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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

sexta-feira, 25 de setembro de 2020

A fada lavadeira da Cidadela (II parte)

" Contrariado segui os passos de gato do Laminuta que depressa farejou a origem dos estranhos sons. Protegidos pelos carrascos, Rosalina, a morena lavadeira por quem todos suspiravam, perdia-se nos beijos do Tenente Malhadas, já liberto da jaqueta e com a camisa já desabotoada."

Os dias corriam iguais mas felizes. Ao toque de recolher, vários corneteiros em formatura em frente à Porta de Armas do Quartel, anunciavam o fim do dia. 
Houve um dia com um final de tarde diferente. 
Eu tinha ido à Fonte do Alcaide buscar um cântaro de água. Pelo caminho cruzei-me com o Laminuta que vinha do Rebolo. Estava ele a gabar-se dos mergulhos que dera da Carrasqueira e dos ralhetes das lavadeiras que queriam a canalha longe porque turvavam a água, quando ouvimos uns suspiros vindos do Carrascal.
- O que é isto? Ouviste Quim? – perguntou o Laminuta como que pressentindo marosca – Ia jurar que ouvi vozes e gemidos.
- Deixa lá isso, vamos embora. – acrescentei eu como que adivinhando desgraça.
- Deixo nada, anda cá.
Contrariado segui os passos de gato do Laminuta que depressa farejou a origem dos estranhos sons. Protegidos pelos carrascos, Rosalina, a morena lavadeira por quem todos suspiravam, perdia-se nos beijos do Tenente Malhadas, já liberto da jaqueta e com a camisa já desabotoada.
-Pára, não podemos! – defendia-se Rosalina entregue aos braços fortes de Duarte.
A cena inesperada provocou no Laminuta um risinho nervoso. A mim causou-me uma desilusão tão grande que sem pensar, soltei um berro que fez levantar a passarada e colocou alerta o casal improvável. Desatamos os dois a correr galgando a colina. Foi tão grande a pressa que me esqueci do cântaro da água lá na Fonte do Alcaide. Ao chegar à Vila, ainda disse ao Laminuta:
- Não digas nada, não contes nada a ninguém, ouviste?
Nem me respondeu, qual cabrito-montês, desapareceu pelas ruelas soltando gritinhos insanos. Naquela mesma noite na taberna da Tia Joana, adivinhava-se o tema da conversa. As línguas soltas, como não têm ossos, trataram de alastrar o sucedido. Rosalina caiu nas bocas do mundo, um beijo incontido, roubado, transformara-se na maior das devassidões.
No Quartel, nos aposentos dos Oficiais, Duarte, o Tenente Malhadas, deitara-se sobre a cama feita, não se desfardara nem descalçara as botas, logo ele que primava pelo esmero e que cuidava da farda com todo o brio. Estava preocupado, Rosalina, agora com 17 anos, era menor. Um ímpeto incontido, impensado colocava em risco a sua carreira militar, logo ele, oficial de carreira que aspirava a altos cargos, ele que até tinha amigos no Ministério. No dia seguinte, no gabinete do coronel, foi-lhe dito que a sua transferência tinha sido autorizada. Sem mais palavras, foi informado que partiria nessa mesma manhã. Não tinha pedido nenhuma transferência, era feliz e realizado em Bragança mas a disciplina militar dava-lhe a frieza necessária para entender a gravidade da situação, sentia-se até agradecido por não sofrer consequências piores.
E Rosalina? Rosalina sentiu a aspereza das mãos da mãe Guida e por três dias e três noites chorou sem parar, não de dor física, mas da ausência de quem amava.
Timóteo, o cancioneiro do povo, do Alto da Torre de Menagem, dizia:

Minha mãe mandou-me à fonte,
à fonte do salgueirinho;
mandou-me lavar a jarra
com a flor do rosmaninho.
Eu lavei-a com areia,
Quebrou-se um pedacinho.
- Anda cá, minha perra traidora, 
Onde tinhas o sentido?
Não o tinhas tu na roca, 
nem tão-pouco no sarilho;
tinhas é naquele mancebo
que andava de amor contigo.

Ao ouvir os versos do trovador, Maria, a irmã denunciante de Rosalina, sorria. No fundo estava satisfeita com as desventuras da irmã. Como podia o Duarte ter-se enfeitiçado pela irmã, de tez morena e ar de cigana? Como podia a irmã competir com a sua pele alva e os cabelos de ouro?
Timóteo, atento e justo, tinha resposta para Maria:

Eu levantei-me a passear
pela tarde, às duas horas;
vira estar numa janela
duas donzelas formosas:
Uma era muito branca,
da sua cor melindrosa, 
outra era mais morena, 
morena engraciosa.
Namorei-me da morena
por uma ação generosa;
A branca desque o soube,
logo se mostrou queixosa.
- Cale-se lá, senhora branca,
não seja tão invejosa;
Brevemente l`eu direi
o moreno em quanto se importa:
De preto são nas abelhas
a seu dono proveitosas;
De preto são nos cavalos
e as mulinhas corredoras;
De preto são nos ornatos
com que as igrejas se adornam;
De preto vestia o Rei
e o padre santo em Roma;
Preto era o manto
da Virgem Nossa Senhora.

Passaram muitos anos. O BC3 foi demolido e os militares foram embora. As lavadeiras carpiram a saudade de outros tempos. Já não se ouviam os martelos dos ferreiros de Além do Rio. Deixou de ecoar o som forte e decidido das botas dos soldados. As cornetas emudeceram-se e já não despertavam o casario nem mandavam recolher os indigentes mais descuidados.
Apenas Timóteo continuava a sua função. Nas noites quentes de Agosto, os netos dos que há muito tinham partido, pediam que lhes contasse, mais uma vez, a Lenda das Bruxas Lavadeiras. E ele, sentado no banco a meio do largo onde outrora se formava a parada, contava:
Nos tempos mais remotos, dizia-se que as bruxas lavavam a roupa de noite nos ribeiros. Uma noite, um homem que tinha um moinho, ficou de levar uns sacos de farinha a um cliente da aldeia onde o ribeiro passava. Ao aproximar-se com a mula depois de uma longa caminhada, ouviu bater roupa nas lousas do ribeiro. Não foi ver, pois estava sozinho e amedrontado. Quando entrou na aldeia, o povo perguntou-lhe:
- Viste as bruxas a lavar no ribeiro?
O homem respondeu:
- Eu ver não vi. Mas ouvi bater roupa nas lousas.
As pessoas da aldeia andavam sempre a perguntar aos que vinham de fora se tinham visto ou ouvido as bruxas a lavar, pois era a única forma de os apanhar e descobrir quem eram.
As crianças, curiosas, perguntaram ao Timóteo que bruxas eram essas. E ele, com um sorriso desdentado e encardido, mas sincero, dizia:
- Não eram bruxas, era uma fada. Era a Rosalina, a fada lavadeira da Cidadela.

Rui Machado

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