A fuga da vida agitada dos grandes centros e o apelo do campo, com promessas de melhor qualidade de vida, são ideais recorrentes de quem vive na cidade. O projecto Novos Povoadores dá apoio a famílias que queiram habitar nos territórios rurais. Uma mudança que implica o desenvolvimento de um projecto empresarial e que enfrenta «dificuldades de integração» como confessam Anabela Maia e Rita Tormenta, duas «novas povoadoras» com histórias diferentes que partilham com o Café Portugal.
Muda de vida, se tu não vives satisfeito; Muda de vida, estás sempre a tempo de mudar!; Muda de vida, não deves viver contrafeito; Muda de vida, se a vida em ti é de outro jeito.
A letra é de António Variações e foi escrita nos anos de 1980. Passados 30 anos a letra é perpetuada por músicos da actualidade e por gente que torna realidade as intenções subjacentes aos versos. Rita Tormenta e Anabela Maia são dois exemplos dessa vontade de «mudar de vida». Duas realidades, uma mesma verdade: «a missão é difícil».
Começamos com a história de Rita Tormenta, uma artista que se diz «nómada» porque leva a sua casa para onde há trabalho. «É sempre o trabalho que nos faz mudar de sítio», comenta. Em 2004, Rita, o marido Miguel e os três filhos deixaram Lisboa e partiram para Torres Novas, a pouco mais de cem quilómetros de distância da capital para desenvolver um projecto na área da educação em artes vocacionado para os mais novos. «Tínhamos uma visão romântica de viver fora de Lisboa», diz. Romântica porque a realidade encontrada foi de difícil adaptação numa comunidade que não foi acolhedora. Sem ressentimentos, Rita Tormenta recorda: «Sofremos um bocado com o isolamento».
Anabela Maia também fez as malas e mudou. Escolheu Cerva, em Trás-os-Montes, para «ter tempo para ver a filha crescer» e apostou no turismo. A mudança faz-se aos poucos tentando ganhar a confiança de quem desde sempre viveu nesta terra longe dos grandes centros urbanos. «No início não foi fácil a integração», recorda Anabela.
Ambas conheceram o projecto Novos Povoadores depois de terem «mudado de vida». Passados sete anos em Torres Novas, Rita pensou que podia penetrar mais fundo no território e foi aí que conheceu o projecto Novos Povoadores. «Contactamos com eles, reunimos e analisámos possibilidades», afirma Rita que, no decorrer, desse processo percebeu que «um factor de sucesso para a mudança é ter uma âncora num local, um terreno de família, uma casa. Migrar simplesmente para um território sem haver vinculação a esse local, mesmo que longínqua, era mais complicado».
Entretanto, surgiu um convite para trabalhar na sua área de formação, as artes, e mudou-se, em 2011, para a Charneca de Caparica onde ainda hoje continua sem nunca colocar de parte o ideal de regressar a outros locais «porque vai onde há projectos», sublinha. No entanto, partirá com uma ideia menos romantizada do que é viver no interior que diz «descaracterizado».
«O território tornou-se de alguma forma negativamente homogéneo, aquilo que julgava serem as características do interior, a identidade, esbateu-se com a expansão de hipermercados e centros comerciais. Há uma homogeneização do território que tornou as pessoas todas em consumidoras. Pensei que houvesse mais identidade regional, mas encontrei apego a coisas que queria deixar para trás. Pensei que houvesse mais orgulho nas marcas da ruralidade e percebi que, pelo contrário, há necessidade de as afastar», afirma Rita.
A artista não integrou assim o projecto Novos Povoadores que trabalha para que a mudança de vida seja mais fácil e uma realidade duradoura. Com três anos de actuação no terreno, o projecto conseguiu fazer a migração de 63 famílias. Das mais de seis dezenas, dez famílias desistiram.
