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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

quarta-feira, 11 de março de 2020

Quem me dera que eu fosse o pó da estrada*

Quem me dera que eu fosse o pó da estrada
E que os pés dos pobres me estivessem pisando…
Quem me dera que eu fosse os rios que correm
E que as lavadeiras estivessem à minha beira…
Quem me dera que eu fosse os choupos à margem do rio
E tivesse só o céu por cima e a água por baixo…
Quem me dera que eu fosse o burro do moleiro
E que ele me batesse e me estimasse…
Antes isso que ser o que atravessa vida
Olhando para trás de si e tendo pena…
* Alberto Caeiro

A fada lavadeira da Cidadela

A história que eu vos vou contar, aconteceu na década de 50 na linda Cidadela de casario pobre mas honrado que guardava, com honra e brio, o Castelo de Bragança. O povoado partilhava a Cidadela com o Quartel Militar, formalmente designado por Batalhão de Caçadores 3, o BC3. Para a criançada que corria e brincava pelas ruas e calejas da Vila, era o quartel. Militares e populares partilhavam o povoado sendo que a vida na vila era pautada pela atividade militar, pelas profissões antigas, pelo cultivo das pequenas hortas, pelo amanho das vinhas que os mais abastados tinham no Cabeço mas sobretudo pela existência dura mas muito alegre das lavadeiras. As lavadeiras que cuidavam da roupa dos militares e das poucas famílias ricas da cidade, eram o sustento de muitos dos agregados que habitavam as velhas casas, paredes meias com a Domus Municipalis, a Torre de Menagem, a Torre da Princesa e a Igreja de St.ª Maria. E depois havia a criançada, guardiões das muralhas, exploradores imaginários e guerreiros da fantasia. Muitas batalhas se travaram contra os Castelhanos que nos queriam roubar o Castelo ou contra outros, mais domésticos, como os de Além do Rio que quando ousavam subir a colina do Castelo eram recebidos com a animosidade adequada para os correr dali para fora. Pequenos homenzinhos e mulherzinhas que muitas vezes, por força da vida, eram obrigados a crescerem à pressa mas sem nunca perderem o olhar inocente e de que tudo se é capaz. Quais testemunhas do passar do tempo que corria devagar, conhecíamos todos os lugares e toda a gente. Quando algum sabia duma novidade, depressa se espalhava pelas pedras das muralhas.
- Não digas a ninguém, olha que é segredo! Ouviste Quinzinho? – E eu não contava. Não era isso que me interessava. Ouvia e calava. O meu mundo era outro. Eu gostava de juntar duas ou três pedrinhas, jogá-las ao chão e pensar em batalhas imaginárias com muitos militares a cavalo, muito bem ordenados, digladiando-se entre si. Absorto na imaginação de criança, só o murmúrio das vozes e o barulho das enxadas que cavavam uma vinha no Cabeço me desviavam a atenção. Ou o tlim-tlim-tlim do martelo do ferreiro de Além do Rio, a malhar o ferro na bigorna. Ou então o imperdível rufar dos tambores e o barulho das botas dos soldados que em marcha se dirigiam para o quartel.
- Quero ser militar! – dizia para a minha mãe.
– E porque não? Que bem te vai ficar a farda! Vais chegar a General, vais ver.
As palavras da minha mãe faziam-me crescer mais uns centímetros e saía de casa a galope no meu cavalo de pau, com os cabelos louros ao vento, qual guerreiro Visigodo que vai resgatar a Princesa da Arménia, cativa na Torre da Princesa pelo malvado do Senhor de Bragança, Mendo Adão. Lenda que tantas vezes ouvi contar ao Timóteo, um pobre indigente que vagueava pelas ruas da Cidadela e dormia a sesta à sombra das boloteiras, junto às oficinas do Quartel. O Timóteo, ainda que com fama de tonto, era a voz do povo, o que muitos calavam, ele cantava, versejando em cantilenas intermináveis. Quando não estava a dormir pelos cantos, o Timóteo gostava de acompanhar as lavadeiras. Quando as via juntar-se com as trouxas à cabeça, preparando-se para rumarem ao Sabor, o Timóteo, num andar destrambelhado, a segurar a indumentária larga e rota, abria caminho colina abaixo até à presa da ponte velha do Sabor.
- Timóteo, canta-nos uma das tuas, sempre se nos aliviam as costas que hoje o rol não vai leve. – pedia a Guida lavadeira. E o Timóteo acedia, não para agradar à Guida, mas à sua linda filha Rosalina, por quem todos suspiravam. E assim, do alto do Altar, pedra saliente que os mais ousados usavam para mergulhar nas águas do Sabor, Timóteo cantava:

Bem cantava a lavadeira
ao som da sua barrela;
a roupa que ela lavava
era do Rei de Castela
ela lavava no Douro, 
estendia naquela serra,
o sabão que le deitava
era cravo e canela;
o cesto onde coava
era de verga amarela;
a caldeira era d`ouro,
a i-asa de prata era.

