Os dias corriam iguais mas felizes. Ao toque de recolher, vários corneteiros em formatura em frente à Porta de Armas do Quartel, anunciavam o fim do dia.
Houve um dia com um final de tarde diferente.
Eu tinha ido à Fonte do Alcaide buscar um cântaro de água. Pelo caminho cruzei-me com o Laminuta que vinha do Rebolo. Estava ele a gabar-se dos mergulhos que dera da Carrasqueira e dos ralhetes das lavadeiras que queriam a canalha longe porque turvavam a água, quando ouvimos uns suspiros vindos do Carrascal.
- O que é isto? Ouviste Quim? – perguntou o Laminuta como que pressentindo marosca – Ia jurar que ouvi vozes e gemidos.
- Deixa lá isso, vamos embora. – acrescentei eu como que adivinhando desgraça.
- Deixo nada, anda cá.
Contrariado segui os passos de gato do Laminuta que depressa farejou a origem dos estranhos sons. Protegidos pelos carrascos, Rosalina, a morena lavadeira por quem todos suspiravam, perdia-se nos beijos do Tenente Malhadas, já liberto da jaqueta e com a camisa já desabotoada.
-Pára, não podemos! – defendia-se Rosalina entregue aos braços fortes de Duarte.
A cena inesperada provocou no Laminuta um risinho nervoso. A mim causou-me uma desilusão tão grande que sem pensar, soltei um berro que fez levantar a passarada e colocou alerta o casal improvável. Desatamos os dois a correr galgando a colina. Foi tão grande a pressa que me esqueci do cântaro da água lá na Fonte do Alcaide. Ao chegar à Vila, ainda disse ao Laminuta:
- Não digas nada, não contes nada a ninguém, ouviste?
Nem me respondeu, qual cabrito-montês, desapareceu pelas ruelas soltando gritinhos insanos. Naquela mesma noite na taberna da Tia Joana, adivinhava-se o tema da conversa. As línguas soltas, como não têm ossos, trataram de alastrar o sucedido. Rosalina caiu nas bocas do mundo, um beijo incontido, roubado, transformara-se na maior das devassidões.
No Quartel, nos aposentos dos Oficiais, Duarte, o Tenente Malhadas, deitara-se sobre a cama feita, não se desfardara nem descalçara as botas, logo ele que primava pelo esmero e que cuidava da farda com todo o brio. Estava preocupado, Rosalina, agora com 17 anos, era menor. Um ímpeto incontido, impensado colocava em risco a sua carreira militar, logo ele, oficial de carreira que aspirava a altos cargos, ele que até tinha amigos no Ministério. No dia seguinte, no gabinete do coronel, foi-lhe dito que a sua transferência tinha sido autorizada. Sem mais palavras, foi informado que partiria nessa mesma manhã. Não tinha pedido nenhuma transferência, era feliz e realizado em Bragança mas a disciplina militar dava-lhe a frieza necessária para entender a gravidade da situação, sentia-se até agradecido por não sofrer consequências piores.
E Rosalina? Rosalina sentiu a aspereza das mãos da mãe Guida e por três dias e três noites chorou sem parar, não de dor física, mas da ausência de quem amava.
Timóteo, o cancioneiro do povo, do Alto da Torre de Menagem, dizia:
Minha mãe mandou-me à fonte,
à fonte do salgueirinho;
mandou-me lavar a jarra
com a flor do rosmaninho.
Eu lavei-a com areia,
Quebrou-se um pedacinho.
- Anda cá, minha perra traidora,
Onde tinhas o sentido?
Não o tinhas tu na roca,
nem tão-pouco no sarilho;
tinhas é naquele mancebo
que andava de amor contigo.
Ao ouvir os versos do trovador, Maria, a irmã denunciante de Rosalina, sorria. No fundo estava satisfeita com as desventuras da irmã. Como podia o Duarte ter-se enfeitiçado pela irmã, de tez morena e ar de cigana? Como podia a irmã competir com a sua pele alva e os cabelos de ouro?
Timóteo, atento e justo, tinha resposta para Maria:
Eu levantei-me a passear
pela tarde, às duas horas;
vira estar numa janela
duas donzelas formosas:
Uma era muito branca,
da sua cor melindrosa,
outra era mais morena,
morena engraciosa.
Namorei-me da morena
por uma ação generosa;
A branca desque o soube,
logo se mostrou queixosa.
- Cale-se lá, senhora branca,
não seja tão invejosa;
Brevemente l`eu direi
o moreno em quanto se importa:
De preto são nas abelhas
a seu dono proveitosas;
De preto são nos cavalos
e as mulinhas corredoras;
De preto são nos ornatos
com que as igrejas se adornam;
De preto vestia o Rei
e o padre santo em Roma;
Preto era o manto
da Virgem Nossa Senhora.
Passaram muitos anos. O BC3 foi demolido e os militares foram embora. As lavadeiras carpiram a saudade de outros tempos. Já não se ouviam os martelos dos ferreiros de Além do Rio. Deixou de ecoar o som forte e decidido das botas dos soldados. As cornetas emudeceram-se e já não despertavam o casario nem mandavam recolher os indigentes mais descuidados.
Apenas Timóteo continuava a sua função. Nas noites quentes de Agosto, os netos dos que há muito tinham partido, pediam que lhes contasse, mais uma vez, a Lenda das Bruxas Lavadeiras. E ele, sentado no banco a meio do largo onde outrora se formava a parada, contava:
Nos tempos mais remotos, dizia-se que as bruxas lavavam a roupa de noite nos ribeiros. Uma noite, um homem que tinha um moinho, ficou de levar uns sacos de farinha a um cliente da aldeia onde o ribeiro passava. Ao aproximar-se com a mula depois de uma longa caminhada, ouviu bater roupa nas lousas do ribeiro. Não foi ver, pois estava sozinho e amedrontado. Quando entrou na aldeia, o povo perguntou-lhe:
- Viste as bruxas a lavar no ribeiro?
O homem respondeu:
- Eu ver não vi. Mas ouvi bater roupa nas lousas.
As pessoas da aldeia andavam sempre a perguntar aos que vinham de fora se tinham visto ou ouvido as bruxas a lavar, pois era a única forma de os apanhar e descobrir quem eram.
As crianças, curiosas, perguntaram ao Timóteo que bruxas eram essas. E ele, com um sorriso desdentado e encardido, mas sincero, dizia:
- Não eram bruxas, era uma fada. Era a Rosalina, a fada lavadeira da Cidadela.
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