Anabela Maia também não fez a sua mudança integrada no Novos Povoadores, mas conta actualmente com o apoio da equipa desta iniciativa. Anabela assegura que têm sido «óptimos conselheiros» na prossecução do trabalho. «É muito importante as pessoas fazerem a mudança com eles, uma grande vantagem que não tive inicialmente. É importante falar com eles e tentarem que se desloque a família», confessa Anabela Maia.
«Sensação de invasão»
O objectivo do projecto Novos Povoadores é «mapear oportunidades de negócio em território rural, identificar potenciais empreendedores e facilitar a sua implementação». No balanço dos primeiros anos, Frederico Lucas, um dos mentores do projecto, confessa ao Café Portugal, que o maior desafio tem sido a integração das famílias na sociedade.
«Muitas vezes estas pessoas que chegam de fora são mal interpretadas porque vão fazer coisas diferentes, actividades económicas que não existiam, e levantam suspeita», diz Frederico, que com as suas palavras corrobora os sentimentos partilhados por Anabela e Rita.
Lisboeta «de gema», Anabela desde sempre passou as férias escolares em Cerva, aldeia do distrito de Vila Real de Trás-os-Montes, onde tinha familiares. O apego à terra sempre foi muito e quando a filha Inês nasceu percebeu que com a vida agitada que tinha na capital «não a veria crescer». Investiu as poupanças angariadas a trabalhar como Delegada de Informação Médica e partiu para a pequena localidade de Cerva. Passaram-se sete anos desque iniciou o projecto, quatro desde que reside em Cerva.
«Fiz uma aposta que não está a ser fácil, mas acho que tinha de a fazer», confessa emocionada porque recorda que foi uma opção de vida feita a pensar na filha. É aliás por «ela que tem medido o tempo desta aventura». Anabela diz-se agora mais integrada mas recorda o início «difícil porque as pessoas são melindrosas», um sentimento que não tinha presente porque quando visitava a localidade nas férias era «bem aceite».
Contudo, acrescenta, «os negócios estão nas famílias há gerações. Eu vim fazer algo diferente, vim desenvolver os produtos da terra, fiz um edifício maior do que pensava e as pessoas acharam que foi um afrontamento». Anabela diz, já de sorriso aberto porque «está a começar a ganhar a confiança da população».
Anabela partiu para esta mudança de vida com o firme propósito de apostar no turismo e na valorização dos produtos regionais. Na quinta de um hectare está a recuperar as casinhas para alojamento e construiu um restaurante onde recebe todos como amigos. «Tive o total apoio da câmara municipal desde o primeiro dia. O processo correu menos bem com o projectista que cometeu vários erros e fiquei com um edifício muito maior do que pretendia», conta Anabela com tom de voz que revela optimismo apesar das adversidades. A opção de vida que Anabela Maia fez tem ainda em falta a mudança do marido que continua a trabalhar em Lisboa «porque para já não podem viver os dois do restaurante Adega do Maneca e das casas de turismo rural que estão a recuperar».
Também Rita Tormenta sentiu os olhos postos em si por se mudar e tentar fazer um trabalho diferente. No seu caso um projecto de educação nas artes, em parceria com o município de Torres Novas. Juntaram ao trabalho a pensamento de que fora de Lisboa «sem tem mais tempo» e partiram. Estiveram em Torres Novas sete anos. Depois de terminado o projecto com o município, continuaram com ateliers onde recebiam crianças de todas as escolas do concelho e as familiarizavam com diferentes expressões de arte.
Torres Novas foi a terra escolhida também porque havia uma ligação anterior. A família de Miguel era de lá, uma ligação que se revelou uma «arma com dois bicos». «Por um lado houve pessoas que nos acolheram porque já nos conheciam, por outro houve um vincular a um estereótipo ligado à família do Miguel que não assenta bem a nós porque não somos iguais. A família do meu marido tinham algumas posses e nós não encaixamos nesse perfil, mas as pessoas não percebem bem quem somos», explica Rita Tormenta.
