Caretos é algo extraordinário e mágico, pois estes assumem uma natureza diabólica e misteriosa.
A sua presença é vista como a de um ser aterrorizante, dado colocar-se fora das normas e das convenções sociais do dia-a-dia, fazendo tudo aquilo que não é aceitável nem permitido, no resto do ano.
Ainda de acordo com o mesmo autor, a sua aceitação por parte da população “justifica-se por conter talvez um sentido vago de protecção da comunidade” (Pereira: 1973, p.510), pois é através destes que se normalizam as forças estranhas e se volta à normalidade.
Mascarenhas descreve a atitude das mulheres, perante esta situação/ameaça: “então as mulheres com algum receio ficavam em casa, mas não sabiam o que lhe esperava. Os Caretos invadiam as suas casas, e se a mulher estivesse a cozinhar com os seus potes ao lume, tiravam-lhe a comida e deitavam-na fora e assim toda a família ficava sem comer para mal dos infelizes que ficavam com a barriga vazia. Outras tinham a “sorte” de ver todo este fascínio das varandas das suas casas ou das janelas, sem que fossem vistas pois as mulheres que os Caretos encontrarem na rua são bem chocalhadas e apertadas” (1997: p.5).
Segundo Manuel Morais, aos Caretos tudo é permitido. Menciona, também, que as mulheres se escondiam em casa, nem se atreviam a sair à rua, uma vez que os foliões iam muito para além das chocalhadas, acrescentando que estes “lançavam cinza e dejectos e fustigavam as incautas com pele de coelhos secas ou bexiga de porco fumada” (Manuel Morais 2002: p.1)12
O Abade Baçal refere-nos que o gesto das chocalhadas, “poderá estar relacionado com as pancadas que davam os sacerdotes de Pan, na festa do início da Primavera, julgando, desta forma, fecundar as mulheres” (cit. por Tiza: 2004, p.54). Assim se justificando que a acção dos caretos se dirija exclusivamente a moças novas e solteiras.
Mascarenhas (1997) lembra-nos que para além destas figuras emblemáticas estão também associadas as marafonas, que são personagens bastante mais calmas. A sua imagem e as suas vestes retratam uma figura feminina podendo, no entanto, ser protagonizadas por mulheres ou homens.
Segundo um habitante da aldeia de Podence, uma vez que a caracterização de Careto está interdita às mulheres, estas decidiram vestir-se de marafonas, dado ser esta a única possibilidade que têm de festejar o Carnaval pelas ruas da aldeia.
Para Tiza (2004), o careto como que assume uma dupla personalidade: ao vestir o seu fato carnavalesco torna-se misterioso e o seu comportamento muda completamente, ficando possuído de uma energia descomunal.
De acordo com várias fontes que foram citadas anteriormente, o Careto assume um papel que tem algo de mágico o que, aos olhos do povo, representa uma força sobrenatural que está escondida. Actualmente, são muitos os homens e as crianças, que vestem os seus fatos de Caretos e que vão invadir, com toda a sua energia, a praça da aldeia, Domingo e Terça-feira de Entrudo.
A riqueza desta tradição etnográfica fez com que a mesma atravessasse fronteiras. “A antiguidade e originalidade desta tradição, cheia de cor e som e a vontade das gentes de Podence, em preservar estas figuras, fizeram dos Caretos personagens famosas para lá dos limites da aldeia… e são cada vez mais frequentes os convites a este grupo etnográfico para deslocações a vários pontos do país e do estrangeiro”.
Aliado a toda esta euforia que são as festas carnavalescas, como muito bem nos lembra Tiza (2004), o “contrato de casamento” vem a público, na aldeia de Podence, no Domingo Gordo, à noite. Trata-se de um ritual, que apesar de ter vindo a desaparecer em algumas das aldeias do distrito de Bragança, subsiste ainda em outras tantas terras de toda a região Bragançana. A génese desta prática está aliada aos Caretos e a associações secretas masculinas que procuram fazer estes rituais.
