Evoquei, já, a importância de dois livros no meu despertar para a literatura: Narrativas e Lendas da Antiga Grécia (1956), de Nathaniel Hawthorne, e Coração, de Edmondo De Amicis. Recebi-os de uma prima, em 1961, tinha eu cinco anos, quando começava a ler. No limiar da tese de doutoramento, salientei Cuore, mas A Wonder Book perseguia-me.
Assim, quase sessenta anos depois, pego nessa tradução (que há muito mandei encadernar, e não doei, com outros oito mil volumes), da qual sai, a abrir, “A cabeça da górgona”. Não me recordava disto, ao encadear 14 sonetos sobre Perseu, que dá título ao recente livro de poemas (Fafe: Editora Labirinto, 65 páginas). Mas é certo que, num escaninho da memória, esse herói me acompanhou durante décadas. Em ficção e estudos sobre a crónica, eu já aproveitara alguns feitos de Zeus. Terei acordado o meu herói à leitura, nos 25 anos, de André Bonnard, Les Dieux de la Grèce, tão extraordinária era a história de Perseu, com tanto de Bíblia como de Camilo Castelo Branco, e remissão para Édipo, mas sorte diferente. Retorna em 1992, pois o segundo capítulo de Mitologia Clássica. Guia Ilustrado, de A. R. Hope Moncrieff, trata de Perseu, nas cores de Ticiano e E. Burne-Jones.
A Editora Labirinto dá na capa Perseu com a Cabeça da Medusa, de Antonio Canova, um neoclassicismo sereno que simplifica igual título do clássico Benvenuto Cellini, longe da imagem terrífica da górgona. A história é simples: o rei de Argos ouve de oráculo que um descendente vai assassiná-lo. Encerra a filha, guardas em volta de entrada cuja chave traz consigo. Zeus metamorfoseia-se em chuva de ouro e gera criança. Respeitoso do deus, o rei poupa filha e neto, que lança em barca frágil. Salva-os pescador, irmão de rei que, autoritário, sonha desposar aquela. Na tensão entre irmãos (já se adivinha qual ganha), e para afastar Perseu de uma decisão desfavorável, confia-lhe missão impossível: matar Medusa, cujo olhar petrifica mortais.
Ajudado por Hermes e Atena, essa é só a primeira aventura, com manhas e pormenores que não descrevo. Mas a cabeça sabiamente cortada vai servir para acabar com a raça do rei mau e salvar a mãe, entretanto refugiada no templo de Atena.
A segunda aventura é salvar Andrómeda de um monstro, com ela casar e subir ao céu. Acontecem outras, mas corramos ao final: durante uns jogos, falha um lançamento de disco e mata, involuntariamente, o avô, cumprindo-se oráculo. Recusa o trono de Argos, governa Tirinto (ou Tirinte) e funda Micenas.
Persée é uma entrada do Dictionnaire des Symboles, de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, que não acolhe muitos outros heróis, mas falha ao curar da «complexité de la relation père- -fils, fils-père, existant en tout homme». Ora, Perseu não tem problemas com Zeus pai, nem com o avô, cuja fatalidade é de outra ordem. E vencer, sobre um Pégaso alado, a Medusa – «image excessive de la culpabilité –, não significa vencer uma culpabilidade própria, mas, sim, «acquérir le pouvoir de se regarder soi-même sans défomation». Curar de «vanité» e de «ses propres monstruosités» (que não podemos extrair da vitória sobre o monstro desejoso de Andrómeda) sobre que Perseu triunfou é adulterar o mito de alguém esforçado, que nem o destino atropela (como se deu com Édipo), já recusando o fácil (Argos), já erguendo cidade do nada (Micenas).
Eis a narrativa de um amadurecimento, sobre que os versos também evoluem. Outras considerações roubariam ao leitor o gozo de pequenas descobertas.
Valha dizer que os sonetos deste livro (e só um texto não é soneto), conjugados com a variedade da penúltima selecção – Do Movimento Operário e Outras Viagens (2013) – completam a imagem que me faço da poesia, subida, afinal, das brumas da infância.
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