A cantilena do Timóteo era acompanhada pelo bater da roupa nas lousas inclinadas sobre o rio, pelo esfregar a punhos fechados e pelo torcer a duas mãos. Tudo bem lavado e cheiroso, com ou sem barrela, dependia da vontade e do bolso da freguesia. Nas margens do rio, ao sol, as roupas à cora pintavam de branco a paisagem, sobressaindo as camisas dos militares e as rendas finas das senhoras da cidade. Cheirava a sabão feito em casa, processo cheio de segredos para a minha cabeça de menino. Como era possível das borras do azeite e mais a soda cáustica fazer sabão para lavar a roupa? Mistérios da Química que o Prof. Dionísio me haveria de explicar lá na Escola da Estacada.
De regresso à Cidadela, as formiguinhas lavadeiras, vergavam com o peso das trouxas de roupa molhada. Chegadas à Vila, ainda com os braços e as mãos dormentes de tanto esfregar, estendiam a roupa entre as muralhas como que a avisar os Castelhanos que ali era terra de paz e para guerra bastava a vida. 
Rosalina era a mais nova das duas filhas da Margarida lavadeira. Com 16 anos, também ela já ajudava a mãe, sobretudo nas barrelas mais exigentes, acendendo o lume de manhã cedo, acarretando os cântaros de água a ferver, enchendo os latos com a água que era preciso ir buscar à cisterna da Domus.
Foi num desses percursos até à Domus que Rosalina o viu pela primeira vez. Não estava autorizada a olhar para os militares, muito menos a responder aos piropos mais brejeiros dos soldados que, longe de casa e dos afetos, não continham vontades e não raras vezes se metiam em alhadas que a regra militar não contempla. Com o Tenente Malhadas, o Duarte, como Maria, a irmã de Rosalina, gostava de chamar, era diferente. O Duarte era educado, sempre impecavelmente fardado, escanhoado e com um sorriso que trazia as lavadeiras suspirantes.
- Bom dia menina Rosalina! Está um lindo dia! O Sol quase brilha tanto como esses seus olhos verdes…
Rosalina baixava a cabeça e não respondia. Só Deus sabe o esforço que fazia para se manter silenciosa. O Duarte, tão bonito, educado e Tenente! Intrigada, questionava-se como saberia ele o seu nome. Coisa de soldados que tudo sabiam, que tudo perguntavam.
Absorta nos seus pensamentos, mergulhava os latos na água da cisterna. Depois de cheios, tinha dificuldade em erguê-los.
- Isso não é tarefa para mãos tão delicadas. Quer que a ajude menina Rosalina? – ele de novo, o Duarte.
- Não sei se deva. Os meus pais…
O Tenente não deixou terminar a conversa, com a agilidade dos seus 26 anos, duma só vez puxou os dois latos já cheios de água que Rosalina, de mãos trémulas, a custo segurava. Ao sentir por perto o aroma quente e cuidado do Duarte, Rosalina esmoreceu, sentiu as pernas fraquejar e recostou-se para trás. Refeita e assustada, com uma força repentina, saiu da Domus a correr, puxando pelos latos que agora, estranhamente, tinham sido tomados duma leveza súbita.
Do alto da muralha, Timóteo cantava:

Deixa-te andar Rosalina, 
deixa-te andar a brincar
que hoje se corta a lenha, 
amanhã vais a queimar…

Apesar das pedras das muralhas tudo testemunharem, a vida na Cidadela corria no seu remanso. O povoado acordava com o toque de alvorada do Miguelzinho, o corneteiro Mor do BC3. O toque destinava-se à rotina militar mas também marcava o ritmo dos que no casario habitavam, como era o caso do Sargento Morais que obrigava os filhos a levantarem-se ao toque do Miguelzinho. Os filhos, contrariados, levantavam-se mas vingavam-se no corneteiro. Ao abrigo das muralhas, quando este, de corneta debaixo do braço, regressava a casa, a garotada mais atrevida gritava bem alto:
- Miguelzinho, pardal sem rabo!
E era ver o Cabo Miguel, intrigado a olhar em redor para as muralhas sem perceber donde vinha o impropério.
Verdade, de tão miudinho que era, o Miguelzinho parecia incompleto, Adequava-se a nomeada.
A rotina remansosa da Cidadela só era interrompida nos dias de Juramento de Bandeira. Os populares eram autorizados a presenciar a cerimónia e a assistir à mestria do Prof. Guilhermino na direção da Banda Militar.
Mas outros dias marcaram as nossas vidas. Como aquele em que os soldados regressaram da Índia, corria o ano de 1958. O soldado Benigno, cujo nome de batismo batia certo com o seu carácter, ao passar por mim, gritou emocionado:
- Olha o Quim Vila! Que saudades dos meus rapazes da Vila!
Foi nesse dia que percebi que também se pode chorar de alegria.
No resto, tudo sucedia na normalidade costumeira. O cabo correeiro, nas oficinas do quartel, reparava os atafais das mulas e dos cavalos. A Terrona taberneira guardava a chave da Domus Municipalis, quando víamos alguns turistas canabeques a passar por baixo do Arco de St.º António, corríamos rua acima para pedir a chave do monumento, a nossa jóia da Vila, que mostrávamos com orgulho. Claro que o fazíamos na esperança de nos darem uma moedita para jogar na rifa que nunca saía ou para beber uma laranjada. 
Também me lembro de ver fome envergonhada pois os tempos não eram de fartura. A criançada, antes de ir para a escola descia a Rua do Jardim até à Igreja de S. Bento onde as catequistas Luzia, Dina e Teresinha, todas meninas e moças, preparavam o pequeno-almoço com os víveres que os Americanos mandavam pela Cáritas. Tudo regido e orientado pelo coração sem fim do Padre Miguel ajudado pelo Sr. Maurício, sacristão de serviço. Com o estômago mais acomodado, os rapazes partiam para a Escola da Estacada e as raparigas para a de S. Sebastião.
Os dias corriam iguais mas felizes. Ao toque de recolher, vários corneteiros em formatura em frente à Porta de Armas do Quartel, anunciavam o fim do dia. 
Houve um dia com um final de tarde diferente.

Continua...
Rui Machado

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