«Havia sensação de invasão. O facto de estarmos ligados às artes e haver aquela ligação familiar, que nos associava a um estereótipo, colidia na cabeça das pessoas e depois nós não correspondíamos ao que elas pensavam. Houve um pouco de isolamento», recorda.
Os benefícios do interior
Nem tudo são espinhos nesta história. Para Anabela Maia, a nova habitante de Cerva, o reconhecimento que as pessoas começam a fazer do seu trabalho e a procura por parte dos turistas que se deslocam de propósito para provar as iguarias da Adega do Maneca «são um incentivo». E depois alegra-se por ver a filha crescer em contacto com a natureza e com facilidades da vida do campo, como pagar apenas 32 euros pela escola, com direito a refeição, e com transporte de porta de casa à porta de escola. «Meto inveja às minhas amigas de Lisboa», brinca Anabela.
«Agora chegam as férias escolares e por 15 euros a semana, a Inês vai ter acesso a múltiplas actividades como piscina fluvial, teatro e outras iniciativas», sublinha. A nota menos positiva fica para o acesso aos cuidados de saúde porque o hospital mais próximo fica a 50 quilómetros percorridos por uma estrada sinuosa.
«O Centro de Saúde existe mas não funciona muito bem. Não há médicos e apesar de o município comparticipar a vinda de um médico para cá, nenhum profissional quer», lamenta Anabela. «Mas a câmara tem iniciativas excelentes como disponibilizar transporte para as pessoas irem ao médico no Porto», sublinha a empreendedora.
Aposta na transformação dos produtos
Em Março de 2014, estavam inscritas nos Novos Povoadores mais de 1500 famílias que são analisadas por Frederico Lucas e a equipa do projecto que definirá se têm o perfil adequado para a mudança. O desenvolvimento de um negócio é elemento chave nesta ideia de repovoar os territórios de baixa densidade populacional.
Frederico não tem dúvidas que a sustentabilidade quer do mundo rural, quer das famílias empreendedoras que tenham como opção de vida serem «novos povoadores» devem apostar na indústria transformadora. «Aquilo que estamos a tentar desenvolver é actividade agrícola mas associada à transformação, isto é, não vender a cereja mas a compota para subir os rendimentos. Acho que é a agro-indústria que vai safar o interior», diz, sublinhando que as pequenas unidades industriais geram postos de trabalho e são mais difíceis de deslocalizar.
Nas contas dos Novos Povoadores, em três anos de actuação terão sido criados 69 postos de trabalho.
O trabalho é para continuar tendo agora presente que é necessário um «envolvimento da comunidade de acolhimento» e a «produção de um manual do migrante que ajudará o inscrito a compreender o seu estádio no projecto migratório».
O Novos Povoadores alargou também os horizontes e vai trabalhar em parceria com o projecto congénere Abraza la Tierra, que actua em cinco comunidades autónomas espanholas, nomeadamente Castela e Leão; Castela La Mancha; Extremadura; Cantábria e Aragão.
«A partilha de conhecimento entre estas organizações congéneres e a fundação de uma rede europeia para o repovoamento rural são os principais objectivos para a celebração de um Convénio entre o Novos Povoadores e Abraza la Tierra. Estas iniciativas congéneres actuam numa lógica multimunicipal e pretendem cobrir a totalidade do território ibérico de baixa densidade», concluiu Frederico Lucas.
Sara Pelicano; Foto - António Góis
in:cafeportugal.net
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Excelente esta iniciativa e o texto.
ResponderEliminarO António Variações era um homem à frente do seu tempo.
A ambição das grandes cidades e a ilusão de uma vida que se pretendia melhorada não acontece.
O regresso ao interior, apesar das contrariedades das políticas seguidas, será inevitável.
O cimento cairá perante a tranquilidade e o prazer de trabalhar e viver em plena natureza. Um excelente trabalho Henrique Martins.