Lembra-nos ainda que este é um ritual, apoiado na crítica social que vem à praça pública, de uma forma perspicaz, subtil e acutilante para anunciar a toda a população os “contratos de casamento”.
Como refere o Padre Firmino Martins (cit. por Tiza: 2004, p.257) “ são casamentos do Entrudo, onde há bastante do burlesco das matronalia pagãs; (…) casamentos fingidos de escárnio ou chacota, que lembra a antiga canção satírica e as pantominas báquicas”. Estes casamentos exploram sempre aspectos ridículos e situações bastante incómodas.
Os “contratos de casamento”, em Podence, tal como foi referido anteriormente, segundo o Padre Firmino Martins (cit. por Tiza: 2004, p.258) e Pereira (1973), realizam-se no Domingo Gordo, à noite, para que os protagonistas da festa não sejam reconhecidos. Os anunciantes, que são do sexo masculino, desempenham o papel de sacerdotes, que se fazem acompanhar de muitas pessoas que representam os acólitos; para serem bem compreendidos por aqueles que os ouvem noutros pontos da aldeia, procuram pontos estratégicos da povoação, ou nos pilares dos portões do adro da igreja. Quando estão reunidas as condições favoráveis para que estes façam a sua crítica e refiram os aspectos mais sensíveis da população que desejam postos a “nu”, começam a fazer as respectivas atribuições ao noivo, à noiva e padrinhos, sendo desta forma que fazem a sua censura.
A voz do anunciante deve ficar irreconhecível utilizando-se, para isso – em jeito de megafone – um funil (também denominado embude). Em consonância com os autores acima citados, para que a censura fosse bem entendida, “a voz é amplificada pelos embudes que, ao mesmo tempo, a destorcem para impedir a identidade dos proclamadores” (Tiza: 2004, p.258).
Prosseguindo ainda com a reflexão anterior, os “contratos de casamento” assumem um papel satírico, que se apoia na crítica social, onde todo o desenrolar da acção funciona como um pretexto para se poder dizer tudo o que se quiser, com toda a liberdade, dando livre curso à crítica, tudo isto com um determinado fim, como nos refere Tiza (2004) ou seja, a aproximação dos “proclamados noivos”. O objectivo é criar, de forma lícita, “noivado”, entre casais de diferentes idiossincrasias de um modo fictício.
O ritual do casamento é dotado de uma certa dose de humor, o que podemos constatar através do testemunho de um deles:
Padre (um dos jovens da aldeia):
Palhas alhas leva o vento, aqui vamos formar e realizar um casamento.
Todos em coro (os restantes rapazes): Uhhh, huu, hu …
Padre: E quem é que havemos de casar?
Todos em coro: Tu o dirás, huu, hu, hu….
Padre: Há-de ser a (nome da rapariga), filha do (nome do pai ou da mãe na falta deste).
Todos em coro: Huuu, huu, hu …
Padre: E quem é que lhe havemos de dar para marido?
Todos em coro: Tu o dirás, huu, huu, hu…
Padre: Há-de ser o (nome do rapaz), filho do (nome do pai, ou da mãe, na falte deste).
Todos em coro: Huuu, huu, hu, hu…
Padre: E o que lhe havemos de dar de dote, a ele?
Todos em coro: Tu o dirás, huu, hu, hu…
Padre: Há-de ser uma terra a Macedo (por exemplo), para que lhe ponha uns cornos como os de um bezerro.
Todos em coro: Huuu, huu, hu, hu…
Findo este casamento, segue-se outro até esgotar a lista de todos os rapazes e raparigas. Realce-se o facto de a lista ser formada por sorteio, realizado previamente, na presença de todos, não havendo hipótese de reclamação, ficando cada um com o que o sorteio ditar, seja a rapariga bonita ou feia, rica ou pobre, gorda ou magra. Manda a tradição que no dia de Carnaval, logo de manhã, o rapaz vá a casa da rapariga com que foi casado, dar-lhe um abraço e esta, em agradecimento oferece-lhe, como “mata-bicho”, doces e vinho fino.

Mariana Especiosa do Rosário
Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro

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